quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6871: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (1): O Chico do Palácio

1. Como nem só de memórias boas se fez a guerra, o nosso camarada José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos uma história para a sua nova série Outras memórias da minha guerra.


Outras memórias da minha guerra (1)

O Chico do Palácio

Por José Ferreira da Silva

De seu nome era Francisco Ribeiro e conhecido entre os amigos pelo Chico. E, dos mais íntimos, pelo Chico do Palácio. Havia duas razões para esse cognome: uma por ser natural e morador da zona do Palácio de Cristal do Porto; outra porque, efectivamente. lá havia um macaco enjaulado, com esse nome, famoso na região tripeira e arredores.

O Chico ficara órfão de mãe logo ao nascer. E o pai, que vivia paredes meias com o álcool, - “bateu a bota quando eu tinha 4 anos e não deixou pena nenhuma porque não nos ajudava nada”, lamentava-se o Chico. Por isso, lá continuou a ser criado entre as bancas das vendedeiras de fruta, chouriço, azeitonas e tremoços, onde se alimentava. Tinha uma irmã mais velha, que também se desenrascava como podia. Ele fazia questão de afirmar que sempre viveu por sua conta, mesmo em criança, pedindo e roubando fruta e comida. Era franzino, de pele bastante gasta e picada das bexigas, e aparentava ter quase o dobro da idade. Talvez devido às privações alimentares e outras e ao vicio de fumar. Sofria muito durante as operações militares pela falta do tabaco.

Ao contrário do que constava, tanto o Chico como os seus vizinhos da Banharia, Massarelos, Ribeira, Valbom, Rio Tinto ou Matosinhos, eram uns tipos bestiais. Era gente madura, de língua afiada e nunca derrotada em debate com qualquer letrado. Dava gosto ouvi-los, com aquele sotaque do Puaerto e com expressões simples e de frontalidade sem limites. Abriam-nos um mundo encantador onde os seres mais humildes viviam o dia a dia, o mais alegremente possível. Praticavam a solidariedade extrema, desde a partilha de um resto de comida à “barona” de um cigarro. Manoel de Oliveira, o maior cineasta português, evidenciou-se muito cedo com um filme que retratou aquela gente ribeirinha – Aniki Bó-Bó.

Usavam de uma linguagem própria e viva. Era normal ouvir-se entre eles: “tafôda morcom”, “ouve lá, ó manca-mulas”!, “a lambisgóia andava a armar-se ao pingarelho”, “Oh bacano chuta aí uma barona”, “ Oh fachina, deixa-te de paleógrafo e vai mazé buscar morfos pá gente matar a traça”, “só pensas encher a mula”, “tás coa tromba foleira”. “a patroa fodeu-lhe a fronha toda”. “era um pastor, enforcou-se cô aquela pandorca”, “q safôda, armou-se em Pipi da Tabela para fisgar uma faneca daquelas e não viu que ela andava no negócio das carnes há tanto tempo!. Aposto que ela lhe jurou quinda tinha os três.” Etc., etc..

Dizia-se que eram cantigueiritos, faroleiros e gabarolas. Mas não era verdade. Estes eram simplesmente os argumentos de quem não tinha hipóteses de os enfrentar. Provou-se que, em combate, não recuavam perante os maiores perigos.

O Chico era muito popular entre a malta da tropa. Parecia o irmão mais velho daquela tropa toda. Brincava e gozava com todos, mas sempre de uma forma cortês que não agredia. Quando, em plena formatura, informal e imperturbável, acusava ao Alferes : - “ête gajo tá-ma chatear os cornos”, apontando para um dos colegas –, era mais para brincar com o próprio Alferes, um açoriano, que proferia muitas vezes essa expressão.

Outro Chico de outro Palácio

No último fim-de-semana em Viana do Castelo, uns 3 ou 4 dias antes de partirmos para a Guiné, estive de serviço no Domingo e encontrei o Chico no Quartel:

- Então, que anda aqui a fazer, não foi despedir-se da família? E ele respondeu:

- Que família? Se fosse a casa da minha irmã, o mânfio dela ainda me cravava os tostõezitos que ganhei a fazer os serviços.

Daqui se depreende facilmente que o Chico não se sentia muito afectado com a mobilização para a guerra nem mostrava saudades de ninguém. O que mais o preocupava era o vício de fumar continuamente. E era nisso que ele gastava o dinheiríto. Raro era o mês em que ele não nos vinha pedir algum (a mim e ao Mariz, de Anadia), até receber o pré da Companhia.

No dia do pré, saía da Secretaria e vinha directamente ao nosso encontro. Batia à porta do quarto, entrava delicadamente, virava-se para um de cada vez, a exibir o dinheiro na mão esquerda. Contava com a mão direita o montante em dívida e entregava-o, agradecendo. De seguida, pagos todos os credores, desfiava o restante, levantava-o, esticava-se e dizia:

- Este é que é o meu e agora sim, é que o posso meter no meu bolso.

E enfiava-o orgulhosamente no bolso esquerdo da camisa. Então, já com as mãos livres pedia:

- Posso fumar?  Esta nobre cena repetiu-se sempre com o mesmo rigor e satisfação.

