domingo, 20 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5508: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (11): Esta água tem pouco vinho

1. Mensagem de José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 19 de Dezembro de 2009:

Caro amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás mais uma pequena história palaciana.

Mais um Natal se aproxima. Para todos os camaradas aqui ficam os meus votos de um muito Boas Festas, muita saúde, e muita alegria na companhia de todos aqueles que vos são muito queridos.
Mas bom mesmo seria que todos nós pudessemos fazer Natal todos os dias do ano.

Um abraço do tamanho do Atlântico que nos une,
José Câmara




Esta água tem pouco vinho

Os camaradas que passaram pelo AGRBIS no início do ano de 1971, devem lembrar-se que o vinho servido nos refeitórios era bastante aguado e, quase sempre, mais quente que o desejável.

Uma manhã, regressado do serviço ao Palácio, o José Francisco Serpa, um florense da Ponte da Fajã Grande, soldado da CCaç 3327 e da minha Secção contava, alegremente, ao Comandante da Companhia que, como faxina de serviço, tinha levado as amostras do rancho ao Capitão, Ajudante de Campo do General Spínola. Para o seu estado hilariante tinha contribuído o facto do referido Capitão ter reconhecido que a água tinha pouco vinho.

Mal sabia eu que a história se repetiria, com consequências bem diferentes.

Dias depois, estando eu de serviço no Palácio, fiz as amostras das iguarias do dia e, com um Soldado da Guarda, dirigi-me ao gabinete do Capitão, mas este não se encontrava lá. Por indicação de um Alferes dos Serviços de Apoio, soube que o Capitão estava na Sala de Reuniões. Bati à porta que, ao abrir-se, deu para perceber que ali estava a ter lugar uma reunião de Altos Comandos Militares da Guiné, sendo o Capitão o graduado mais novo na sala.

Pedida a devida licença para entrar, o Capitão sugeriu que os graduados mais antigos provassem as iguarias do dia. Um oficial da Marinha, Contra-Almirante, se bem me recordo, limitou-se a dizer que provaria o vinho enquanto um Coronel da Força Aérea disse que provaria o peixe.

Assim começou a odisseia do dia.

O oficial da Força Aérea ao tentar espetar o garfo no peixe, teve o azar da posta dar um pequeno salto no prato e quase cair ao chão. De imediato interpelou-me se eram só cabeças de peixe que iriam ser servidas aos Guardas do Palácio. Retorqui que não tinha a certeza, mas que aquela não sendo a maior era a mais bonita que tinha vindo. Com a minha resposta arranquei uma gargalhada de boa disposição daqueles homens.

O melhor estava para vir. O oficial da Marinha provou o vinho e perguntou aos presentes se também o queriam fazer. Todos disseram que não. Então aquele oficial perguntou-me se eu costumava beber daquele vinho e se eu gostava dele. Respondi-lhe que bebia, mas que não gostava de vinho com água.

- É isso mesmo! Esta água tem pouco vinho - disse o Contra-Almirante.

Para minha surpresa, perguntou-me se eu sabia porque é que o vinho era tão aguado. Nessa altura reparei que o meu soldado chocalhava como uma debulhadora na faina do trigo lá na terra. Do Capitão apercebi-me de um pequeno sinal de cabeça a incentivar-me à resposta que saíu, essencialmente assim:

- Muito possivelmente acrescentam água ao vinho para cortarem a força do álcool. Também sei que acrescentam algum gelo que, como pode reparar, já se derreteu. O essencial seria ter jarros para vinho, jarros para água e uma terrina com gelo. Assim, cada um beberia o vinho como mais gostasse.

O oficial da Marinha de imediato deu ordem ao Capitão para informar o Coronel Santos Costa, mais conhecido pelo apelido Onze para, a partir daquele dia, passar a servir vinho, água e gelo em recipientes separados.

E assim se cumpriu. No AGRBIS passamos a beber vinho como nos aprouvesse.

No palácio, pelas experiências que eu vivi, aprendi grandes lições para os dias que se avizinhavam nas minhas deambulações pela província da Guiné, quiçá para a minha vida. Entre elas, foram marcantes a humildade e a compreensão que vi, sempre, estampadas naqueles homens que tinham a capacidade de decidir. Porque o respeito dos outros se conquista pela força do carácter, da honestidade e do exemplo, eu apreendi a respeitar aqueles homens.

