quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7715: Notas de leitura (198): Repórter de Guerra, de Luís Castro (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Fevereiro de 2011:

Queridos amigos,
Se o repórter é aquele que não vira a cara ao risco e vai desarmando entre os combatentes até à linha de fogo e trabalha com paixão, procurando informar com o recurso adequado da imagem eloquente, Luís Castro é um sortudo, não lhe escapa, no vórtice desses momentos de conflito, a ousadia e a têmpera para ir mais longe e chegar primeiro que todos os outros. Por isso as suas reportagens são tão peculiares, verdadeiros exclusivos para quem contempla o seu trabalho em frente do ecrã.
Como os acontecimentos que ele registou na Guiné-Bissau.

Um abraço do
Mário


Um extraordinário repórter de guerra na Guiné-Bissau

Beja Santos

“Não escolhi palavras bonitas para embelezar o texto. É meramente factual. O que aqui está, aconteceu. Mesmo. Sou contra as fantasias”. É assim que Luís Castro, jornalista da RTP e que ao serviço desta estação já cobriu um número considerável de guerras ou situações de conflito, com destaque para o Iraque, Afeganistão, Angola e Timor, apresenta “Repórter de Guerra”, um livro de oiro da reportagem (“Repórter de Guerra”, por Luís Castro, Oficina do Livro, 2007). Vamos circunscrever a recensão obviamente ao que se passou na Guiné-Bissau em acontecimentos que ele viveu entre 1998 e 2003. Acerca do que escreve, ele prepara-nos da seguinte maneira: “Pela primeira vez na história da televisão portuguesa, uma equipa da RTP viu como se prepara um golpe de Estado, acompanhou os bastidores nos dias que o antecederam e procederam, conheceu os intervenientes directos e indirectos e sentiu os anseios, medos, pressões, ameaças e ambições. Mas compreender o que foi a guerra civil na Guiné-Bissau é necessário saber como tudo começou em 1998, quando Ansumane Mané se revoltou contra o presidente Nino Vieira”.

Chegam as primeiras notícias de que está em curso um golpe de Estado na Guiné-Bissau, estamos em 1998. Tudo parece surpreendente, para quem nada conhece os antecedentes da história: Nino vem a público acusar Ansumane Mané de contrabandear armas para os guerrilheiros que lutam pela independência de Casamansa, nessa alocução pública pede ajuda aos países vizinhos. Os países vizinhos enviam tropas e armamento, respondem assim ao apelo do Kabi. Só que a situação se vai agravar, Bissau transforma-se numa cidade caótica, brancos, pretos e mestiços o que querem é fugir. Correspondendo ao apelo da RTP, Luís Castro parte para Dakar e daqui para Bissau. Vai acompanhado de Hélder Oliveira, considerado um dos melhores repórteres de imagem da RTP. A bordo da fragata Vasco da Gama vão começando a filmar: os clarões dos bombardeamentos, depois os fuzileiros a trazer nos botes os fugitivos. Quando a fragata atraca em Bissau, Luís Castro lança-se ao trabalho em que ganhou esporas: vai captar imagens no centro do vulcão. Nino está sentado nas escadas do seu palácio, isto quando as ruas de Bissau estão quase desertas. Um religioso muçulmano leva a equipa de reportagem ao encontro dos rebeldes encapuçados por Ansumane Mané. É nessa viagem sob um calor infernal que o repórter conhece o major Manuel Melcíades ou Manuel Mina. É a primeira entrevista dos revoltosos:

“- Quais são as áreas que controlam?

- Todo o país. O Governo não tem tropa. Só soldados do Senegal, de Conacri e alguns franceses. Os nossos estão todos deste lado. Agora lutamos contra franceses, senegaleses e conacris.

- Vão avançar sobre Bissau?

- Não é difícil entrar em Bissau! Temos 10 tanques blindados, daqueles com lagartas e canhão. Podemos entrar a qualquer hora. O problema é a população.

- Aceitam negociações?

- As negociações dependem deles!”.

