quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

Guiné 63/74 - P1458: Bombolom XV (Paulo Salgado): Contos mandingas, de Manuel Belchior, ou a sabedoria dos guineenses


Guiné > Região do Oio > Farim > Olossato > O Alferes miliciano Salgado, em cima do capô dum GMC, e devidamente assinalado por um círculo a vermelho. Fazia parte da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72), e era seu comandante o capitão de cavalaria Mário Tomé. O Olossato fazia parte do chão mandinga.

Foto: © Paulo Salgado (2005). Direitos reservados.


Mensagem do Paulo Salgado (1), ex-alf mil Alferes miliciano da CCAV 2721 (Olossato e Nhacra, 1970/72), que teve como comandante o capitão de cavalaria Mário Tomé, hoje coronel na reforma (2)


Meu Caro Luís Graça,
Camarada e Tertuliano:

Não é demasiado: os nossos contributos - de todos os tertulianos, com muitos e diferentes pontos de vista - não existiriam, não cresceriam, não ganhariam voz e dimensão, não fora o teu trabalho, a tua paciência, a tua sagacidade, o teu sentido de independência face às saborosas e dignas diferenças de ideias sobre a guerra (ultimamente tem sido produzida matéria de discussão, onde eu pretendo dar a minha achega, como já fiz anteriormente, pelo menos uma vez).

Quero - uma vez mais (põe isto blogue, por favor) - dar-te um abraço de muita consideração.

Comecei assim este meu contributo - que, julgo ter esse direito, deverá a continuar-se a chamar bombolom - para, uma vez mais, e da minha parte dar destaque a aspectos que, tendo muito que ver connosco (ex-militares na Guiné), se afastam, a maior parte das vezes, do que foi a guerra, como a vivemos, como a julgámos e julgamos, hoje.

O meu contributo de hoje é trazer uma história contada pelo historiador e cientista (por que não?!) Manuel Belchior, que escreveu várias obras sobre África e, em especial, sobre a Província da Guiné (era assim, lembrais-vos todos).

A sentença da lebre ajuda-nos a compreender, através da intervenção de animais e humanos (em comunhão de linguagem e de partilha de dúvidas) como os homens se comportam, como existem, em toda a parte, em qualquer latitude ou longitude, os ladinos, os malteses, os indiferentes, os acomodados, os sacrificados.

Sendo possível publicá-la, seria interessante, pois serviria para nós meditarmos um pouco sobre a natureza humana, e, em especial, relembrarmos como é grande a alma dos guineenses, ou dos alentejanos, ou dos transmontanos (que sei eu?) na sua sabedoria popular.


Paulo Salgado

PS - Voltaremos a contos e estórias (de guerra, serão algumas)

_________

A sentença da Lebre

In: Contos Mandingas, de Manuel Belchior (1971) (3)
(com a devida vénia, ao autor e à editora).


Certo crocodilo abandonou as margens do rio em que habitava e resolveu partir em guerra contra os animais da floresta. Porém, bem depressa viu quão infeliz havia sido a sua decisão e quão pouco preparado estava para viver e lutar num meio que não era o seu, pois somente por milagre escapou de ser reduzido a cinzas por uma grande queimada e, ainda meio tonto e chamuscado, estava a ser atacado por um bando de jagudis (*) que não lhe poupavam as sua valentes bicadas, quando foi salvo por um moço pastor ao qual angustiosamente pediu:
- Por quem és, tira-me deste lugar onde a morte me espreita e leva-me para o rio de onde nunca devia ter saído. Anda, faz-me esse favor, que te serei eternamente grato.
- De boa vontade o faria – disse-lhe o moço – se isso não fosse tão perigoso para mim. Agora que te vês em perigo, pedes com muito bom modo e tudo prometes; mas que sucederá, quando chegados ao rio, eu te soltar, ficando, assim, completamente, à tua mercê?

O grande lagarto lamuriou, afirmando que isso que isso era impossível, que não tinha tanta maldade e ingratidão, e de tal maneira o medo da morte o tornou eloquente e o fez parecer sincero, que o rapaz, comovido, se deixou convencer. Por sugestão do próprio crocodilo, o pastor amarrou-lhe as mandíbulas com uma corda feita de casca de árvore, e ligando-lhe solidamente o corpo a uns paus, pô-lo à cabeça e assim o transportou.

Quando atingiram as margens do rio e o rapaz se preparava para o depositar no solo, o crocodilo pediu-lhe que entrasse na água porque o seu estado de fraqueza era tal, que não poderia, por si só, transportar-se até lá. O moço concordou e, ao dar-lhe a água pelos joelhos, quis parar, e novamente o crocodilo lhe pediu que fosse um pouco mais longe até a água dar-lhe pelas coxas e também mais uma vez o pastor lhe fez a vontade.

Quando, por fim foi descarregado e se viu completamente solto, com as mandíbulas desamarradas e a meio do rio onde as vantagens eram todas suas, o jacaré agradeceu efusivamente ao rapaz o enorme favor que lhe prestara; mas disse-lhe que, apesar de tudo quanto lhe havia prometido, ia comê-lo porque devorar as pessoas e animais que estavam ao seu alcance era uma lei natural a que não podia faltar sem incorrer no desagrado dos seus antepassados que nunca tinham feito outra coisa. Decerto dissera que pouparia o seu salvador – mas que promessas não se fazem quando se está à beira da morte?

