terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7701: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (53): Na Kontra Ka Kontra: 17.º episódio




1. Décimo sétimo episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 31 de Janeiro de 2011:


NA KONTRA
KA KONTRA


17º EPISÓDIO

Prosseguiram, passando pelo mangueiro onde havia o estrado para o pessoal se sentar à conversa, principalmente à noite. Estava lá o João e conversaram um pouco, tendo este chamado a atenção para uma nuvem negra ao longe. Queria dizer com isso que provavelmente se aproximava um tornado com a consequente chuvada torrencial. Era necessário ir jantar rapidamente para ainda se poder comer à mesa.

No fim do jantar já se tinha levantado o vendaval que precedia o aguaceiro pelo que todos se dirigiram para as suas palhotas. O nosso Alferes ainda tem que correr para se livrar das primeiras pingas. Próximo da sua morança, repara que o vulto do qual já se tinha esquecido, continua à sua porta.

Parou numa atitude de defesa mas, com a ajuda do clarão de um raio, pôde ver os reflexos nos óculos espelhados de quem o esperava e concluiu logo de quem se tratava. Havia um milícia que nunca largava os óculos escuros espelhados, nem à noite. Pelos vistos o Milícia Sadjuma estava ali sentado há cerca de duas horas. Que se passaria para ele estar tanto tempo à espera do Alferes? Algo de grave teria acontecido. Pela sua cabeça passou logo a ideia, muito generalizada, dos casos passionais entre milícias que, contrariamente aos metropolitanos que os resolvem à pancada ou até pela morte, os tropas africanos vêem muitas vezes pedir a opinião ou ajuda ao mais graduado presente. Recorda quando a Kadidja o procurou para a ajudar a resolver o seu diferendo com o João.

Está-se naquele fim do mundo, a dezenas de quilómetros de qualquer tabanca importante. Está-se em plena época das chuvas o que torna as picadas intransitáveis. Mulheres, salvo a bajuda Asmau, só havia as de alguns milícias. Havia pois alguns que não tinham companheira. O cérebro do Alferes quase “deita fumo” tentando articular respostas para o que o Sadjuma lhe iria expor. A mulher do Sadjuma era a Bobo, sem dúvida a mais interessante mulher da tabanca, exceptuando a Asmau, claro. Era pois muito apetecível. Até o nosso Alferes, logo no primeiro dia, ficou um tanto perturbado quando a viu. Pensou nessa altura que seria bajuda, apesar de estar com uma criança ao colo, o filho do João.

Quando o nosso Alferes se aproxima da sua morança o Sadjuma levanta-se e, como está devidamente fardado, faz uma continência como lhe ensinaram na instrução. O Alferes estava cada vez mais preocupado com o que podia sair da boca do milícia. É sabido que em assuntos estritamente militares, inclusive de guerra, o nosso Alferes é muito desenvolto, mas no que diz respeito aos sentimentos é muito inibido. Depois de uma continência daquelas o Alferes não tem alternativa e pergunta:

- Que se passa Sadjuma?

- Desculpe meu “Alfero” vir incomodá-lo mas tenho uma coisa muito importante a pedir-lhe.

Na cabeça do Alferes há um turbilhão de ideias pois não consegue antever o que vai sair dali. Um homem esperar duas horas para lhe pedir uma coisa… Algo muito importante será. Porque o não teria procurado durante o jantar? Talvez por ser assunto sigiloso. Ah era isso, pensou. Deve ser coisa muito “cabeluda”.

Deve dizer-se que o milícia Sadjuma é o militar mais aprumado de todo o pelotão de milícia. Nunca é visto sem camisa ou sem boina. Quando um superior fala com ele, põe-se sempre na posição de sentido.

A chuva começa a cair com intensidade o que serviu para o Alferes interromper por momentos a conversa que, a contra gosto, iria ter com o Sadjuma.

- Entra Sadjuma, senão molhamo-nos.

Entraram ambos para a morança e o Alferes sentou-se numa ponta da sua cama e ofereceu a outra ponta ao milícia. Este recusou, dizendo que estava bem de pé. O Alferes insistiu, tanto mais que aquela posição rígida de sentido o estava a incomodar. Numa atitude de obediência acabou por se sentar. Para retardar mais um pouco a conversa que imaginava complexa, o Alferes ao ligar um pequeno candeeiro a pilhas, foi dizendo:

- Sadjuma, bebes uma cerveja?

- Não meu “Alfero”, não posso, sou muçulmano.

- Desculpa, não sabia, queres então uma “Fanta” ou água do filtro?

- Pode ser água.

Lá fora a chuva caía em rajadas. O nosso Alferes nota que, contrariamente ao que acontecia no Agrupamento em Bafata, em que uma chuvada assim produzia um tal barulho nos telhados de chapa que nem dava para conversar, aqui numa morança com cobertura de capim, a chuva não produzia ruído algum.

Não havia que fugir mais ao problema que ali tinha trazido aquele homem. Mais nada havia a dizer que não fosse o Sadjuma fazer o pedido ao Alferes.

- Diz lá Sadjuma o que me tens a pedir.

- É sobre o forno que o meu Alferes fez.

De tudo o que o Alferes tinha pensado como sendo o problema do milícia, o forno não fazia parte. O Sadjuma continuou.

Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 31 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7698: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (52): Na Kontra Ka Kontra: 16.º episódio

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