1. Mensagem José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 31 de Janeiro de 2011:
Caros Camaradas
Junto nova história para inserir nas "Memórias boas da minha guerra".
Quero, desta forma, lembrar o meu grande amigo "Chico d'Alcântara" que, embora sendo um Chico inteligente, nunca foi considerado um Chico-esperto.
Um abraço do
Silva
Memórias boas da minha guerra (11)
Chico d’Alcântara – Um homem de excepção
O Francisco de Alcântara era de Lisboa e, apesar de rodeado de nortenhos por todos os lados, safava-se bem nos debates com os tripeiros… mas só depois de ver bem que terrenos pisava. Não era burro, não senhor, antes pelo contrário. Não foi por acaso que rapidamente conquistou a simpatia da malta. Além disso, teve a sorte de não professar a “religião mourisca”, a tal protegida pelo regime, a que chamavam glorioso éce-éle-bê, o que, já naquele tempo dos filmes de terror a preto e branco, era uma mais valia de realçar.
Era um camarada a 100%. Alimentava amizades, gostava muito da borga e ajudava sempre à festa. Nunca quis ser valente nem, tão pouco, escondia essa fraqueza. Preocupava-se, isso sim, em defender a sua pele e a dos seus, numa perspectiva de que o tempo iria passando.
Quem andou mesmo na guerra, dita porrada, aos tiros, sabe que o pior era ultrapassar os primeiros 4 meses, pois que era um tempo limite para cada um deixar de combater os medos, racionalizar os perigos e, ao mesmo tempo, aceitar a ausência dos seus entes mais queridos. Digamos que, a partir dali, estaríamos apanhados pelo clima. E a verdade é que aquele sofrimento permanente é ultrapassado por uma evidente entrega de cada um à sua sorte. Nesses curtos meses já se tinham passado coisas bem demonstrativas de que, além das devidas cautelas, a sobrevivência era uma questão de sorte.
Pois, mas para quem ainda não estava “apanhado”, porque se vinha safando em “esquivanços” contínuos, as coisas eram diferentes. Por isso, era vulgar verem-se militares ainda em doloroso sofrimento, após largos meses de porrada.
O Chico, foi um desses sofredores, apesar de trazer a coisa bem estudada. Sempre que se aproximava alguma operação mais perigosa, lá estava ele doente, quase em último grau. Descobrimos mais tarde, que ele trazia consigo uma ementa/relação de 38 doenças capazes de o manter afastado das Operações Militares mais perigosas. Com o medo do qual ele, conscientemente, nunca se libertou, e com as inúmeras Operações Militares que a nossa Cart 1689 (em intervenção) vinha efectuando, o Chico não demorou muito a esgotar o referido cardápio das doenças.
Por outro lado ele, um “bon vivant”, como gostava da borga e de toda a actividade de lazer, por vezes “enfiava o pé na argola”, comprometendo as suas aludidas limitações pontuais.
Lembro-me que ainda estávamos em Fá Mandinga, quando havíamos regressado de uma das piores Operações Militares no Oio, em que ele ficara no quartel, muito doente do estômago. Sorrateiramente, saiu da cama e veio pedir ao Miranda para, se parassem em Bafatá, lhe trazer um ou dois frangos mas... “ouve, lá: - com bastante piri-piri”.
Já em Catió, numa fase também difícil, devido às Operações Militares para os lados do Cantanhez, o Chico, esgotado o cardápio das doenças, apareceu com um pé frito, meia hora antes da partida para mais uma.
Passados estes anos todos, ainda prevalecem muitas dúvidas quanto a este acidente.
O Chico fez-nos crer que foi à cozinha da messe para ver se trazia algum “reforço”, pois que ele era de muito sustento. Por coincidência, a frigideira apareceu no chão, ainda com o azeite/óleo quente e ele colocou lá o pé (? descalço?), inadvertidamente.
O Básico dizia que a frigideira estava em cima de uma mesa e que o Furriel Alcântara, já lá tinha ido várias vezes “cheirar”.
O cozinheiro Laurentino, não se apercebeu de nada. mas dizia que logo que lhe cheirou a chispe de porco grelhado, imaginou uma tragédia.
O “Doutor Berguinhas”, que gastou quilómetros de gaze a inutilizar o Chico, alarmava toda a gente, dizendo que a coisa era muito grave e, como todas as queimaduras, sofreria uma evolução de 9 dias. O Chico entrou imediatamente em rigorosa quarentena, não podendo fazer “puto”.
Porém, como fazia parte da equipa de futebol dos graduados do BART 1913, não podia faltar ao jogo, que se iria realizar três dias depois do “acidente”. E foi num aparente gesto altruísta e de grande sofrimento que ele se sacrificou a jogar, aplicando todos os seus dotes futebolísticos e toda a sua máxima força física.
