1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Fevereiro de 2011:
Queridos amigos,
Se o repórter é aquele que não vira a cara ao risco e vai desarmando entre os combatentes até à linha de fogo e trabalha com paixão, procurando informar com o recurso adequado da imagem eloquente, Luís Castro é um sortudo, não lhe escapa, no vórtice desses momentos de conflito, a ousadia e a têmpera para ir mais longe e chegar primeiro que todos os outros. Por isso as suas reportagens são tão peculiares, verdadeiros exclusivos para quem contempla o seu trabalho em frente do ecrã.
Como os acontecimentos que ele registou na Guiné-Bissau.
Um abraço do
Mário
Um extraordinário repórter de guerra na Guiné-Bissau
Beja Santos
“Não escolhi palavras bonitas para embelezar o texto. É meramente factual. O que aqui está, aconteceu. Mesmo. Sou contra as fantasias”. É assim que Luís Castro, jornalista da RTP e que ao serviço desta estação já cobriu um número considerável de guerras ou situações de conflito, com destaque para o Iraque, Afeganistão, Angola e Timor, apresenta “Repórter de Guerra”, um livro de oiro da reportagem (“Repórter de Guerra”, por Luís Castro, Oficina do Livro, 2007). Vamos circunscrever a recensão obviamente ao que se passou na Guiné-Bissau em acontecimentos que ele viveu entre 1998 e 2003. Acerca do que escreve, ele prepara-nos da seguinte maneira: “Pela primeira vez na história da televisão portuguesa, uma equipa da RTP viu como se prepara um golpe de Estado, acompanhou os bastidores nos dias que o antecederam e procederam, conheceu os intervenientes directos e indirectos e sentiu os anseios, medos, pressões, ameaças e ambições. Mas compreender o que foi a guerra civil na Guiné-Bissau é necessário saber como tudo começou em 1998, quando Ansumane Mané se revoltou contra o presidente Nino Vieira”.
Chegam as primeiras notícias de que está em curso um golpe de Estado na Guiné-Bissau, estamos em 1998. Tudo parece surpreendente, para quem nada conhece os antecedentes da história: Nino vem a público acusar Ansumane Mané de contrabandear armas para os guerrilheiros que lutam pela independência de Casamansa, nessa alocução pública pede ajuda aos países vizinhos. Os países vizinhos enviam tropas e armamento, respondem assim ao apelo do Kabi. Só que a situação se vai agravar, Bissau transforma-se numa cidade caótica, brancos, pretos e mestiços o que querem é fugir. Correspondendo ao apelo da RTP, Luís Castro parte para Dakar e daqui para Bissau. Vai acompanhado de Hélder Oliveira, considerado um dos melhores repórteres de imagem da RTP. A bordo da fragata Vasco da Gama vão começando a filmar: os clarões dos bombardeamentos, depois os fuzileiros a trazer nos botes os fugitivos. Quando a fragata atraca em Bissau, Luís Castro lança-se ao trabalho em que ganhou esporas: vai captar imagens no centro do vulcão. Nino está sentado nas escadas do seu palácio, isto quando as ruas de Bissau estão quase desertas. Um religioso muçulmano leva a equipa de reportagem ao encontro dos rebeldes encapuçados por Ansumane Mané. É nessa viagem sob um calor infernal que o repórter conhece o major Manuel Melcíades ou Manuel Mina. É a primeira entrevista dos revoltosos:
“- Quais são as áreas que controlam?
- Todo o país. O Governo não tem tropa. Só soldados do Senegal, de Conacri e alguns franceses. Os nossos estão todos deste lado. Agora lutamos contra franceses, senegaleses e conacris.
- Vão avançar sobre Bissau?
- Não é difícil entrar em Bissau! Temos 10 tanques blindados, daqueles com lagartas e canhão. Podemos entrar a qualquer hora. O problema é a população.
- Aceitam negociações?
- As negociações dependem deles!”.
