sábado, 27 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7350: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (21): Cap Teixeira Pinto e as guerras de pacificação

1. Texto de Cherno Baldé:


Data: 23 de Novembro de 2010 12:43
Assunto: Cap Teixeira Pinto e as guerras de pacificação na Guiné (*)

Caro Luis Graça (*),

Como deves saber, nós africanos, pelo grande respeito que dá-mos a idade e aquele que nos é mais velho, nunca nos podemos considerar iguais aos mais velhos, é uma questão cultural, sim senhora, mas também filosófica, metodológica, antropológica etc. 


Nunca posso esquecer o facto de que, quando eu ainda deambulava quase nú no quartel,  já alguns de vocês eram oficiais do exército. Sobre isto nada se pode sobrepor, nada, nem a idade entretanto adquirida, nem a experiência acumulada, nem a formação académica. O respeito e admiração que tive por vocês ficou gravado para sempre na minha memória.
Lembro-me que nós reproduziamos nas nossas brincadeiras o comportamento das hierarquias militares tal qual observávamos no quartel:


(i) O Capitão era o mais sério, o mais corajoso, o primeiro que seguia para a frente do combate no seu pequeno Jipe,  em pé,  ao lado do condutor (esta era a reprodução da figura do Cap Carvalho); quando passeava punha sempre uma das mãos, normalmente a esquerda,  atrás das costas ou copiando o General Spínola, tinha uma bengala ou chicote na mão direita;


(ii)  O Alferes era o que sempre estava muito perto do Capitão,  pronto para o substituir em caso de...


(iii) Os furriéis eram os mais aprumados, impecáveis, bem parecidos, mulherengos... 


(iv) Os Sargentos eram identificados com a figura do Vagomestre, um pouco mais velhos, maus por norma e barrigudos, era raro encontrar um Sargento que fosse também bom atleta; eram mais ou menos solitários, mais ou menos melancólicos, cara de poucos amigos, até os soldados fugiam deles, nem oficiais nem subalternos, uma posição complicada, eram bons na aplicação de castigos. 


Perdíamos horas a fio nessas brincadeiras de figurinos teatrais do comportamento da tropa metropolitana. Por serem nossos, desvalorizávamos os milícias que não passavam de réplicas sem grande jeito, mas quando era preciso ir para a guerra, socorrer uma aldeia, sabíamos que eles é que iam a frente. 

No intuito de seguir o teu conselho e ver alguns trabalhos sobre o Cap Teixeira Pinto,  acabei por cair no poste P1615: Historiografia da presença Portuguesa(5): Capitão Diabo, herói do Oio, João teixeira Pinto (1876-1917). 


[ Foto à esquerda: João Teixeira Pinto (1876-1917), com barbas compridas e os galões de alfres; foto com uma dedicatória manuscrita do oficial português "à sua querida mulher com um beijo do seu marido muito amigo. 27 de Maio de 19__(?). Oferece João Teixeira Pinto".]

[ Foto«: © A. Teixeira-Pinto (2007). Direitos reservados.]

Penso que há um erro de localização do Sancorlá na frase que diz: "Fulas Forros de Sancorla (No Cuor, a nordeste de Missirá". Aqui, com toda a certeza,  faz-se referência ao regulado que mencionei nas minhas memórias, da casa real de Canhámina, cujas ligações com a minha familia também falei. 


O Boram Jame do texto é o Patriarca e régulo de Sancorlá, nosso avó comum (Buran Djame ou Braima Djame) dos tempos do Administrador de Geba, Calvet de Magalhães. Durante o seu reinado, o regulado de Sancorla foi um aliado fiel da administração colonial e amigo do Governador Muzanty, tendo combatido ao lado desta entre os rios Geba e Cacheu, com Sousa Lage (1891-1892) contra Mussa Molo, Graça Falcão (1897) no Oio/Morés e João Teixeira Pinto (1913-1915) em toda a Guiné.


