Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 27 de janeiro de 2007
Guiné 63/74 - P1465: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (4): Os majores foram temerários e corajosos (João Tunes)
Portugal > Presidência da República > Antigos Presidentes > António de Spínola (1910-1996). Ocupou a Presidência da República de 15 de Maio a 30 de Setembro de 1974, data em que renunciou ao cargo, sendo substituído pelo general Costa Gomes. De 1968 a 1973, foi Governador-Geral e Comandante-Chefe da Guiné.
Fonte: Presidência da República Portuguesa (2007) (com a devida vénia...)
"Oficial oriundo da arma de cavalaria, começou a construir a imagem de chefe militar que vai onde os seus homens vão desde que, como tenente-coronel, se ofereceu para comandar um batalhão em Angola.
"Nomeado em 1968 por Salazar para governador e comandante-chefe da Guiné, no primeiro estudo da situação, apresentado por Marcelo Caetano, afirmava ter a guerra a finalidade de resistir para permanecer; ligava entre si a sorte de cada território, de modo a evitar as tentações do regime se libertar da ovelha negra que era a Guiné; e caracterizava o PAIGC como o movimento de libertação mais consequente de quantos se opunham ao colonialismo português, classificado por Amílcar Cabral como líder merecedor do maior respeito.
"A sua acção na Guiné cobre toda a panóplia de manobras politícas e militares, subordinando sempre esta àquelas e tendo por finalidade a conquista das populações. Promove coversações ao mais alto nìvel com Leopoldo Senghor; tentando chegar a Amílcar Cabral, procura cindir o PAIGC, num episódio de que resulta a morte de três majores da sua confiança; lança uma operação contra Conacri para derrubar Sekou Touré, mas realiza também congressos do povo, liberta presos políticos, cria uma força africana. Nunca um governador de provincía ultramarina, e muito menos um general, ousara ir tão longe.
"Em 1973, quando Marcelo Caetano proíbe a continuação dos contactos com o inimigo, Spínola compreende que deixou de ter lugar no regime e prepara a publicação de Portugal e o Futuro, bomba-relógio que iniciará a sua destruição".
Fonte: Extractos de: Centro de Documentação 25 de Abril, Universidade de Coimbra
Mensagens trocadas entre o Afonso M.F. Sousa e o João Tunes, durante a elaboração do dossiê O Massacre do Chão Manjaco (1):
1. Mensagem do Afonso M. F. Sousa > 21 de Novembro de 20006
Caro João Tunes:
Tudo muito claro. Obrigado pelo pormenor do testemunho. A famíla do Tenente-Coronel Joaquim Pereira da Silva [ um dos três majores assassinados,]parece estar mal informada quanto a:
(i) Não foi Ramalho Eanes que comandou a tropa que procedeu ao levantamento dos corpos, mas sim o Capitão Neves (comandante da CCAÇ 2586) (2)
(ii) Pereira da Silva não foi morto com uma catanada no estômago, quando muito foi com uma faca de mato. O Cap João Godinho (há altura, 1º Sargento da CCAÇ 2586) disse-me que um dos majores ainda tinha uma faca de mato espetada na zona do coração. Não se recorda em qual deles.
(iii) Spínola não estava na Metrópole (a pedido de Caetano), no dia do massacre (mas sim na Guiné).
De estranhar que, tendo a PIDE detectado a tempo que o desfecho da acção seria trágico, tenha permitido a sua execução sem sugerir uma segurança próxima e a necessidade dos oficiais levarem armas consigo.
Parece que ainda fica alguma obscuridade (mistério) sobre todo o envolvimento e o desfecho desta acção. Fica a dúvida se os majores tiverem todo o apoio necessário ou terão sido deixados entregues a si próprios nos últimos instantes. Mas para chorar os mortos, Spínola estava lá !...
Um abraço
Afonso M.F. Sousa
2. Resposta do João Tunes > 22 de Novembro de 2006
Caro Afonso Sousa,
(i) A versão que tenho como confirmada é que as mortes foram provocadas primeiro por rajadas de tiros e depois acabadas com facas. Mas não sei se as facas eram facas de mato, talvez fossem as facas-baioneta usadas com as kalash. Quem sabe mais pormenores sobre tudo isto é o Leopoldo Amado. Ele foi contactado?
(ii) Não sei se interessará muito, por uma questão de sensibilidade, escarafunchar junto da família do TC Pereira da Silva os pormenores. Por exemplo, esclarecê-los que ele foi morto com faca e não com catana. Tu saberás dar a volta ao eventual melindre.
(iii) Só sei que o Silva Cardoso, então responsável pelas Informações no QG, é dado como tendo convencido Spínola a não ir ao encontro (Spínola já tinha estado com os majores num 1º encontro com o PAIGC). A referência que fiz à PIDE é uma mera dedução, pelo papel que ela desempenhava no serviço de informações às FA. Aliás, como confirmei presencialmente, o Major Pereira da Silva trabalhava em íntima colaboração com o inspector da PIDE, em Teixeira Pinto, que tinha um papel primordial na obtenção de informações, na infiltração de informadores, etc. Entretanto, a direcção da PIDE em Bissau tinha as suas infiltrações junto e dentro da direcção do PAIGC. Pode ter ocorrido uma diferente avaliação da PIDE em Bissau e em Teixeira Pinto. E é natural que em Bissau (no QG e na PIDE) houvesse avaliações mais frias e mais realistas dos riscos que quem estava no terreno envolvido na probabilidade de um grande ronco e, nesse entusiasmo a quente, os riscos fossem menos medidos quanto a cenários pessimistas.
