sábado, 13 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5810: (Ex)citações (57): Os maus exemplos de um 1.º Sargento (Manuel Marinho)

1. Mensagem de Manuel Marinho* (ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Nema/Farim e Binta, 1972/74), com data de 7 de Fevereiro de 2010:


OS MAUS EXEMPLOS

Binta, mais um dia de saída para o mato que era rotina quase diária, procede-se à distribuição das rações de combate, entre nós fazem-se as respectivas trocas de latas, uns gostam da dobrada, outros de conservas, outros ainda preferem apenas os sumos, enfim vocês sabem como era.

Em frente a nós, nesses amanheceres, junta-se um conjunto sempre elevado de miúdos que nos observam nos nossos preparativos, de latas vazias de calda de pêssego na mão, esperam a já habitual distribuição pela nossa malta das possíveis sobras que os nossos organismos já não consomem, por efeito de saturação dos mesmos.

O que começou por ser coisa sem a mínima importância, dar algumas latas de ração, tornou-se numa obrigação por culpa do nosso 1.º.

Distribuem-se latas das rações de combate pelos miúdos, perante a sua alegria incontida, fazemos apelos aos camaradas para que dêem o que não vão comer, estas cenas começaram a ser habituais e causaram azia a um 1.º Sargento que um dia resolveu intervir para acabar com estas pequenas generosidades.

Dirigiu-se a nós e disse mais ou menos isto:

- Esta merda tem de acabar! - Vocês estão a alimentar os filhos dos turras, com o comer do Exército! Estão a dar maus exemplos, depois não se queixem!

Neste caso era uma excepção à regra, mas quantos havia a pensar assim? Adiante….

Perante os nossos protestos e algumas bocas dirigidas ao mesmo, dizendo-lhe que as únicas vítimas inocentes naquela guerra eram as crianças e em surdina, dizíamos:

– Vai mas é para o mato!

As coisas ficaram por ali, mas serviu para comentarmos entre nós a forma de abastecer ainda melhor a miudagem.

Então quando comíamos (mal) no barracão a que se chamava refeitório, as sobras eram entregues aos miúdos que esperavam a distância conveniente, longe de olhares indiscretos para evitar chatices, e lá iam eles todos contentes para as suas tabancas, com as latas fornecidas.

Mesmo alguns dos nossos camaradas (poucos) faziam cara feia, quando ao terminar as nossas refeições, se recolhiam os restos para depois lhes encher as latas, era preciso fazer pedagogia e apelar aos seus melhores sentimentos, o que em verdade se diga não era difícil.

Mesmo que assim fosse, o Exército não dava alimentação decente para o qual tinha todas as obrigações de o fazer, e o que dávamos aos miúdos, não compensava os prejuízos de cabritos que surripiávamos aos pais, para suprir a nossa alimentação.

Convém dizer que se tentava quase sempre a compra junto da população de animais para a nossa alimentação, galinhas, porcos e cabritos, o que não era tarefa fácil, em virtude das suas crenças religiosas.

Tudo o que era negro, era turra ou parente aproximado, e depois nós que andávamos no mato com as milícias, que faziam a mesma guerra ao nosso lado, ouvíamos muitas recriminações e críticas a estas manifestações raciais de mau gosto.

A estas atitudes não era alheio o facto de termos vivido Guidaje, já que deixou revoltas mal resolvidas entre nós, e pelo facto de por essa altura haver sempre Companhias em permanência por causa das colunas que eram feitas, e o desgaste a que éramos submetidos, em permanentes escoltas e patrulhamentos, e a fazer as guardas de sentinela aos postos durante a noite, com intensa actividade operacional, era natural a nossa hostilidade, a comportamentos menos correctos por parte de quem tinha obrigação de dar exemplos.

Felizmente esta foi uma voz isolada, num contexto de guerra em que muitas atitudes similares agravaram o que já era complicado, e foi um acto que não se repetiu porque a razão estava do nosso lado.

Um grande abraço para todos vós.
Manuel Marinho

Foto 1 > Binta > Novembro de 1973 > Elementos do 1.º GCOMB a petiscarem no barracão que servia de caserna. Marinho é o 4.º a contar da esquerda.

Foto 2 > A mesma malta mas tirada do lado contrário.

Foto 3 > Nema > Março de 1973 > De cócoras, eu e o Chico Santos, jogador de futebol do Varzim, e de pé o Tavares, um herói de Guidaje.
Fotos: © Manuel Marinho (2010). Direitos reservados.

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 14 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5644: Blogoterapia (138): Detecção de minas por picagem (Manuel Marinho)

Vd. último poste da série de 3 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5754: (Ex) citações (52): Falando de descolonização com Filomena Sampaio (José Brás)

6 comentários:

Julio Vilar pereira Pinto disse...

Eu estive em Angola e sobre os Sargentos do quadro (chicos) nunca vi bons exemplos, salvo muito popucas excepções.

Amilcar Ventura Ex. Furriel Mil da 1ª comp BCAV8323 disse...

EU TIVE DOIS SARGENTOS CHICOS QUE QUERIAM FICAR COM OS PRÉMIOS DE ESPECIALIDADE DOS MEUS CONDUTORES, MAS QUERO AQUI DIZER QUE NÃO ERAM TODOS IGUAIS.

Carlos Vinhal disse...

Já que falamos de Sargentos do QP, tenho que dizer que na minha CART 2732, os dois Segundos que embarcaram connosco, o senhor João da Costa Rita e o senhor António da Piedade dos Santos, este hoje TCor Ref, eram uns bons camaradas que aturaram sempre a rebeldia dos nossos verdes 20 anos.