Tudo o que sei de concreto sobre o Cap Teixeira Pinto, encontrei em livros, com destaque para o livro, história da Guiné,  de René Pelissier. As nossas fontes tradicionais,  além de escassas (os griots são os fieis depositários), normalmente, são mitológicas e algo deformadas com o passar dos tempos. 


Contam-se muitas histórias sobre estas guerras e há referências a certos locais e pessoas que se destacaram numa ou outra batalha, em especial a última repressão aos Canhabaques (Bijagós) mas sem muito rigor nem datas e locais precisos. Seria preciso fazer uma vasta colecta e depois comparar as narrativas de diferentes fontes orais.   

Com um grande abraço,
Cherno Baldé

____________

Nota de L.G.:

(*) Na sequência de comentários ao poste de 21 de Novembro de 2010

(i) Comentário do Cherno Baldé:


Caros amigos,

Desculpem a intromissão em assuntos de mais velhos mas, na minha opinião, Portugal, cometeu erros estratégicos na Guiné por não ter dado a devida atenção as lições do Capitão Teixeira Pinto.

Eu sei que o contexto não era o mesmo mas ele teve o mérito de, em pouco tempo, fazer uma avaliação correcta da situação e decidir que, para o caso da Guiné não precisava de batalhões de tropas metropolitanas nem de muitos Grumetes a mistura. Claro que esta decisão teve suas consequencias boas e más, todavia ele foi eficaz e os efeitos foram, de certo modo, duradouros.

De resto, todos estamos de acordo que a solução final só podia ser política. Cherno Baldé.



(ii) Comentário de L.G.:


Cherno:

A Tabanca Grande é uma "sociedade de iguais"... onde não há a classe dos "mais velhos" (com excepção do Rosinha, mas só por graça...) nem dos "djubis" (com excepção de ti, por que para nós serás sempre o Chico de Fajonquito, "menino e moço"...).

Humor à parte, conta-nos lá a "tua" história sobre o Capitão-Diabo (como ficou conhecido entre os guineenses) (...).
 

Último poste da série > 18 de Setembro de 2010

11 comentários:

José Marcelino Martins disse...

Caro Cherno

Gostei do texto. Na apreciação que fazes dos militares, só mostra que vocês, "os nossos miúdos", não deixavam passar os nossos comportamentos e, de tal forma que, passados 40 anos, ainda te lembras.

Aquele abraço

Luís Graça disse...

Não há dúvida que estes "djubis" nos fotografavam de alto abaixo... Que argúcia, que memória, que capacidade de observação, que riqueza de detalhes!... Autênticos "apanhados"... LG

Luís Graça disse...

... É também uma "murro no estômago": Nós éramos os seus heróis... LG

Anónimo disse...

Cherno, aquele hábito guineense de pôr alcunha a toda a gente e imitar os mais velhos, é que era interessante vermos no blog uma representação aproximada de como se processava.

Entre as imitações mais curiosas que ouvi foi, por exemplo, a imitação por um fula, de nome Tcherno, mas tambem se chamava Janca, que como tu viveu em quarteis, e que imitava os soldados, acabados de chegar a Bissau a tentar engatar a respectiva lavadeira.
Conseguia em fula imitar a pronuncia do Porto e do alentejo etc.
Só que as alcunhas apenas dizia dos ausentes, mas dos presentes nunca mencionou, por exemplo a minha, e eram sempre imensamente apropriadas. É de facto autêntico teatro esse hábito de imitação e de alcunhas.

Abraço,
Antº Rosinha

Anónimo disse...

A propósito de Teixeira Pinto - "O Kurika", pacificador da Guiné:
No início dos anos 70, a uma companhia foi imposto ceder meios rádio para uma operação na sua zona.
O comandante, enviou mensagem para Bissau dizendo que a sua posição ficava em risco pela falta dos meios rádio. De Bissau recebeu a seguinte mensagem:
"Teixeira Pinto pacificou a Guiné sem rádios".
Lesto, o comandante enviou a seguinte mensagem:
"Mandem o Teixeira Pinto".
Ricardo Cabral

Anónimo disse...

