domingo, 1 de junho de 2008

Guiné 63/74 - P2910: Estórias de Juvenal Amado (10): A patrulha nocturna (Juvenal Amado)



Juvenal Amado
Ex-1.º Cabo Condutor,
CCS/BCAÇ 3872
Galomaro,
1972/74



Galomaro> Juvenal Amado equipado para qualquer eventualidade, mesmo para uma emboscada nocturna de castigo.
Foto: © Juvenal Amado (2008). Direitos reservados.



Mais uma narrativa da série Estórias do Juvenal Amado (1).
Desta vez uma emboscada nocturna, de castigo, com um grande susto à mistura.

A patrulha nocturna
por Juvenal Amado

Deitado na escuridão perto de mim o Silvestre, tomava posição à minha esquerda.
Para os meus camaradas, já tão habituados, era mais uma patrulha nocturna. Para mim que tantas vezes os levei para essas mesmas patrulhas, era a primeira vez.

Era uma noite particularmente escura. O silêncio total ampliava os sons da natureza selvagem. Qualquer ruído era motivo de sobressalto e da máxima atenção. Meditava no que me tinha levado, a fazer aquela patrulha nocturna por castigo.

As colunas a Bafatá tinham sempre muitos voluntários. No início do mês com o pré fresco no bolso, era uma corrida para ver quem ia. À medida que o mês avançava, ia diminuindo a oferta mas sempre se arranjava malta, para coluna que trazia o correio.

O furriel Claudino era o responsável pela coluna. Entre outros iam o Caramba, Ivo, Silva, Aljustrel, etc.

No restaurante do Libanês na rua principal, comemos febras de porco batatas fritas e ovo a cavalo, bebemos uma garrafa cada um de Dão branco muito fresco. Como um prato tão simples nos transportava para casa e para outra época, em que não comíamos com a espingarda e um monte de granadas, penduradas nas costas da cadeira.

Rematamos com um charuto e whisky, oferta da casa. Antes já tínhamos bebido umas cervejas. Tudo isto se passava entre as 10 e as 11, 30 horas da manhã.

Uma coluna de Canquelifá, também lá estava nesse dia e como de costume, eram bem regadas as visitas a Bafatá.

Bem bebidos, foi uma carga de trabalhos, para juntar o pessoal e regressar a Galomaro. Quem guiava era o meu condutor periquito.

Quando chegámos, fora de horas, ao entrarmos na porta de armas, demos de trombas com o Comandante, que de cara carrancuda e bengalim na mão, ficou a ver o espectáculo que foi o furriel cair da Berliet abaixo, quando tentava manter algum aprumo. O Silva a arrastar a espingarda pela bandoleira parada fora, como se um cão se tratasse e todos muito entornados. Era na verdade um espectáculo deplorável, aquele que nós apresentávamos.

Aí está o Tenente Raposo de papel na mão, para recolher os números de ordem. Íamos levar uma porrada. E logo no fim da comissão.

Apanhámos todos vários castigos. Reforços no quartel, nos postos avançados e alguns de nós, também apanhámos patrulhas nocturnas, mas o pior de todos foi a proibição, de voltarmos a Bafatá até ao fim da comissão.

A coisa só ficou por ali, porque o capelão em regresso de Bissau, vinha integrado na coluna e intercedeu por nós, dizendo que não nos tinha visto fazer má figura na cidade.

E ali estava eu na escuridão, emboscado entre Campata (*) e Cansamba na direcção do Dulombi, com dez ou doze quilómetros, para fazer a pé até ao Quartel.

Havia um trilho e o pelotão do Pel Rec estava posicionado em “L" mais aberto, aproveitando uma curva. São talvez 20 horas.

Deitado de bruços com a G3 apoiada à minha frente não via hora de regressar ao quartel tomar um banho e deitar-me.

O Comandante do Batalhão de Bafatá tinha telefonado ao nosso, contando-lhe que a malta da CCS do BCAÇ 3872 andava de rastos a correr todos os sítios onde houvesse de beber. Na verdade os gajos de Canquelifá, também andavam bem tratados e a figura deles não era melhor que a nossa. Só que eles não tinham lá o Castro e Lemos.

Nisto fico com o sangue gelado. Há movimento no trilho. Ouvem-se distintamente os passos de vários pessoas a caminhar. Ninguém se mexe. Os homens da frente deixaram passar, ouvimos vozes de crianças. Era um homem e duas mulheres com duas ou três crianças que regressavam a uma aldeia próxima.

Não fizeram ideia de que passaram tão perto da morte. Ali ficámos uma hora ou mais, estava cada vez mais escuro. O Furriel Castro deu a ordem de regresso.

Agora é que ia ser o bom e bonito. Não via nada, o Ivo ia à minha frente no seu caminhar bamboleante, de quem estava habituado a caminhar no mato, com o peso das granadas e cartucheiras. Ao passar afastava o ramos que por sua vez, me vinham bater na cara. Aqui caio e ali me levanto, esta marcha está a ser um tormento. Estou mesmo com medo de me perder, tal é a escuridão.

Como solução o Ivo, desengata a bandoleira da G3, estende-ma e é assim comigo atrelado, que chegamos perto de Galomaro.

Vê-se as luzes do arame farpado. São praticamente 11 horas e 30 minutos quando retirámos a bala da câmara e entrámos no destacamento.

À nossa espera está um banho e a bianda com estilhaços que é o prato mais famoso do restaurante da Morte Lenta.

Já estou com saudade do restaurante do Libanês. O pior do castigo, é mesmo não poder integrar, mais nenhuma coluna a Bafatá.

Efectivamente voltei a Bafatá, integrado em colunas de Cancolim, mas muitos dos que estavam comigo naquele dia, nunca mais lá voltaram e assim se cumpriu a proibição.

Juvenal Amado

Anotação de Juvenal Amado

(*) Campata era uma aldeia com autodefesa feita por milícias oriundos da população.

Uma das particularidades deste grupo armado, treinado e pago por nós, era o de ser comandado por um chefe fula, que estava em permanente litigio com o chefe religioso da povoação, porque bebia cerveja e comia carne de porco. Todos nós sabemos que são duas coisas, completamente proibidas pela sua religião.

Esta aldeia foi atacada violentamente, originando muitos feridos na população.
Os tectos a arder, caíram sobre quem dormia dentro das casas e queimaduras graves, em alguns habitantes foi o resultado. Entre os queimados, estava um menino chamado Mamadu, que ficou com as costas, um braço parte da barriga e peito, numa chaga.

Também foi um dia negro para a guerrilha, pois deixou seis mortos no terreno. Fomos com as viaturas até perto das Duas Fontes, sem luz e lentamente aproximamo-nos da aldeia. Regressamos de madrugada com os feridos e um guerrilheiro, que veio a falecer pois estava gravemente ferido.

O Mamadu sofreu muito, embora tratado pelo dr Pereira Coelho, o furriel enfermeiro Graça e o enfermeiro Catroga, com o máximo de cuidado. Todos os dias eram mudadas as compressas e os gritos do menino, eram atrozes. Ficou a viver no quartel quase dois anos. Bastante deformado, voltou para Campata quando tudo estava cicatrizado.
A aldeia também foi reconstruída, seguindo os mesmos processos que relatei sobre Bangacia (2).
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Notas de CV:

(1) - Vd. último poste da série de 25 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2882: Estórias de Juvenal Amado (9): Há dias de sorte

(2) - Vd. poste de 23 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2575: Estórias do Juvenal Amado (4): A pequena e adorável Mariama que eu conheci no reordenamento de Bengacia (Juvenal Amado)

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