quarta-feira, 9 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6564: Estórias do Jorge Fontinha (11): Um soldado pediu-me que o matasse

1. Mensagem do nosso camarada Jorge Fontinha* (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 6 de Junho de 2010:

Carlos Vinhal:
Esta é a História da minha guerra, publicada na revista Domingo, do Correio da Manhã, em 19 de Outubro de 2008.
Neste relato, o jornalista que o compôs, entrelaçou as duas realidades da minha História de vida, Estórias essas que eu já contei no blogue.

Em pesquisa de blogues sobre o Ultramar Português, descobri que alguém aproveitou e muito bem, o meu contributo, então para a referida revista.

Se achares oportuno e não repetitivo, gostaria que publicasses no Blogue, esta versão dos mesmos factos.

Um abraço.
Jorge Fontinha


Outubro 19, 2008

'Um soldado pediu-me que o matasse'


Jorge Ventura Fontinha, esteve na Guiné, em 1970/72 e diz na Revista do «Correio da Manhã» deste domingo:

- “O Ultramar, para mim, divide-se em duas partes: quando lá vivi e o meu irmão mais velho foi assassinado pelos guerrilheiros, e depois, quando regressei para combater por Portugal.”

Eu vivi as duas faces da guerra. Primeiro em Angola, onde o meu irmão, mais velho seis anos, foi assassinado em 1961, durante um ataque dos guerrilheiros à nossa fazenda, em Nambuangongo. Nove anos e meio mais tarde, após ter passado por Portugal como refugiado, fui enviado para a Guiné-Bissau pelo Exército, onde voltei a ver a morte e procurei defender os interesses do País.

Como cabo miliciano, fui integrado na Companhia de Infantaria 2791 e embarquei a 19 de Setembro de 1970, no paquete ‘Carvalho Araújo’, com destino a Bula e ao Batalhão de Caçadores (BCAÇ) 2868. O meu baptismo de fogo começou a desenhar-se às 02h00 de 17 de Novembro de 1970, quando já era furriel. Da parada do quartel de Bula partimos para Chochmon. A minha secção ia completa: na primeira equipa, o Celestino, o Azevedo e o Monteiro olhavam, de vez em quando, para trás. Os restantes, que seguiam atrás de mim (o Romão, o Cavaco, o Matos, o Pinto e o Nunes) iam como uma sombra, a uma distância considerável. Um problema atormentava-me: antes de partirmos, o Nunes havia-me pedido que o ‘desenfiasse’, porque pressentia que lhe ia acontecer alguma coisa. Fiz--lhe ver que tudo não passava de mania mas no meu lugar (o 5.º na progressão em relação ao grupo de combate) não parava de pensar no seu caso.

Eram 03h30 e eu seguia embebido nestes pensamentos, quando, de súbito, ouvi um estrondo e uma chuva de estilhaços caiu sobre alguns de nós. Depois, foi o silêncio. Pensei logo tratar-se de uma mina e, quando olhei para trás, vi o pessoal abrigado, à excepção de um soldado que, no caminho, gemia e rebolava-se no chão. Corri para ele, que, de barriga para baixo, com a mão esquerda a procurar na perna do mesmo lado o pé perdido, suplicava: – Meu furriel, mate-me, acabe comigo! Meu furriel, tenha dó de mim!

Olhei para ele, emocionado, quando o homem das Transmissões e o enfermeiro corriam para o soldado. Virei as costas, para que me não vissem chorar. Chorei, sim, de raiva, de impotência e de ódio. Era o Nunes! E porquê ele, meu Deus? Antes de sairmos do quartel, bem me tinha dito que ia acontecer alguma coisa! E, afinal, não fora um ataque, apenas um acidente: o Nunes, apontador da bazuca, deixou cair uma granada no chão que, ao rebentar, lhe ceifou um pé e parte de uma perna. Outros soldados e o alferes comandante ficaram com ferimentos menos graves e tiveram de ser evacuados. Mais tarde, a coluna pôs-se em marcha e caminhou para a conclusão da operação, que culminou com grande sucesso, apesar de mais alguns soldados terem sofrido ferimentos ligeiros.

A 27 de Setembro de 1972, a companhia regressou a Lisboa, de avião; mas esta era apenas uma parte da minha vida no Ultramar que terminava e a outra, vivida nove anos e meio antes, no início de 1961, em Angola, fora ainda mais dolorosa. Eu tinha 12 anos e havia nascido em Ambriz. O meu pai era guarda-fiscal e, no início da década de 1950, adquiriu uma fazenda. Eu encontrava-me em Luanda, no colégio da Missão de S. Paulo, onde sempre residi quando não estava com o meu pai e o meu irmão. A minha mãe morrera em 1953, vítima de ‘biliosa’. Apenas a 20 de Março de 1961 soube do ataque que tinha havido à fazenda, cinco dias antes, quando chegaram os primeiros sobreviventes. Entre eles o meu pai, meio despido e descalço, na altura com 51 anos, desfigurado e desfeito no seu íntimo. Esteve agarrado a mim uma eternidade a chorar.