O repórter está radiante, até apanhou o Hélder enterrado no tarrafo. Nino e os seus acólitos não gostaram da sua reportagem. Depois voltam para conversar com os rebeldes, desta vez na base aérea onde está montado o Comando Supremo da Junta Militar. Ansumane não aceita entrevistas, filma-se o passaporte, imagem que a RTP irá divulgar através da Eurovisão. O repórter regista conversas com sabor a tragédia e comédia. Vão à Rádio Bombolom, é por este meio que os guineenses vão conhecendo o desenvolvimento da guerra, o Manuel Mina vai intoxicando com contra-informação as forças leais a Nino, faz bluff, há muita gente que passa para o lado de Ansumane com medo de ser acusado de traição. Filmam-se depois os soldados senegaleses mortos na linha de combate, afinal as forças internacionais vão sendo destruídas por esses velhos guerrilheiros que conhecem o terreno a palmo e que põem tropas bem equipadas fora de combate. É um quotidiano efervescente, o repórter procura todos os eventos de caixa alta e obtém-nos miraculosamente. É o caso da entrevista com Ansumane Mané, e depois quando este vai encontrar-se com Jaime Gama e Venâncio Moura, a delegação de mediação da CPLP. Aos poucos, o repórter obtém entrevistas que são peças históricas da Guiné-Bissau. Luís Castro volta à Guiné em 1999, no exacto momento em que as forças que apoiam Nino capitulam, ele foge, o povo festeja aquilo a que se chamou a terceira independência, o pessoal da Junta Militar leva o repórter a visitar os prisioneiros de guerra: “Há desde ministros, membros do governo, colaboradores de Nino, comandantes militares, oficiais superiores e simples soldados.
Amontoam-se vinte e tal em pouco mais de dez metros quadrados. Os que não têm espaço cá em baixo penduram-se nas grades das janelas. O cheiro é nauseabundo e os prisioneiros escondem a cara quando se abrem as portas das celas e nos vêm. Entrevisto um que diz ter sido fiel até ao último dia. «Foi o destino», remata”. Acabou a guerra mas o Telejornal tem que ser alimentado. Luís Castro vai à procura de histórias, começa pelas atrocidades de Nino, as falsas intentonas de golpes de Estado e as vítimas das suas câmaras de torturas. Recolhe depoimentos de coronéis e tenentes-coronéis: “Davam-me bocadinhos de comida e água com sal. Durante nove meses não sai da cela para apanhar sol. Espancaram-me até me julgarem morto”, ou “Taparam-me o rosto com um pano, meteram-me fios eléctricos nas mãos e nos pés e ligaram a corrente” ou “Eu tenho um problema de fecundidade. Dera-me choques nos testículos. Nem os colonizadores portugueses fizeram este tipo de tortura”.
Em 2003, Luís Castro cobre o golpe de Estado que afasta Kumba Ialá da presidência da República. Nem Kafka se lembraria de criar esta atmosfera. O golpe é programado por militares, tem hora e lugar preestabelecidos. É um momento extraordinário da história da reportagem escrita em português. Kumba Ialá está sorridente, conversa descontraído com os homens do golpe que o acabou de depor. Kumba ignora o que aconteceu, ri a bandeiras despregadas. É tudo tão surreal que quando os golpistas lhe perguntam: “Quer ficar aqui, no quartel-general ou ir para casa?”, Kumba respondeu: “Prefiro ir para casa, estou cansado”. Forma-se uma coluna militar e levam-no. Quando viu que estava a ser levado para casa, perguntou a um dos seus oficiais: “Para onde vamos? Eu quero ir para a Presidência.”. Seguiu-se um diálogo hilariante: “Não podes”. “Mas não posso porquê?”. “Porque houve um golpe.”. “Um quê?”. “Um golpe de Estado”. “Contra quem?”. “Contra ti”. “Contra mim?”. “Sim. E já não és Presidente!”. “Então quem é?”. “É o Veríssimo”. “O Veríssimo?”. “Sim, o Veríssimo. Tu já não mandas!”. “Ai o filho da puta, cabrão, vou matar-te!”. Foi preciso metê-lo à força dentro de casa.