Estávamos nos últimos dias de Agosto 67 e tivemos que fazer mais uma operação em zona perigosa. Era no Tombali, entradas da mata do Cantanhez. Nessa altura, o Comandante do PAIGC, Nino Vieira, que era dali, andava muito activo. Valeu-nos o seu ex-amigo João Bacar Jaló, o famoso futuro chefe dos Comandos Africanos, que, então, estava sediado em Príame/Catió e fazia muitas operações connosco. Para nós era muito bom porque aqueles milícias africanos era muito experientes e costumavam ir na frente.

De repente, suspendeu-se a progressão na mata e iniciaram um regresso bastante apressado. Na frente, a tropa do Tenente Bacar havia detectado uma emboscada, montada à nossa espera e entendeu-se que o melhor seria retirar rapidamente, até porque o inimigo poderia envolver-nos e vir atrás de nós. Era uma zona densa, muito fechada, com muitos arbustos e bastante armadilhada, o que obrigava a todos passarem pelo mesmo trilho. O nosso Capitão disse-me para montar rapidamente alguma segurança atrás, enquanto se fazia a retirada. Inicialmente, os militares quase corriam mas, à medida que chegavam a uma pequena linha de água, atrasavam-se devido às dificuldades em atravessá-la. Sentimos bastante ansiedade devido ao perigo de existir tanta tropa concentrada num pequeno espaço e a nossa segurança ser diminuta, pois estava limitada a uma pequena frente de 4 ou 5 atiradores, estando o pelotão ao longo do trilho.

Podia ter sido uma tragédia. Quem tenha passado por uma situação idêntica, sabe bem o pavor que se sente quando se começa a retirar. Ou no caso de ataque de abelhas em zonas de perigo (normalmente à entrada dos acampamentos inimigos). Mas mais aflitivo ainda é ver toda a gente a correr e nós a termos que esperar para manter a segurança .

Foi neste ambiente de apreensão e de medo que o Chico, a acusar ainda mais a ansiedade, pois já levava cerca de 24 horas sem fumar, entre outras observações catastróficas, mandou mais uma das suas tiradas:

- Aquele filho da puta do sargento Viscoso, não nos pagou ontem, porque estava à espera que algum lerpasse nesta operação. É mais aquele que vai para o porco alentejano ... e fez o gesto, com os dedos em rotação.

Uns minutos depois, também retirámos e sentimos dificuldades agravadas a atravessar a linha de água, porque o trilho era, agora, só lama e ninguém se mexia sem a ajuda de outros. Convém lembrar que, nestas situações, bastava pararmos para nos enterrarmos lentamente com o peso do próprio corpo. Dentro do rego levantávamos um de cada vez, que, depois, era puxado do lado de cima por outro. Fui eu que ajudei o Chico do lado de baixo e de cima foi o Massarelos. O Chico deu-lhe a arma G3, com a coronha para cima, segurando-se no cano e o Massarelos agarrou-a pela coronha. Como a arma escorregava, devido ao lodo, o Massarelos tentou segurá-la melhor e os dedos foram parar junto ao gatilho. A arma não estava em posição de segurança. Deu-se um disparo e o Chico foi atingido na anca direita, de cima para baixo, razão por que a bala não o atravessou (e não me atingiu). A movimentação, era, como atrás foi dito, muito difícil, ele esvaiu-se em sangue, e não houve meio para o evacuar para a base do Batalhão, em Catió.

Tal como ao nascer, o Chico não teve a sorte do mundo que o escolheu. O Massarelos, que era seu vizinho e seu principal amigo, passou o resto da tropa entre lamúrias e copos, acusando uma tristeza profunda. Há mais de 30 anos que ninguém sabe dele.

(Silva da Cart 1689)
__________

Nota de CV:

(*) vd. poste de 12 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6846: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (6): O Cabo Felgueiras

3 comentários:

Unknown disse...

Caro Silva
Encontramo-nos há muitos, muitos anos, em Catió, era eu um piriquito e regressavas de férias.
Convivemos uma noite de copos,com uns chouriços que ainda me restavam e outros que vcs. (outros companheiros regressaram tb de férias) levaram, bem mais frescos que os meus.
Há tempos falei em vcs ao Branquinho.
Sobre o Chico e a sua história, tenho a certeza que já a li ou ma contaram. Talvez com menos pormenores, mas é (foi) a realidade de uma vida.
Foi um prazer reencontrar-te, embora já te tenha lido anteriormente, só agora me deu esta vontade de te mandar um abraço.

Silva da Cart 1689 disse...

Caro Jorge

Penso que terá sido no dia 17 de Maio de 1968. Eu, o Berguinhas e o Valente haviamos chegado de férias e a nossa Cart 1689 estava prestes a chegar de Gandembel - a única op em que não participei. Tenho fotos dessa noite com a malta da CCS e, possívelmente, com outros que por lá passavam. Eu sentia-me bem porque acreditava que a partir dali, não teríamos mais guerra e que iriamos para descanso.
Gostei do teu contacto. Temos de nos encontrar um dia.
Um grande abraço do
Silva

Unknown disse...

Caro Silva
Seria um prazer muito grande dar-te um abraço pessoalmente
Afinal não estamos tão longe como isso.
Quanto à data que nos conhecemos, deve ser essa mais ou menos.
Lembro-me que estava de sargento de dia, pois tinha chegado a Catió um ou dois dias antes.
Um abraço internauta
Até um dia destes.