segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1455: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (7): O Sr. Brandão, de Ganjola, aliás, de Arouca, e a Sra. Sexta-Feira

Guiné > Região de Tombali > Catió > Ganjola > José António Canoa Nogueira, Soldado nº 2955/63, SPM 2058, natural da Lourinhã, meu primo, morreu em 30 de Janeiro de 1965 no destacamento de Ganjola, aqui evocado pelo Mendes Gomes... Recorte de notícia publicada no quinzenário regionalista Alvorada, com sede na Lourinhã, na sua edição de 23 de Maio de 1965 (1).

Foto: © Luís Graça (2005). Direitos reservados.



VII Parte das memórias de Joaquim Luís Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Os Palmeirins (Como, Cachil, Catió, 1964/66) (2) .

2.11. O Sete e Meio


Sete e Meio era o nome dado à casa que albergava os alferes da companhia de intervenção e mais alguns dos felizardos, residentes com o comando do batalhão, como o Teixeira, que era responsável pelas transmissões e outros mais.

Era a casa do enfermeiro de antes da guerra. Como aconteceu a tantos outros, foi obrigado a cedê-la, de aquartelamento, aos militares.

Uma pequena moradia, em cimento armado e tijolo, como as que se encontravam em qualquer parte da metrópole, ali, era um palacete de luxo, aos olhos dos indígenas das rudes tabancas de palha. Uma sala comum, quatro quartos e uma casa de banho, dava a sensação de estadia romanesca, para um aventureiro que viesse fazer uma caçada nas cerradas matas tropicais, ali ao pé.

Era-nos fácil imaginar, com sadia cobiça, a deliciosa época da vida colonial, de antes da guerra, para os felizardos, a quem a sorte, em boa hora, escorraçara, com a pena de desterro, por feitos heterodoxos à moral reinante das gentes da metrópole.

Era o caso do Sr. Brandão, de Ganjola (2), a quinze km de Catió, um injustiçado lavrador das terras de Arouca. Ali vivia há dezenas de anos, por assassínio, cometido numa das romarias da Senhora da Mó. No meio dos folguedos e romarias, por vezes, acertavam-se contas atrasadas, duma qualquer hora de desavença, mesmo no fim da missa domingueira.

O Sr. Brandão, agora, era um velhote, rodeado de filhos e netos que foi gerando, ao sabor das madrugadas de batuque e da liberdade de escolha, sem custos, entre as mais viçosas bajudas da tabanca…

Uma negra, velha, mas de rosto e olhar, ainda iluminados por olhos meigos, como a sua voz, doce, era a predilecta, de sempre. Seu nome, Sexta-Feira. Soava bem aos ouvidos dos falares balantas, fulas ou mandingas. Era ela quem lhe tratava das tarefas caseiras. Dedicada. Sem nada cobrar, para além do breve e malicioso sorriso do velho Brandão, quando lhe despontava o desejo do seu corpo, negro, sem idade. Podia despontar a qualquer hora. Sexta-Feira ali estava, sempre dócil e submissa.

Uma loja farta de tudo o que chegava na carreira regular das barcaças de Bissau. Os lindos panos de cor garrida e os gordos cordões reluzentes, de fantasia, com que as negras tanto gostavam de se enfeitar.

O vinho tinto da metrópole era o regalo dos ociosos negros, de rostos engelhados e curtidos pelo álcool, pela tarde fora, a par da cachaça de coco.O saboroso bacalhau, curado nas míticas secas da Figueira da Foz e Aveiro, tão apreciado e toda a sorte de ferragens eram tudo o que aguçava o desejo daquelas gentes, para a troca do arroz, milho, mandioca, galinhas e demais produtos que, em cortejo lento e constante, pelas picadas entre as frondosas matas, traziam em açafates, à cabeça.O preço era feito, à medida da vontade gulosa do velho, matreiro e bem afortunado, Brandão.

Dizia-se que tinha metade das terras de Arouca… não fosse o diabo tecê-las. Ali, vivia, pacatamente, como se não houvesse guerra, numa típica mansão colonial, de um piso sobreelevado, com um varandim a toda a volta, com as dependências necessárias à farta panóplia de utensílios, alfaias e mercadoria.

Ficava mesmo ao pé de um afluente do Geba (3), rico de peixe, onde, infalivelmente, chegavam, em cada dia, as marés vivas capazes de lhe movimentar, de graça, os prodigiosos moinhos com que moía os cereais abundantes.

Conhecia toda a gente, naquelas paragens, incluindo os turras, a quem pagava, com simpatia, os devidos tributos de guerra…quando não era o fornecimento das informações sobre os últimos planos de operações que, por artes obscuras, ali chegavam aos ouvidos bem afilados.

Aquele sítio era estratégico e crucial. Por isso, um pelotão reforçado com uma metralhadora pesada, destacado de Catió, disputava-lhe os largos aposentos, como guarda avançada e tampão às possíveis arremetidas que os turras poderiam desfechar sobre Catió.

Coube-me render o pelotão que ali estava, mal chegámos da ilha do Como. Apesar de constar que nunca tinha havido qualquer ataque, não deixou de nos causar calafrios...

A minha primeira medida foi reforçar a protecção com uma larga paliçada de bidões cheios de terra, a toda a volta. Soubemos depois, que o comandante de batalhão apreciou a medida com um largo elogio à hora do almoço, mal recebeu o meu telex cifrado.

Foi um mês regalado que ali passámos, em gostosa autonomia.Quando chegou o dia do pré, atrevi-me a fazer o pagamento. Um desastre que me serviu de lição para toda a vida: no final, quase fiquei só com um tostão do meu soldo, magro!

As ricas banhocas que tomávamos no largo açude que o rio formava, na maré cheia de cada dia, depois de lançarmos umas granadas defensivas, sempre eficazes, para afugentar a gula dos crocodilos abundantes, foram um dos nossos muitos lenitivos inesquecíveis…

Quando soou a hora de regressar à base, ninguém se importaria de ali ficar até final da comissão. Apenas a morte de uma gazela bébé, que eu não soube criar, me toldou de tristeza.

De volta ao Sete e Meio, não tivemos tempo de nos refazermos daquela bonança paradisíaca. Uma operação de envergadura estava programada para as matas densas do Cantanhês.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 8 de Setembro 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXI: Antologia (18): Um domingo no mato, em Ganjola (Luís Graça / José António Canoa Nogueira)

(...) "Já aqui referi o nome do lourinhanense e meu parente José António Canoa Nogueira, que morreu na Guiné em 1965: vd. post de 24 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXV: Homenagem aos mortos da minha terra (Lourinhã, 2005). E na altura recordei a notícia do seu funeral que eu próprio escrevi, na minha qualidade de responsável da redacção do quinzenário regionalista Alvorada. Tinha eu então 18 anos. Há dias repesquei essa notícia e dei conta que o jornal tinha publicado também a última ou uma das últimas cartas que o Nogueira terá escrito, antes de morrer em combate no sul da Guiné. Ele estava destacado em Ganjolá" (...).

(2) Vd. posts anteriores:
8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo

11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar

1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG
20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia
2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo
20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo

(3) Presumo que seja lapso do autor. O Rio Geba (ou Xaianga), o maior da Guiné-Bissau, fica na zona leste, e passa por sítios de que eu e outros camaradas desta tertúlia guardam muitas memórias, ora tristes ora alegres (Sonaco, Contuboel, Bafatá, Geba, Fá, Missirá, Mato Cão, Finete, Bambadinca, Nhabijões, Xime, Enxalé, Porto Gole, Bissau...).

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