Claro que a história não acabou aqui. A 6 de Outubro de 2004, militares com patentes inferiores a major assassinaram o general Veríssimo Correia Seabra. Só não conseguiram eliminar todo o Estado-Maior porque os restantes se esconderam na Embaixada Portuguesa. Não se pode entender o poder dos militares na Guiné-Bissau nos dias de hoje, como permanecem intocáveis no seu golpismo, traficando cocaína e numa total impunidade, sem ir atrás e perceber como a partir de 1980 Nino pregou uma grande partida ao poder político e deixou os militares a funcionar com leis arbitrárias e a rirem-se das eleições livres.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 1 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7704: Notas de leitura (197): Ordem Para Matar, de Queba Sambu (2) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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6 comentários:
Caro camarigo Beja Santos
E a CÂNDIDA PINTO.. mais a sua equipa --não.Essa sim.
Falo com conhecimento de causa.Se fosse falar de alguns pseudo-repórteres---uiii. tinha muito que contar, também com conhecimento de causa, é que também por lá andei,noutras funções é certo, nomeadamente na Guiné e em Timor.
C.Martins
PS
SEI QUE SABEM, MAS OS DENOMINADOS REPÓRTERES TÊM SEMPRE UMA EQUIPA A ACOMPANHÁ-LOS QUE NORMALMENTE NINGUÉM CONHECE.
C.Martins
A guerra da referida reportagem ia acabando com o país "Guiné-Bissau" e concretizava-se a ideia do Sekou Touré, que Guiné só há uma, que era a sua Guiné.
Se não fosse o General Ussumane os senegaleses e guineenses nunca mais saiam do país.
Aliás, se a Guiné tivesse o nome de Bijagó ou Pèpel era mais lógico, pois que o governador geral esteve sempre sediado no arquipélago formado por aquelas ilhas.
A propósito de vizinhos, a BBC já acabou com o programa em português para África, que muitos da nossa geração ouviram durante e antes da guerra colonial e após.
Claro que são pensamentos apenas meus e dos meus botões!
Meu Caro Beja Santos.
Camarada.
Este meu comentário só tem razão de ser porque trouxeste algumas páginas do livro ao conhecimento da Tabanca.
Lembro: nos primeiros dias da guerra de 98 não havia ninguém da RTP em Bissau. Tudo o que foi feito foi pelo próprio delegado da RTP que nem jornalista era.
Os primeiros jornalistas portugueses a entrarem em Bissau foram o Carlos Narciso da Sic e o Pedro Rosa Mendes do Público. Os primeiros jornalistas portugueses a entrarem pelo norte e os primeiros a contactarem com a Junta (quer em Safim quer na base de Bissalanca) os primeiros a visitarem a Rádio Bombalom e a darem conta do tanque abatido com um senegalês à ilharga foram:
José M. Saraiva e Rui Ochoa (Expresso), Luis Nave (DN) Eduardo Dâmaso (Público) Luis Lourenço (TSF) e este teu criado pela Antena.
Já agora, como eu li o livro só muito transversalmente e tu dás a ideia de o teres lido em profundidade, podes dizer-me se o autor divulga o nome do jornalista que aceitou ser portador de um telefone satélite para os homens da junta poderem contactar com autoridades portuguesas?
toma lá um abraço camarada do
armando pires
"Lembro: nos primeiros dias da guerra de 98 não havia ninguém da RTP em Bissau. Tudo o que foi feito foi pelo próprio delegado da RTP que nem jornalista era."
Subscrevo inteiramente esta assercao !
I was there...por um orgao de um pais outro, que nao Portugal !
Mas fico por aqui,por nao conhecer o livro...
Nelson Herbert
Voice of America
Washington DC,USA
Meu caro camarada Armando Pires, muito obrigado pelas suas observações. O próprio Luís Castro revela as peripécias da sua deslocação via Dakar. Quanto à questão do telefone satélite e quem o ofereceu à junta, o Luís Castro escreve a páginas 150 o seguinte: "O major [Melcíades] surpreende-me a cada dia que passamos juntos. E ainda não satisfeito, exibe triunfalmente um telefone satélite igualzinho ao nosso. A delegação da CPLP pedira-lhes uma linha directa para contactos, mas, porque Nino Vieira mandara cortar os telefones da base aérea, Jaime Gama ordenou que o aparelho que o Embaixador João Salgueiro levava ficasse com a Junta Militar. Quando se soube que os rebeldes tinham recebido um telefone satélite, fiquei com a fama de ter sido eu a levá-lo". Um abraço do Mário
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