Quanto a um Primeiro, que felizmente esteve pouco tempo connosco, era um intratável.

Um abraço
Vinhal

JD disse...

Manuel,
Enquanto lia, cheguei a pensar que o dito passasse a restringir na quantidade de géneros para o rancho. Afinal, não passou de desabafo sobre os turras que ele via em todo o lado. É natural que os visse, e por isso duvido que fosse para o mato.
Na minha Companhia passaram quatro sargentos. Dois eram terríveis, encheram-se!
Dos outros dois,um foi para Bissau antes de entrarmos em quadrícula, e tenho dele uma boa impressão; do outro, que chegou no final, tenho a convicção de que, naquele tempo, seria incapaz de roubar. Só não sei se aceitou alguma coizinha dos mabecos.
Aos poucos, através da História da C.Caç.2679, ficaremos a conhecê-los melhor.
Abraços Tabancais
J.Dinis

MANUELMAIA disse...

CARO MANUEL MARINHO,

OS SARGENTOS DO QUADRO PERMANENTE TINHAM A FAMA E MUITAS VEZES O PROVEITO DE SE "AGASALHAREM COM ALGUM",MAS DEVO DIZER-TE QUE NÃO ERAM A UNICA CLASSE A FAZÊ-LO...

CONHECI UM CASO EM QUE UM COMANDANTE DE QUARTEL,TENENTE CORONEL,( CÁ NO CONTINENTE) SACAVA O PRÉ DOS SOLDADOS QUE "DESENFIAVA" PARA CASA( O QUE LHES AGRADAVA POIS PODIAM TRABALHAR CÁ FORA E ASSIM PROPORCIONAR ÀS FAMÍLIAS MAIS UNS COBRES...)ENQUANTO A VERBA DESTINADA À ALIMENTAÇÃO DOS AUSENTES( OS ALIMENTOS NÃO CHEGAVAM A SER CONFECCIONADOS E POR ISSO MESMO ERAM VENDIDOS AOS OUTROS MILITARES)ERA "AGASALHADA" PELO DITO CUJO EM PARCERIA COM MAIS ALGUNS,SENDO CERTO QUE SARGENTOS DO Q.P. FARIAM PARTE DO CONLUIO...

E QUE DIZER DO FAMOSO CAPITÃO EXPULSO DO EXÉRCITO POR RECEBER COMISSÕES NA COMPRA DE PRODUTOS ALIMENTARES, QUE DESCOBERTO FOI
"SACUDIDO" POR INDECENTE E MÁ FIGURA E MAIS TARDE MERCÊ DE UMA HABILIDADE QUE ENVOLVEU UM RELÓGIO DOADO POR UM OUTRO CAPITÃO GRADUADO EM GENERAL -DEVIDO À FUNÇÃO QUE EXERCIA- E QUE O 1º COMPROU PARA DEVOLVER AO DOADOR,SERIA READMITIDO, GRADUADO EM MAJOR( "TÍTULO" QUE HOJE OSTENTA À FALTA DE UM ENGº OU DR. ATRÁS DO NOME E CIRANDA POR AÍ NA POLÍTICA E NA ALTA VIGARICE)???

FOI MUITA GENTE A SACAR,E NÃO SÓ OS SARGENTOS DO Q.P.

NUNCA GOSTEI DE TROPA,DEVO TER SIDO, PORVENTURA,O MAIS BALDAS DOS MILICIANOS,MAS ENTENDO QUE O EPÍTETO DE DESONESTIDADE ATIRADO AOS SARGENTOS DO Q.P. É DE CERTA FORMA ABUSIVO,PORQUANTO NEM TODOS SE "ORIENTAVAM",ASSIM COMO HAVIA OFICIAIS E ATÉ PRAÇAS ENVOLVIDOS NOS ESQUEMAS...

E AQUELE TENENTE CORONEL QUE POR ALTURAS DA APANHA DA AZEITONA DESTACAVA TODOS OS DIAS UM GRUPO DE COMBATE PARA VAREJAR E APANHAR A AZEITONA DA SUA QUINTA USANDO A MÃO DE OBRA,OS CARROS E COMBUSTÍVEL DO EXÉRCITO,PARA ALÉM DE PANOS DE TENDA PARA ESPALHAR NO CHÃO???

HOJE,MUITOS DELES SÃO GENTE BEM SITUADA NA VIDA.

MALANDRÕES QUANTO BASTE,NUNCA FIZERAM RIGOROSAMENTE NADA A NÃO SER RECEBER O VENCIMENTO E OS DIVIDENDOS DESSES "NEGÓCIOS".

SEJAMOS JUSTOS...
NÃO IMOLEMOS OS SARGENTOS DO Q.P.

Anónimo disse...

Caro Manuel Maia.

Não pretendi de forma nenhuma atingir os 1ºs Sarg. do QP. apenas foi este, como podia ser outro militar com outra patente, não posso de forma nenhuma generalizar, porque haviam também bons 1ºs Sargs.

Aliás, o teu comentário merece este acrescento.

Havia em Binta uma serração de madeiras que era pertença do Carlos Vieira, irmão do “Nino”, que mais tarde vim a saber, deu azo a pretensos negócios menos claros, com o senhor militar que aparentemente era quem nos comandava, como vês este é um escalão mais alto, e a matéria bem mais grave, mas são os chamados indícios sem provas, e portanto….

Já agora fomos dois os “baldas”, mas paguei um preço alto, que foi o de nunca poder “baldar-me” a nada, tive que ir a todas, por causa da minha rebeldia, e de nunca ficar calado.

Um grande abraço

Manuel Marinho