O repórter está radiante, até apanhou o Hélder enterrado no tarrafo. Nino e os seus acólitos não gostaram da sua reportagem. Depois voltam para conversar com os rebeldes, desta vez na base aérea onde está montado o Comando Supremo da Junta Militar. Ansumane não aceita entrevistas, filma-se o passaporte, imagem que a RTP irá divulgar através da Eurovisão. O repórter regista conversas com sabor a tragédia e comédia. Vão à Rádio Bombolom, é por este meio que os guineenses vão conhecendo o desenvolvimento da guerra, o Manuel Mina vai intoxicando com contra-informação as forças leais a Nino, faz bluff, há muita gente que passa para o lado de Ansumane com medo de ser acusado de traição. Filmam-se depois os soldados senegaleses mortos na linha de combate, afinal as forças internacionais vão sendo destruídas por esses velhos guerrilheiros que conhecem o terreno a palmo e que põem tropas bem equipadas fora de combate. É um quotidiano efervescente, o repórter procura todos os eventos de caixa alta e obtém-nos miraculosamente. É o caso da entrevista com Ansumane Mané, e depois quando este vai encontrar-se com Jaime Gama e Venâncio Moura, a delegação de mediação da CPLP. Aos poucos, o repórter obtém entrevistas que são peças históricas da Guiné-Bissau. Luís Castro volta à Guiné em 1999, no exacto momento em que as forças que apoiam Nino capitulam, ele foge, o povo festeja aquilo a que se chamou a terceira independência, o pessoal da Junta Militar leva o repórter a visitar os prisioneiros de guerra: “Há desde ministros, membros do governo, colaboradores de Nino, comandantes militares, oficiais superiores e simples soldados.

Amontoam-se vinte e tal em pouco mais de dez metros quadrados. Os que não têm espaço cá em baixo penduram-se nas grades das janelas. O cheiro é nauseabundo e os prisioneiros escondem a cara quando se abrem as portas das celas e nos vêm. Entrevisto um que diz ter sido fiel até ao último dia. «Foi o destino», remata”. Acabou a guerra mas o Telejornal tem que ser alimentado. Luís Castro vai à procura de histórias, começa pelas atrocidades de Nino, as falsas intentonas de golpes de Estado e as vítimas das suas câmaras de torturas. Recolhe depoimentos de coronéis e tenentes-coronéis: “Davam-me bocadinhos de comida e água com sal. Durante nove meses não sai da cela para apanhar sol. Espancaram-me até me julgarem morto”, ou “Taparam-me o rosto com um pano, meteram-me fios eléctricos nas mãos e nos pés e ligaram a corrente” ou “Eu tenho um problema de fecundidade. Dera-me choques nos testículos. Nem os colonizadores portugueses fizeram este tipo de tortura”.

Em 2003, Luís Castro cobre o golpe de Estado que afasta Kumba Ialá da presidência da República. Nem Kafka se lembraria de criar esta atmosfera. O golpe é programado por militares, tem hora e lugar preestabelecidos. É um momento extraordinário da história da reportagem escrita em português. Kumba Ialá está sorridente, conversa descontraído com os homens do golpe que o acabou de depor. Kumba ignora o que aconteceu, ri a bandeiras despregadas. É tudo tão surreal que quando os golpistas lhe perguntam: “Quer ficar aqui, no quartel-general ou ir para casa?”, Kumba respondeu: “Prefiro ir para casa, estou cansado”. Forma-se uma coluna militar e levam-no. Quando viu que estava a ser levado para casa, perguntou a um dos seus oficiais: “Para onde vamos? Eu quero ir para a Presidência.”. Seguiu-se um diálogo hilariante: “Não podes”. “Mas não posso porquê?”. “Porque houve um golpe.”. “Um quê?”. “Um golpe de Estado”. “Contra quem?”. “Contra ti”. “Contra mim?”. “Sim. E já não és Presidente!”. “Então quem é?”. “É o Veríssimo”. “O Veríssimo?”. “Sim, o Veríssimo. Tu já não mandas!”. “Ai o filho da puta, cabrão, vou matar-te!”. Foi preciso metê-lo à força dentro de casa.

Claro que a história não acabou aqui. A 6 de Outubro de 2004, militares com patentes inferiores a major assassinaram o general Veríssimo Correia Seabra. Só não conseguiram eliminar todo o Estado-Maior porque os restantes se esconderam na Embaixada Portuguesa. Não se pode entender o poder dos militares na Guiné-Bissau nos dias de hoje, como permanecem intocáveis no seu golpismo, traficando cocaína e numa total impunidade, sem ir atrás e perceber como a partir de 1980 Nino pregou uma grande partida ao poder político e deixou os militares a funcionar com leis arbitrárias e a rirem-se das eleições livres.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7704: Notas de leitura (197): Ordem Para Matar, de Queba Sambu (2) (Mário Beja Santos)

6 comentários:

Anónimo disse...