Caro Ricardo Cabral,
Ainda ninguém se lembrou de escrever um livro com "frases célebres" e "diálogos hilariantes" no decorrer da Guerra do Ultramar.
Teria enorme sucesso editorial.
Podia até ser-se menos ambicioso e decidir apresentar uma comunicação num congresso ou colóquio (havia que lhe dar um certo tom erudito, que aqui proponho): "Ditos célebres e diálogos edificantes na Guerra do Ultramar(1961-1974): da heurística à possível hermenêutica". A utilização do powerpoint prenderia melhor a atenção dos ouvintes.
Um abraço,
Carlos Cordeiro

Anónimo disse...

Camaradas
No episódio dos rádios , o capitão protagonista desse episódio é o célebre Capitão Art. Rosa Gaspar.
Polémico, mas muito estimado pelos seus soldados.
Infelizmente já faleceu. Paz à sua Alma...
Abraço
Luís Borrega

Anónimo disse...

O Cherno já mostrou todo o seu poder de observação e análise quer do pós-guerra quer do seu tempo de criança vivido em contacto com as NT.

Sem desprimor para ninguém, mas repararam no figurino comportamental que ele traçou no ponto:

(iii) "Os furriéis eram os mais aprumados, impecáveis, bem parecidos, mulherengos..."

Ah grande Cherno!
Isso é que era visão!

(eheheheh!!! Espero que as outras patentes não me levem a mal por esta provocaçãozinha. Ou ainda levo alguma "porrada" ao abrigo do RDM).

Um abraço ao Cherno
extensivo a todos os camaradas

José Vermelho
Ex-Fur. Milº
CCAÇ 3520 - Cacine
CCAÇ 6 - Bedanda
CIM - Bolama

Anónimo disse...

Tremo de cada vez que o Cherno aborda esta matéria dos djubis.

Meu Deus que será feito daqueles lindos, curiosos, trabalhadores, alegres e dinâmicos putos que gravitavam a nssoa volta disputando a prestação dos pequenos serviços (limpar o quarto, fazer as camas, lavagem das roupas, recados e pequenos biscates rotineiros), que ainda lembro de Mansoa?

Tremo de medo e muita raiva, só de pensar que podem fazer parte da lista dos meninos assassinados pelos (!) do PAIGC e seus acólitos.

Amigo Cherno, o meu modesto, sincero e simples obrigado pelas leituras que me tens proporcionado nas tuas maravilhosas e memoráveis intervenções neste blogue.

Espero que um dia venhas conhecer a cidade do Porto, onde terei muito gosto em receber-te e acompanhar-te numa visita de conhecimento local.

Um grande abraço do Amigo Magalhães Ribeiro

Unknown disse...

Magalhães Ribeiro, eu acredito que após a independencia tivesse havido vinganças para com membros da população que serviram o exército português em terras da Guiné Bissau. E sem dúvida que houve e é um assunto ainda obscuro.

Porém o Amigo faz uma afirmação grave, que quase me leva a fazer outra não menos grave e documentada com imagens e texto, da nossa actuação em África. Abstenho-me porque não é o local próprio e por respeito ao bom nome dos ex-Soldados em geral (soldado mesmo).

A sua afirmação que considero grave é:
"...só de pensar que podem fazer parte da lista dos meninos assassinados pelos (!) do PAIGC e seus acólitos."

Já soube, já li, já me zumbio aos ouvidos, muita coisa, mas que o Paigc tivesse matado crianças. Isso não.
E até prova em contrário faço as minhas considerações pessoais.

Mas quem sou eu!, não será assim?
Só que, creio, sobre esta matéria, é de esperar que a verdade pode aparecer de onde menos se espera.
A Historia não pode ser reescrita, só se for apagada a sua memória,o que também é impossivel e nem as fogueiras hitlerianas o conseguiram.

Um abraço para todos e para cada um

Carlos Filipe
ex-CCS BCAÇ3872 Galomaro

Anónimo disse...

"Tremo de medo e muita raiva, só de pensar que podem fazer parte da lista dos meninos assassinados pelos (!) do PAIGC e seus acólitos."

E grave esta afirmacao !!!

Nelson Herbert