Soube então o que tinha acontecido. Eram 16h00 e o meu pai encontrava- -se a descansar no quarto quando se apercebeu de que algo se passava lá fora. Levantou-se e deparou-se com alguns empregados e familiares barricados atrás da porta, que era violentamente empurrada e cortada à catanada. O meu pai verificou de imediato a ausência do seu filho Fernando. Um dos empregados enfrentou os atacantes e decepou um deles à catanada, pondo os restantes em fuga, dando tempo a que todos fugissem em direcção a uma camioneta. Foi aí que meu pai deu com o meu irmão a agonizar na cabina, com uma catanada na testa e outra no peito! Algum tempo antes, quando o meu irmão, diminuído fisicamente dos membros inferiores, estava por perto, a governanta apercebeu-se de uma certa movimentação junto ao capim e foi ver o que se passava. De imediato, um grupo compacto de guerrilheiros da UPA (de Holden Roberto), de catana em punho, dirigiu-se aos trabalhadores, pondo-os em fuga. Houve, no entanto, um que não pôde locomover-se com tamanha rapidez: o meu irmão, que tentou proteger-se na cabina da camioneta, onde viria depois a ser assassinado.

Os sobreviventes fugiram na camioneta em direcção a Nambuangongo. Como já estava ocupada, dirigiram-se para Onzo, aonde foi inviável chegar. A única saída foi largar a viatura e fugir para a mata. Por lá andaram três dias e três noites, até receberem ajuda militar. Quando voltaram à camioneta, para recolher o meu irmão, tinha sido incendiada e o corpo havia desaparecido.


UMA VIDA DIVIDIDA ENTRE ANGOLA, GUINÉ E PORTUGAL

Nasci em Angola, na vila piscatória de Ambriz, onde o meu pai era chefe da Guarda Fiscal. O meu falecido irmão nasceu em Castedo da Vilariça, Torre de Moncorvo, terra da minha mãe, falecida em Nambuangongo em Outubro de 1952. O meu pai era de Alijó, Vila Real, e faleceu em Junho de 1975. Após o falecimento da minha mãe, dividia a vida entre Nambuangongo, nas férias, e Luanda, durante as aulas, quando ficava em casa de uns tios. Vim para Portugal refugiado e fui viver para Alijó, onde estudei até ser incorporado no Exército, em Outubro de 1969. Fui militar até Setembro de 1972.

Entrei para um banco em Maio de 1972 e casei-me em 1973. Do casamento nasceram dois rapazes. O mais velho ainda em Luanda, em Agosto de 1975, e o mais novo em Alijó, em 1978. Sou reformado da banca.

(In Revista «Domingo» do Correio da Manhã)
__________

Notas de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6302: Estórias do Jorge Fontinha (10): Uma noite muito mal passada

4 comentários:

Anónimo disse...

Jorge Fontinha,
deixa-te de salamaleques e retrata esses guerrilheiros que mataram teu irmão, pelo nome com que ficaram para a história da guerra do Ultramar: Terroristas, e foi daqui que o nome se estendeu a todos os movimentos.

A UPA, teve 1% de votos nas ultimas eleições em Angola.

Até hoje a UPA, mais tarde mudaram para disfarçar para FNLA, nunca recuperaram a imagem tribalista e racista entre os angolanos.

Jorge, quando o teu irmão foi assassinado, quem estava em Luanda assistimos à fuga de muitos pais sem filhos e filhos sem pais.

Eu que já tinha visto a fuga dos Belgas aos milhares, do Congo Belga um ano antes, era eu cabo miliciano em Noqui, achei que não deviamos abandonar como fizeram os Belgas.

Se fosse hoje que matassem o teu irmão, e eu saber o que sei, tambem não bandonava Angola nas mãos da UPA.

Cumprimentos,

Antº Rosinha

Jorge Fontinha disse...

Nunca pretendi fazer salamaleques, nem quando pela primeira vez contei, no início da minha aparição no Blogue do Luis Graça e muito menos agora que me limitei a republicar, o texto que então o jornalista do Correio da manhã, publicou na Revista Domingo.Nunca confundi nem na prática, nem no meu caracter TERRORISTAS, com guerrilheiros do MPLA,UNITA,FNLA, FRELIMO, RENAMO ou PAIGC.Contra estes últimos, travei uma luta leal, de armas na mão, cada um defendendo, a sua Pátria.Não lhes guardo rancor mas sim respeito.
Só lamento é que em Março e Abril de 1961, as organizações de Apoio, aos estropiados se lembrassem de mim, na altura com 12 anos, para reconhecer corpos na morge de Luanda, corpos esses que diariamente vinham das fazendas, esventrados, sem pernas, sem cabeças e meninas jovens com paus espetados no sexo.São salamaleques?
Quem comigo privou na Guiné, durante 2 anos, nunca me ouviu uma palavra re racismo nem de menos apreço por alguns colegas de cor negra que compartiharam comigo a comissão.O então Alferes Carlos Barros, Guineu e grande amigo Português de origem africana poderá testemunha-lo, bém como tantos aoutros.Quem me conhece, certamente sabe que não sou pessoa para isso.O pessoal da 2791 e outros que até só conheço, deste blogue, conhecem bém o meu caracter.
Esta foi a última vez que escrevi sobre este assunto e com o respeito que lhe é devido, pelo que tem feito por África, vamos pôr um ponto final entre troca de recados que me fazem lembrar coisas que passei com 12 anos!

Cumprimentos

Jorge Fontinha

Anónimo disse...

Amigo Fontinha

Três guerras...e que guerras!
Por isso é que tu és como és.
O sofrimento elevou-te e dotou-te de um coração de ouro branco !

Recordo o teu Pai em Lisboa.Grande Homem e amigo.

E sabes,...nos momentos em "baixa",lembra-te do filme a que assistimos, "Django" o "artista" com a capa cheia de "côdeas" a cegar o adversário pistoleiro com o reflexo do sol na "fumadeira"!!!!

Abraço
Luis Faria

Anónimo disse...

Li a tua prosa a pouco no facebook, e envio-te um forte abraço digitalizado ou não também sabem bem e, neste momento sabe-me bem dar-to.

abraço
urbano silva