Caro camarigo Beja Santos

E a CÂNDIDA PINTO.. mais a sua equipa --não.Essa sim.
Falo com conhecimento de causa.Se fosse falar de alguns pseudo-repórteres---uiii. tinha muito que contar, também com conhecimento de causa, é que também por lá andei,noutras funções é certo, nomeadamente na Guiné e em Timor.
C.Martins

Anónimo disse...

PS
SEI QUE SABEM, MAS OS DENOMINADOS REPÓRTERES TÊM SEMPRE UMA EQUIPA A ACOMPANHÁ-LOS QUE NORMALMENTE NINGUÉM CONHECE.
C.Martins

Antº Rosinha disse...

A guerra da referida reportagem ia acabando com o país "Guiné-Bissau" e concretizava-se a ideia do Sekou Touré, que Guiné só há uma, que era a sua Guiné.

Se não fosse o General Ussumane os senegaleses e guineenses nunca mais saiam do país.

Aliás, se a Guiné tivesse o nome de Bijagó ou Pèpel era mais lógico, pois que o governador geral esteve sempre sediado no arquipélago formado por aquelas ilhas.

A propósito de vizinhos, a BBC já acabou com o programa em português para África, que muitos da nossa geração ouviram durante e antes da guerra colonial e após.

Claro que são pensamentos apenas meus e dos meus botões!

armando pires disse...

Meu Caro Beja Santos.
Camarada.
Este meu comentário só tem razão de ser porque trouxeste algumas páginas do livro ao conhecimento da Tabanca.
Lembro: nos primeiros dias da guerra de 98 não havia ninguém da RTP em Bissau. Tudo o que foi feito foi pelo próprio delegado da RTP que nem jornalista era.
Os primeiros jornalistas portugueses a entrarem em Bissau foram o Carlos Narciso da Sic e o Pedro Rosa Mendes do Público. Os primeiros jornalistas portugueses a entrarem pelo norte e os primeiros a contactarem com a Junta (quer em Safim quer na base de Bissalanca) os primeiros a visitarem a Rádio Bombalom e a darem conta do tanque abatido com um senegalês à ilharga foram:
José M. Saraiva e Rui Ochoa (Expresso), Luis Nave (DN) Eduardo Dâmaso (Público) Luis Lourenço (TSF) e este teu criado pela Antena.
Já agora, como eu li o livro só muito transversalmente e tu dás a ideia de o teres lido em profundidade, podes dizer-me se o autor divulga o nome do jornalista que aceitou ser portador de um telefone satélite para os homens da junta poderem contactar com autoridades portuguesas?
toma lá um abraço camarada do
armando pires

Anónimo disse...

"Lembro: nos primeiros dias da guerra de 98 não havia ninguém da RTP em Bissau. Tudo o que foi feito foi pelo próprio delegado da RTP que nem jornalista era."

Subscrevo inteiramente esta assercao !

I was there...por um orgao de um pais outro, que nao Portugal !

Mas fico por aqui,por nao conhecer o livro...

Nelson Herbert
Voice of America
Washington DC,USA

Mário Beja Santos disse...

Meu caro camarada Armando Pires, muito obrigado pelas suas observações. O próprio Luís Castro revela as peripécias da sua deslocação via Dakar. Quanto à questão do telefone satélite e quem o ofereceu à junta, o Luís Castro escreve a páginas 150 o seguinte: "O major [Melcíades] surpreende-me a cada dia que passamos juntos. E ainda não satisfeito, exibe triunfalmente um telefone satélite igualzinho ao nosso. A delegação da CPLP pedira-lhes uma linha directa para contactos, mas, porque Nino Vieira mandara cortar os telefones da base aérea, Jaime Gama ordenou que o aparelho que o Embaixador João Salgueiro levava ficasse com a Junta Militar. Quando se soube que os rebeldes tinham recebido um telefone satélite, fiquei com a fama de ter sido eu a levá-lo". Um abraço do Mário