Mais tarde, na terrível implantação de Gandembel, ajudou a fazer um buraco/abrigo no chão, onde se manteve heróica e pacientemente deitado, ajoelhado ou de cócoras, mais de um mês. Só saía, e apressadamente (para muito perto), para defecar e pouco mais, arriscando a pele e pondo em cheque o seu corpo desprotegido, bem como todas as suas capacidades de defesa. O Chico d’Alcântara, quando regressou a Catió, trazia a cor da pele verde/amarelada, idêntica à das plantas, carentes de luz e de clorofila…
Acresce dizer e lamentar que o Furriel Miliciano Francisco de Alcântara, inexplicavelmente e apesar de tanto esforço e sofrimento desumano, não recebeu qualquer louvor das chefias. Pensa-se que, possivelmente, os louvores terão sido esgotados com a sua distribuição a alguns temerários, aos “chicos” de secretaria e a vários “afilhados” do Comandante.
Silva da CART 1689
Nota: Para mim, o azeite já estava “friu”.
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 27 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7681: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (10): Tony, o lisboeta
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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4 comentários:
Ah! Ganda Xico de Alcântara, bairro de mouros, operários, revolucionários, fadistas, e gente da noite... Um bairro popular de Lisboa, no termo da cidade (antes do Terramoto de 1755) onde como em toda a parte havia/há gente de todas as formas e feitios...
Do árabe "al-qantara", que significa "ponte"... Vejam a entrada na Wikipédia...
http://pt.wikipedia.org/wiki/Alc%C3%A2ntara_(Lisboa)
Independentemente da sua origem, o Xico é uma figura muito bem "apanhada" pelo nosso "ranger" Silva, camarada do Branquinho, também ele "ranger", na CART 1689/BART 1913...
O Xico d'Alcântara faz parte, como todos nós, da "fauna humana" que povoou os nossos aquartelamentos na Guiné... Não serei eu o primeiro a lançar-lhe uma pedra... Continuamos a conhecer, todos os dias, nas nossas organizações, "xicos espertos", que tratam bem da sua vidinha, que procuram não dar muito nas vistas e que vão sobrevivendo contra "ventos e marés"...
Tenho ideia que havia, nas nossas subunidades, um sistema (tácito, não escrito) de "rotação de baldas"... Quem é que nunca se "desenfiou" ? Quem é que nunca precisou de ir "desopilar" a Bissau ? Era uma medida premente de "higiene mental"... Às vezes eram os próprios médicos que se apercebiam do "estado miserável" a que podia chegar um infante... Mas tudo com conta, peso e medida.... A malta ia-se revezando, e ao mesmo tempo tempo aguentando o sistema... Outra coisa, completamente diferente, era "tirar o máximo partido do sistema"... Sei do que falo porquanto funcionei na minha companhia como "pião de nicas" nas mãos do capitão... Como nunca tive lugar certom, alinhava em todos os grupos de combate e alinheir na maior parte das missões, substituindo camaradas desenfiados, incapacitados, de baixa ou de férias...
Hoje, à distância de 40 anos, podemos ter o sentimento de uma alguma injustiça,
de ter havido camaradas que tinham mais lata ou jeito para o "desenfianço"... De facto, éramos todos iguais, mas havia sempre uns mais iguais do que outros...
Em suma, havia em todas as nossas subunidades um Xico d'Alcântara, ou até mais do que um, tudo dependendo da boa ou má competência dos nossos comandantes na Gestão dos seus Recursos Humanos, em especial dos quadros... e da maior ou menor coesão e espírito de camaradagem e entreajuda entre toda a malta...
Camarada Luis.
Não há dúvida que vale a pena escrevinhar alguma coisa que te "obrigue" a tão interessantes comentários.
Duplamente Obrigado.
Um grande abraço do
Silva
Caro camarada Jose Silva
Concordo que em todas as companhias havia sempre um Xico d!Alcantara, no fim não era um amigo do seu semelhante, era sim um heroi de um egoismo puro.
Mas voltando á chamada vaca fria, nós também tivemos a "sorte" de um igual. Um elemento nosso apareceu com a planta dos pés em carne viva, o médico não conseguia descobrir a mezinha para tal mal. A "doença" piorava antes de grandes saidas, Mores, Fajunquito, Dandu,Biambi, etc., o que alertou as chefias.
Depois de vários espianços, viemos a descobrir que o sujeito, deitava sal dentro das botas.
Foram os próprios camaradas que exigiram que ele fosse castigado exemplarmente.
Rogerio Cardoso
Cart.643-Bissorã-AGUIAS NEGRAS
Foi bom nao ter que fazer hoje para ler alguma coisa tua, mais. E esta foto da equipe de graduados em Catió, da para recordar o Rijo sempre com o chapeu enfiado, o Gil, até o Picota Dias que com aquele nariz só poderia dar para central.
Há outros de quem não me lembram os nomes. Gandas manfios.
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