De qualquer modo, havendo contradições dentro do PAIGC, é natural que neste se desenvolvessem vários canais de acção - um mais virado para a traição (os mais receptivos à infiltração pela PIDE), outro (com ultra segurança e sob comando directo de Cabral) para fazer ronco contra o Spínola (tanto mais que eles deviam admitir como possível e provável que iam deitar a mão ao Caco e, quem sabe?, a selvajaria do comportamento deles não foi acicatado por terem visto que o Spínola não ia na delegação).
Entretanto, é natural que as precauções com a segurança de um general sejam superiores que para com majores e um alferes, como é superior de majores para furriéis e de furriéis para cabos. Assim, julgo que nada fundamenta dizer-se que os chacinados "não tiverem todo o apoio necessário ou terão sido deixados entregues a si próprios nos últimos instantes". Numa guerra, nada é 100% seguro. E eles tiveram, sem dúvida, foi um grande galo. Como tantos milhares de outros nossos camaradas que por lá cairam.
(iv) O Ramalho Eanes estava até os acontecimentos no QG em Bissau (conheci-o aí de vista ligeira quando fui lá colocado em serviço durante duas horas e por engano!). Foi para Teixeira Pinto depois da morte dos majores e para substituir um deles (Passos Ramos).
(v) Quanto à temeridade de os oficiais terem ido sem segurança e desarmados, há que ter em conta: aquele era o culminar de vários encontros e negociações anteriores em que tudo tinha corrido às mil maravilhas, havendo conquista total de confiança de parte a parte. E com escolta e armas não havia encontro (das vezes anteriores, também os do PAIGC apareciam desarmados).
Está fora de dúvidas que a traição do PAIGC no chão manjaco era um facto e ali, os dali, eles não faziam jogo duplo, trabalhando à revelia da direcção do PAIGC (provavelmente, já era um dos fios das rivalidades infra-PAIGC entre guineenses e caboverdianos). O que houve foi uma reacção enérgica da direcção máxima do PAIGC quando soube e ou faziam o que fizeram ou eram limpos sem apelo nem agravo pela justiça interna do PAIGC. Foi sob essa pressão que, no último momento, deram a volta. E o PAIGC também contava que, depois da chacina, as FA iam reagir com brutalidade e tornar irrecuperável a paz no chão manjaco e estragando todo o trabalho acumulado (como se confirmou posteriormente).
A direcção do PAIGC, in extremis, conseguiu vários roncos: recuperar a guerrilha local para a lealdade absoluta ao PAIGC (depois de matarem os majores, foi-se qualquer margem de futura traição); incrementar a combatividade desses guerrilheiros locais (para se limparem da nódoa do jogo de traição em que antes tinham estado metidos); perturbar a relação das FA com as populações pelo incremento da conflitualidade militar na zona; limparam 3 oficiais que eram a nata da oficialidade de Spínola (além do alferes). Só falharam no ronco maior de deitarem a mão ou matarem o próprio Spínola.
Num panorama destes, julgo que os majores foram corajosos e temerários, mas não inconscientes nem imprevidentes (o cenário era para aí de 95% de probabilidade de sucesso e grande ronco). Saíu-lhes a fava, acontecendo-lhes o que a qualquer um de nós podia ter acontecido em cada um dos dias que ali passámos - com um tiro, uma mina, uma emboscada, uma morteirada, um desastre de unimog. E obviamente que o que mais impressiona nisto é a forma bárbara como acabaram com eles mas os factores de efeito psicológico não são as traves mestras da guerrilha e da contra-guerrilha?
Abraços a todos.
João Tunes
3. Comentário do Afonso M.F. Sousa > 23 de Novembro de 2006
Obrigado João Tunes. Fala quem sabe !
Afinal as interrogações eram pertinentes.
A história da Guiné ainda é, aqui e ali, uma pequena manta de retalhos em que os diversos bocados por vezes não combinam. Um exemplo: a família do Major Joaquim Pereira da Silva encaixou que:
(i) foi Ramalho Eanes que esteve no local a proceder ao levantamento dos corpos;
(ii) Após serem surpreendidos pelas primeiras rajadas de metralhadora, envolveram-se em disputa física, tendo o Pereira da Silva Sido aniquilado com uma catanada no estômago;
(iii) Spínola estava na Metrópole, chamado para uma reunião com Marcelo Caetano.
Conclui-se, do cruzamento dos testemunhos (de quem esteve na zona), que isso não foi bem assim. Era aí que eu queria chegar. Não que esse apuramento dê à família algum estado de conforto, mas porque nos cabe, enquanto contemporâneos do acontecimento, ser agentes, tanto quanto possível, para a realidade histórica do nosso tempo..
A história leva o seu tempo a chegar à verdade. E quantas vezes, num primeiro momento, a realidade é adulterada. Quantas vezes alguma subjectividade impera, algum interesse obscuro se vislumbra, o que, forçosamente, tem de deixar alguma nebulosidade na realidade que se procura. A memória é base para a construção da interpretação histórica. Falar da memória é falar do testemunho, da pergunta e da resposta. Os depoimentos que envolvem esquecimentos, distorções, omissões e subjectividade, são lacunas que não ajudam à narração real e meticulosa da história.
Obrigado pela mestria da sua análise, praticamente incontestável.
Um abraço
Afonso Sousa
______
(1) Vd. posts anteriores:
17 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1436: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F.Sousa) (1): Perguntas e respostas
18 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1445: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F.Sousa) (2): O papel da CCAÇ 2586 (Júlio Rocha)
19 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1446: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M. F. Sousa) (3): O depoimento do 1º sargento da CCAÇ 2586, João Godinho
(2) Vd. post de 20 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1448: Os quatro comandantes da CCAÇ 2586 (A. Santos)
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