Dias depois seguiria para a Mata dos Madeiros.

José Câmara
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5469: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (10): As palmas das vitórias de uma Guerra que não era nossa

5 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro José da Câmara

Essa tua aventura com o vinho 'benzido' acabou por te sair bem, mas olha que a probabilidade de ter outra evolução também não seria desprezável...
Um abraço
Hélder S.

Fernando Gouveia disse...

Em Bafatá era voz corrente que o pessoal embarcadiço que fazia o transpote dos barris de vinho, de Bissau para Bafatá, costumava retirar parte do vinho de cada barril e acrescentar com água do Geba.
Refiro ainda que o gelo, para mim, deveria ter uma temperatura bem mais baixa.

Fernando Gouveia

Anónimo disse...

É muito difícil contar histórias tão simples e aparentemente pouco interessantes e dar-lhe este cunho tão positivo. Nesta quadra em que se apela à compreensão e solidariedade, esta história traz bem vincada a tolerância que caracterizam os teus escritos. Encontras sempre um aspecto positivo nas situações por que passaste. Contas as tuas histórias palacianas (do tal "ar condicionado") com o mesmo entusiasmo com que contas as situações difíceis do mato. Referes-te aos oficiais superiores do mesmo modo que aos teus camaradas do SMO (Serviço Militar Obrigatório). Em vez de constantes recriminações, tentas compreender e valorizar, retrospectivamente, as atitudes dos outros. Procuras apaziguar em vez de recriminar.
Um Feliz e Santo Natal junto de todos os teus, são os meus sinceros votos.
Um abraço do
Carlos Cordeiro

Luís Graça disse...

A vocação do nosso blogue é contar e divulgar histórias... O José da Câmara é um bom contador de histórias, um observador arguto, um actor cúmplice, e um homem bem humorado e sensato... Esteve, além disso, próximo (fisicamente falando) de Spínola e da sua "corte"...

Dir-me-ão que esta história não acrescenta nada á História da H grande, de Portugal, da Guiné, e da guerra colonial... Estou parcialmente de acordo, se bem que eu valorize (e me interesse por) a socioantropologia do quotidiano da guerra, daquela guerra...

Se vocês relerem os versos dos diversos cancioneiros, as preocupações, quase obsessivas, dos nossos militares no TO a Guiné, era com o "aconchego do estômago" e o "espectro da fominha"... O que vamos comer hoje ? Será que há vinho ? A cerveja está geladinha ? Já acabou ? Quando é o próximo reabastecimento ? Relemnro aqui o Cancioneiro do Xime, ou melhor, do destacamento da Ponta do Inglês:

CANÇÃO DA FOME

Estamos num destacamento,
A favor de sol e vento,
Na Ponta do Inglês.
Não julguem que é enorme
Mas passamos muita fome,
Aos poucos de cada vez.

A melhor refeição
Que nos aquece o coração,
É de manhã o café;
Pão nunca comi pior
Nem café com mau sabor
Na Província da GUINÉ.

Ao almoço atum a rir
E um pouco de piri-piri,
Misturado com Bianda,
E sardinha p´ró jantar
E uma pinga acompanhar
Sempre com a velha manga.

Falando agora na luz
Que de noite nos conduz
As vistas par' ó capim:
Se o gasóleo não vem depressa,
Temos Turras à cabeça,
Não sei que será de mim.

Quando o nosso coração bole,
Passamos tardes ao Sol
Junto ao Rio, a esperar
De cerveja p'ra beber
E batatas p'ra comer
Que na lancha hão-de chegar.

A fome que aqui se passa
Não é bem p'ra nossa raça,
Isto não é brincadeira
E com isto eu termino
E desde já me assino:

Manuel Vieira Moreira
1.º Cabo Mec Auto da CART 1746, (Ponta do Inglês e Xime, 1967/69)


Xime, Ponta do Inglês, 28/01/1968

Anónimo disse...

Caro José da Camara

Esta maneira de relatar as tuas"estórias palacianas"é única e traduzem por sistema a ideia verdadeira de que nos "ares condicionados" de Bissau tambem havia muita gente "normal".Estou em crer que essa era a regra.

Pena que a ordem dada não fosse extensiva ao resto da Guiné!?!

Um abraço
Luis Faria