Bem argumentou o pobre pastor, falando de injustiça, mas o crocodilo não saía da sua e, certo que todos compreenderiam que o levava a obedecer a uma lei fatal que não lhe deixava margens para sentimentalismos, aceitou a proposta do rapaz para que fossem ouvidos os três primeiros seres que chegassem ao rio.
- Se todos forem da tua opinião – dizia o pastor – então terei de confessar que fui um parvo e a culpa de ser comido é inteiramente minha.

O primeiro animal que veio beber água ao rio foi um cavalo. Ouviu atentamente o que lhe disseram as duas partes em litígio, e por fim, sentenciou:
- O rapaz não tem razão; não há promessa que valha quando ela vem contra um costume que sempre existiu e há-de existir. É da natureza do crocodilo comer os animais que puder. E dito isto, foi muito tranquilamente pastar.

A seguir apareceu uma velha que, depois de informada do que se passara, disse:
- Como ousas tu, rapaz, falar de injustiça e de ingratidão? Pois não é verdade que todos os homens são uns ingratos? Olha para mim e vê como estou mal vestida e maltratada. No entanto, já fui nova e bonita e o meu marido prometeu que gostaria sempre de mim. Mas agora, que tomou novas mulheres, não me liga a menor importância (**). Se tu chegares a casar, serás como ele. Portanto, como os homens não dão mais valor às promessas que fazem do que o crocodilo à sua, a minha opinião é que deves ser comido.

Finalmente surgiu a lebre. O rapaz, amargurado pelos pareceres anteriores, quando acabou de expor a questão, disse:
- Tu és o último dos três seres que consultámos e também a minha última esperança. Os outros dois deram razão ao crocodilo e disseram que aquilo que eu penso ser uma ingratidão é coisa perfeitamente natural. Diz-nos a tua opinião.

A lebre ouviu muito bem aquilo que ambos disseram, mas afirmou que nada entendera porque o seu ouvido já não era bom dada a sua avançada idade. Deste modo, se quisessem que ela pudessem julgar com segurança, tornava-se necessário virem até à margem. Assim fizeram, e a lebre, depois de ouvir novamente a exposição do caso, e antes de entrar no fundo da questão, recusou-se a acreditar que o rapaz tivesse podido transportar um crocodilo tão grande como aquele desde a floresta até ao rio. A menos que visse com os seus próprios olhos como o caso tinha sido possível, ela pensaria que estavam a rir-se de si. Se é facto que dava maçada fazerem novamente a caminhada até à floresta, ela contentava-se ver como o moço pudera pôr o crocodilo à cabeça sem que ele escorregasse.

Então, tanto o jacaré como o rapaz se prestaram a uma pequena demonstração em que o primeiro foi novamente amarrado e posto nas melhores condições de ser transportado.
Quando viu o anfíbio bem ligado e à cabeça do moço pastor, a lebre perguntou a este:
- Há algum tabu a respeito da carne de crocodilo? (***) Vocês gostam dela e costumam comê-la?
- Não existe nenhum tabu a tal respeito e todos nós gostamos dela.
- Então estou a ver que também para ti é uma lei natural comer o jacaré. Desobedeceste a ela por bondade quando na floresta o tiveste à tua mercê, e ainda por cima o salvaste. Se agora que ouviste as razões desse velhaco, que aumenta a sua ingratidão fazendo-a passar por coisa natural, ainda o poupares, deixarás de ser bom para seres simplesmente um imbecil. Já que ele voltoua estar em teu poder, leva-o para casa e come-o.

__________

(*) Ave de rapina muito conhecida em toda a Guiné, aparecendo nas povoações onde é poupada e até protegida porque faz desaparecer a carne dos animais em decomposição – aqui para nós, Lucinda: vi com os meus olhos, os jagudis comerem as placentas lançadas ao terreiro descampado do Hospital de Bissau!!! – não se admire.

(**) A mulher deste conto apresenta aqui uma queixa muito vulgar entre as esposas dos polígamos (os muçulmanos, os animistas, são polígamos.

(***) Alguns clãs não podem, por motivos religiosos, matar nem comer, o jacaré. Daí esta pergunta da lebre.

NOTA: A lebre representa, em muitas partes da África ocidental, a esperteza, a inteligência, a malícia salomónica, de resolver os assuntos.


_____________

Notas de L.G.:


(1) Vd. último post do Paulo Salgado: 11 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1421: Crónicas de Bissau (o 'bombolom' do Paulo Salgado) (14): Um final com homenagem a um homem grande, Fernando Sani

(2) Sobre o Mário Tomé, vd. o seguinte post:


UDP > Textos > Guerra Colonial > Trocando Umas Ideias Sobre a Guerra Colonial, Mário Tomé, 29 de Setembro de 2003 (artigo publicado em Público de 29 de Setembro de 2003)



(...) "Grosso modo, Portugal, com 10 milhões de habitantes, fez um esforço de guerra em África cerca de nove vezes superior ao dos EUA, no Vietname, com os seus 250 milhões de habitantes. Portugal mobilizou para a guerra colonial mais de 800 mil jovens, teve 8 mil mortos, 112.205 feridos e doentes, 4 mil deficientes físicos e estima-se que cerca de 100 mil doentes de stress de guerra. 40% do OE destinava-se á Defesa. A isto há que acrescentar a sangria de milhão e meio de emigrantes entre 60 e 74.


"A Guiné estava perdida, reconhece o nosso historiador, ao considerá-la um mini-Vietname" (...)

(3) Manuel Belchior: Contos mandingas. Porto : Portucalense Editora. 1971. 336 pp. Vd. sítio Memórias de África. (Colecção Ultramar).

Sem comentários: