segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7317: (Ex)citações (111): Mensagens de saudade… em tempo de Guerra! (José Marcelino Martins)


O nosso Camarada José Marcelino Martins, (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), enviou-nos mais uma interessante mensagem, em 20 de Novembro de 2010:

Camaradas,

Junto um texto sobre um documento escrito em árabe, Não esquecer que para este texto contribuíram o nosso camarada Pacifico dos Reis e o nosso amigo Cherno, aliás sem a colaboração dele, este não existiria.

Envio, também, o relatório da operação que poderão publicar, caso o entendam.
Mensagens de saudade… em Tempo de Guerra!
Na vária/muita correspondência trocada entre mim e o nosso camarada e tertuliano Pacifico dos Reis, chegou-me a cópia de um texto em árabe que, como é natural, me prendeu a atenção.
O mesmo foi capturado, juntamente com outro material, abandonado no terreno, durante a OPERAÇÃO “LAMAÇAL”, realizada em 26 de Janeiro de 1969, executada por quatro grupos de combate, dois da Companhia de Caçadores nº 5 e dois da Companhia de Artilharia nº 2338, estacionadas em Canjadude, e destinada a retirar todo o material que não fosse necessário no destacamento do Cheche. A retirada de Madina do Boé e do Cheche, já “estava a mexer”.
De acordo com o relatório da operação, sem que a coluna parasse, foram ficando emboscados dois dos grupos de combate, exactamente os que seguiam na cauda da coluna, sendo a guarda de flanco “alargada2 para dar a impressão que tudo se mantinha inalterável.
Foi por volta das 10H45 que se registou um contacto com as forças IN, que pretendiam colocar minas no local onde, necessariamente as viaturas viriam a passar, no regresso. As baixas prováveis, segundo o relatório, foram um morto e cinco feridos.
Que tipo de documento seria/será? · Informação para uma força IN, algures na zona?
· “Ordem de batalha” para as forças instaladas no Boé?
· Instruções para algum elemento “infiltrado na tabanca?
· ???
· ??????

A melhor resposta só podia chegar através de algum que fosse capaz de traduzir o texto ou, pelos seus conhecimentos, pudesse fazê-lo chegar à pessoa certa.

Reprodução fotográfica (parcial) do documento.
© José Martins

Aos primeiros minutos do dia 15 de Novembro de 2010, pelas 00:40 horas, remetemos a seguinte mensagem ao Cherno Balde, nosso amigo guineense:

“Meu caro amigo Cherno.

Saúde e felicidade para ti e família.
Pela primeira vez te escrevo, porque ler já me é habitual e gratificante.

Chegou-me às mãos um papel que foi escrito há mais de 40 anos, que, como é natural, não consiga ler.

Assim peço-te o favor de, caso te seja possível e não ponha em causa ninguém, e especialmente o povo dessa nossa maravilhosa Guiné, o traduzas para depois o partilhar com os membros da nossa tabanca.

Em ti abraço todos os guineenses, desejando-lhes as maiores venturasUm fraterno abraço para ti.

José Marcelino Martins”

Poucas horas depois, pelas 14:16:30 o Cherno dava a resposta:

“Boa tarde amigo José Martins,

Se bem me recordo foi a partir do seu trabalho sobre as companhias metropolitanas de Fajonquito que consegui estabelecer ligação com o LG e por seu meio o Blogue da TG que tanto prezamos. No seu mais actual trabalho sobre a mesma matéria verifiquei que nós em Fajonquito estávamos enganados quanto a 2ª Companhia daquela quadrícula que indevidamente conotamos com Gadamael. Há uma pergunta minha sobre este aspecto nos comentários, que não obteve a resposta esperada. Se não se tratar do mesmo José Martins dos Gatos Pretos de Canjadude, então por favor queira identificar-se melhor para saber o que fazer em relação ao seu pedido.

Em princípio, deve tratar-se de um simples manuscrito em árabe arcaico que as pessoas que sabem ler alcorão facilmente poderão decifrar.

Um abraço amigo,

Cherno A. Balde”

Como não estou ligado em permanência à net, assim que li a mensagem, no dia 15 de Novembro de 2010 19:11, <josesmmartins@sapo.pt> escreveu:

“Sim meu querido amigo Cherno.

Sou o Gato Preto de Canjadude, José Martins, Furriel de Transmissões.

Também assino as minhas intervenções como José Marcelino Martins, quando apareceu um Capitão Miliciano, que se assinava por José Martins, e, para não haver confusões...

Um grande abraço
José Martins”

A 19 de Novembro de 2010 pelas 10:07:37 ao abrir a correio electrónico, tinha a resposta à pergunta que havia colocado ao nosso Cherno Baldé, na nossa altura um menino e, hoje, alem de Homem Grande é um GRANDE HOMEM. Apressei-me a agradecer-lhe e voltar a questiona-lo se via algum inconveniente na sua publicação.

Caríssimo Cherno

Estou muito grato pela tua colaboração na «descodificação» deste documento.

Haverá algum problema de divulga-lo no blogue, fazendo um post?

Recebe um abraço de grande amizade para ti e família
José Martins

Às 13:31:52 o Cherno respondia ao meu mail, dando “luz verde” á divulgação do texto em apreço, mas colocando, também, as suas perguntas que, tentamos responder com o presente texto.

Caro amigo José Martins,

O documento é teu, faz parte do teu/vosso espólio de guerra, suponho, e como tal não vejo qualquer inconveniente em que o tornes público, não se esquecendo que o tradutor limitou-se simplesmente a descodificar o conteúdo sem que fosse devidamente informado das circunstâncias concretas em que foi encontrado nem a finalidade que se pretende atingir com a sua publicação. De resto, também nós estamos curiosos e gostaríamos de conhecer a estória que está por detrás desta carta guardada cuidadosamente durante mais de 40 anos.

Um grande abraço,
Cherno AB.

Reprodução fotográfica do documento.
© José Martins

“Caro amigo José Martins

Na impossibilidade de o fazer pessoalmente, fui pedir ajuda a uns familiares formados na escola corânica que, sem qualquer problema, leram a carta, pois trata-se de uma epistola à maneira antiga, escrita por um Sr. cujo nome é Braima Sané que, naquele tempo se encontrava numa aldeia com o nome de Djaecunda, Djalicunda ou Djaucunda algures na região do Casamança (supõe-se) e dirigiu, provavelmente, a mesma para um familiar de nome Alfusseny Sané (Al-Hussein Sané) radicado em Canjadude, com mais ou menos o seguinte teor:

"Em nome de Allah, o Compassivo, o Misericordioso, o Senhor dos universos, que a paz e bênçãos de Allah estejam com o Profeta Muhammad S.A.W. (Sallal-láhu-alaihiwa sallam=Que Deus derrame a paz e a bênção sobre ele (o Profeta Muhammad).

De Braima Sané, na tabanca de Djaucunda para Alfusseny Sané na tabanca de Canjadude. Cumprimentos de paz para si e para toda a família. Eu Braima Sané, depois de algum tempo passado aqui (tabanca de Djaucunda), sinto uma grande vontade de regressar (para Canjadude), mas não tenho maneira/coragem de enfrentar o caminho sozinho. Estou com medo, muito medo de voltar sozinho. Por isso, peço-lhe que me envie uma pessoa de confiança para com ele fazer o percurso de regresso. O enviado deverá vir pelo caminho que passa pela localidade de Duridjal para chegar a Djaucunda. Os meus sentidos/espírito já não estão aqui e noite e dia estarei a espera da chegada do teu enviado, se possível que seja antes da festa do Idul-al-fitre (Ramadão). Tenha o cuidado de fazer tudo no maior segredo, longe das orelhas/ouvidos dos outros.

Wassalam (que a paz esteja contigo/connosco)."

Aceite um grande abraço,
Cherno Abdulai Baldé,

De Bissau, Republica da Guiné-Bissau.”

“A carta não chegou a Garcia”, quer dizer, não chegou ao destinatário, nem foi enviada ao escalão superior, nesta caso o Comando do Batalhão de Nova Lamego, na medida em que consultado um dos militares da companhia, de religião muçulmana, foi da opinião de que se tratava de “uma mezinha”, isto é, algo que permitiria ao detentor da mesma, a protecção contra o mal.

Não havia, portanto, razão para que a mesma fosse objecto de análise mais cuidada e, assim, ficou fazendo parte do espólio pessoal do comandante.

Este foi mais um “efeito colateral” da guerra que travamos. Não sabemos se Braima Sané, provavelmente um ancião, chegou a regressar a Canjadude, mas sabemos, pela leitura da carta, que sabia os riscos que essa deslocação envolvia.

Quase 42 anos depois deste episódio e 37 anos depois de terminada a nossa intervenção naquele território, resta-nos dizer, se é correcta a sua aplicação nestes termos, da última palavra do texto analizado:

Wassalam
(que a paz esteja contigo/connosco)

Pacifico dos Reis / Cherno Baldé / José Marcelino Martins
20 de Novembro de 2010


2. RELATÓRIO DA OPERAÇÃO “LAMAÇAL” (Coluna Canjadude – Cheche) em 26JAN69 – JP 6

01. Situação Particular (a mesma que em PR 2)

A Unidade encontra-se destacada em Canjadude com 02 Grupos de Combate, conjuntamente com a CART 2338, com um efectivo de 03 Grupos de Combate. Tem esta Unidade um destacamento em Cabuca com 1 Grupo de Combate e em Nova Lamego 1 Grupo de Combate.

02. Missão da Unidade

Escoltar uma coluna para trazer do Che-che todo o material e pessoal não necessário à defesa deste.

03. Força Executante

a) Capitão de Cavalaria Pacífico dos Reis
b) 1º Grupo de Combate da CART 2338 – Alferes Diniz
4º Grupo de Combate da CART 2339 – Furriel Martins
1º Grupo de Combate da CCAÇ 5 – Furriel Cardoso
3º Grupo de Combate da CCAÇ 5 – Alferes A. Sousa

Secção Comando Dragão

2 Guarnições do Pelotão de Reconhecimento Daimler 1258
c) 4 Grupos de Combate
d) 1 GMC (Sapadores + Secção de Comando Dragão + Comandante) – 1 Daimler - 1 GMC (1 Grupo de Combate da CCAÇ 5) – 1 GMC (Posto Rádio) - 2 Unimogs (1 Grupo de Combate da CCAÇ 5) - 1 Daimler – 2 Unimogs – 1 GMC (1 Grupo de Combate da CART 2338)

e) 1) ---------------

2) 2 Granadas de mão defensivas e 1 granada de mão ofensiva por homem; 2 elementos com dilagrama por grupo de combate.
3) -----------------
4) 5 Cunhetes 7,62 mm distribuídos pelas viaturas.
5) -------------------
6) Material de Transmissões: 5 National
2 Sharp
5 Onkyos
1 PRC-10
1 AN/GRC 9

04. Planos Estabelecidos

Seguir pela estrada Canjadude – Che-che, picando a estrada, com guardas de flanco esquerdo a cargo dos Grupos de Combate da CCAÇ 5 e guardas de flanco direito a cargo dos grupos de combate da CART 2338. Deixar em andamento os dois grupos de combate da retaguarda, emboscando em Sare Andebe e a 1 quilómetro do Che-che, que se retirariam para o Che-che caso a coluna não passasse por eles até às 15H00. Não havendo possibilidade de carregar tudo até às 14H00, a coluna aguardaria o dia seguinte para seguir para Canjadude.

05. Desenrolar da Acção

Partida de Canjadude em 260630JAN69. A seguir à bolanha a Sul de Canjadude começou a picagem e foram montadas guardas de flanco. Foram montadas duas emboscadas e imediatamente se alargaram os flancos para não dar a entender ao IN que tinha ficado pessoal para trás. Cerca das 10H45 ouviram-se rebentamentos seguido de forte tiroteio na região onde estava montada a emboscada a cerca de 1 Km do Che-che.

Saí imediatamente com dois grupos de combate para Oeste do Che-che de forma a cortar a retirada ao IN, pois os rebentamentos ouviam-se para esse lado. Apercebi-me, posteriormente, serem rebentamentos das granadas dos lança rocketes que passavam por cima das arvores e que o IN estava a Este.

Fomos dar com um vigia IN que se encontrava a cerca de 500 metros do Che-che a vigiar a nossa saída e que tinha feito algumas rajadas de PPSH quando da saída dos grupos de combate de socorro. Foi perseguido pela mata mas conseguiu fugir.

O pessoal de socorro recolheu ao Che-che e como se encontravam as viaturas carregadas e os T 6 só viriam as 15H00, mandei fazer fogo de morteiro 81 para os lados do Rio Campossabane, e mandei seguir a coluna para o local da emboscada para ser feita a batida da zona.

Foi feita uma batida com dois grupos de combate até ao Rio Campossabane, tendo sido encontrados diversos trilhos IN e algum sangue e diverso material.

Foi quando o comandante do pelotão emboscado relatou o seguinte: que se emboscara há cerca de meia hora quando foi informado que um grupo IN, de cerca de 40 elementos comandados por um branco, se dirigia para a clareira.

Foi ver e, realmente viu, o grupo IN dando mostras que estavam a escolher um local para montar minas a cerca de 200 metros. Alertou o pessoal e mandou iniciar fogo de Lança Granadas Foguete e Morteiro 60 cm e, quando o grupo se encontrava todo reunido uma granada caiu no meio do grupo.

Imediatamente de desencadeou a emboscada, tendo o IN fugido em todas as direcções. Da mata ripostaram com metralhadora pesada, lança rockets, PPSH e espingardas automáticas, devendo ser o grupo que se encontrava a montar a emboscada, enquanto o pessoal montava as minas.

O IN reagiu durante 10 minutos, seguindo-se a fuga. Em seguida à batida, a coluna seguiu para o local onde estava emboscado o outro grupo de combate, que se recolheu, seguindo a força montada, protegida pelos T 6, chegando a Canjadude em 261630JAN69.

06. Resultados Obtidos

Baixas possíveis:
1 Morto
5 Feridos

Material capturado:
3 Granadas lança rockets,
1 Carga de lança rocket,
4 Granadas de mão defensiva de origem checa ou chinesa,
1 Carregador da arma PPSH,
1 Carteira com diversos documentos de em nome de José Correia,
1 Estatuto da Caixa Nacional dos Trabalhadores da Guiné.

07. Serviços

2 Dias a ração de combate,
Água do Rio Corubal,
1 Sargento Enfermeiro e 2 Enfermeiros,

Munições consumidas:

Da CART 2338:
Munições 7,62 mm – G 3 1200
Granadas de mão ofensivas 2
Granadas de mão defensivas 25
Dilagramas 12
Granadas LGF explosivas 8
Granadas LGF fumos 4
Granadas morteiro 60 15

Da CCCAÇ 5::
Munições 7,62 mm – G 3 600
Granadas de mão ofensivas 8
Granadas de mão defensivas 12
Dilagramas 6
Granadas LGF explosivas 6
Granadas LGF fumos 3
Granadas morteiro 60 18
Granadas morteiro 81 8

08. Apoio Aéreo

Não houve apoio aéreo, nem T6 nem PVC, no deslocamento de Canjadude – Che-che.

Chegou às 2615300JAN69 acompanhando a coluna desde Sare Andebe até próximo de Canjadude

09. Ensinamentos Colhidos

- Não havendo contacto com a força emboscada por levar só um PRC-10, a força de socorro seguiu para o lado contrário, quando se fosse para a direita podia cortar a retirada ao IN:

- Um dispositivo que facilitou o sucesso foi os grupos de combate que emboscaram, terem-no feito em andamento, continuando sempre a coluna, o que permitiu que o IN não visse o pessoal a emboscar;

- O dispositivo era montar minas na clareira, montar emboscada na mata, enquanto um vigia avisava a nossa saída do Che-che. Emboscada igual feita a uma coluna em Maio de 1968.

10. Diversos

Munições:

Não saíram do tubo três granadas do LGF.
Transmissões:

Os E/R GRC-9, PRC-10, Onkyos e Sharp, funcionaram sempre em boas condições mantendo contacto durante todo o percurso.

Pessoal:

- Furriel Miliciano de Artilharia nº mecanográfico 04888665 António Lourenço da Costa Martins, da CART 2338, comandando um Grupo de Combate com um efectivo de 18 homens manteve a calma e a serenidade necessária para desencadear a emboscada no melhor momento com todas as armas do Grupo de Combate, sobre um grupo IN muito superior em número.

Com o seu avontade, energia e sangue frio, incitando os seus homens que aguentaram o fogo IN, superior em armamento, até à chegada da força de reforço. È de salientar por este comando a maneira disciplinadora e o trabalho operacional do Furriel Martins como comandante do 4º Grupo de Combate.

–1º Cabo nº mecanográfico 02496167, Mário Soares Moreira, Apontador de L.G.F., fez fogo de pontaria com o LGF para o meio do grupo IN, acertando no meio deste e continuando a fazer fogo de pé e seguido de forma a bater toda a zona onde se encontrava o IN. A sua calma, serenidade e avontade, foi salutar exemplo para todos os homens do seu pelotão.

- Soldado nº mecanográfico 04283266, António da Silva Loura Dias, da CART 2338, sendo apontador de morteiro 60 e tendo gasto todas as munições que estavam junto dele, correu por todos os elementos do grupo de combate, debaixo de fogo, para se renunciar levando-as para junto dele, continuou calmamente a fazer fogo sobre o IN, tendo batido toda a zona onde estes se encontravam.

- Soldado nº mecanográfico 82024168, Tungue Fute, avançou para um morro de mata cerrada onde se tinha detectado fogo IN de PPSH, em pé a peito descoberto a fazer lançamento de dilagramas.

Documentos Anexos

Material danificado e extraviado

01 – Causas que motivaram a danificação e extravio:

Passagem das guardas de flanco por mata cerrada. Contacto com o IN durante cerca de 20 minutos.

02 – Da CCAÇ 5
E/R Sharp 60736653 e 60736635, antenas partidas

Da CART 2338
E/R Sarp 60736122 e 60736143, antenas partidas
E/R Onkyo, antena extraviada.


José Marcelino Martins

Fur Mil Trms da CCAÇ 50

__________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

19 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7307: (Ex)citações (110): Se não discutir com os meus amigos que são diferentes, mas meus amigos, discutirei com quem? (José Brás)

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