sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Guiné 63/74 - P8642: Notas de leitura (262): Marcello e Spínola: A Missão do Fim (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2011:

Queridos amigos,
Tive que ler duas vezes até me convencer que comprei gato por lebre. É espantoso como um professor catedrático vem incensar uma tese de mestrado, fala em inegável marca de qualidade, quebra com a rotina historiográfica e ineditismo de abordagem. Não é que o jovem mestre não tenha sido cuidadoso na investigação, o resultado é água chilra, tudo quanto se diz sobre o salazarismo, o marcelismo e o spinolismo não traz novidade nenhuma.
Bem dizia a minha avó que só é novo o que foi esquecido, neste caso é um acto de prosápia da mais descarada vir dizer que este trabalhinho é uma renovação dos estudos históricos. Andamos a falar nas manigâncias das agências de rating e deixamos no seu impune sucesso estes trapaceiros da investigação histórica.

Um abraço do
Mário


Marcello e Spínola: entre o déjà vu e o óbvio

Beja Santos

O livro chama-se “Marcello e Spínola: A Missão do Fim” (por Márcio Barbosa, Edições Almedina, 2011). No prefácio, o Professor Doutor Rui Cunha Martins exalta o ineditismo da abordagem e classifica este contributo como um marco referencial para a renovação dos estudos históricos sobre o Portugal contemporâneo, uma leitura incontornável.

Lê-se o estudo e fica-se com a convicção profunda que o dito professor está a gozar connosco, está a apadrinhar um estudo banal, dispensável (mesmo que consciencioso) que nada acrescenta ao que já sabíamos. Vamos aos factos. Marcello Caetano e Spínola estão efectivamente associados ao fim da era colonial, todo esse dramatismo está suficientemente detalhado, a bibliografia está identificada, não há ainda provas sobre o tempo e os termos da rota de colisão entre o presidente do Conselho e o Governador da Guiné, muito menos é possível associar Amílcar Cabral como peça charneira desse drama. Matéria, aliás, de pouca monta. Vamos por partes.

Primeiro, não se percebe uma longa cronologia sobre as primícias da ditadura em Portugal, está tudo documentado quanto ao modo como Salazar criou um regime chamado “Situação”, como Caetano nele colaborou dedicadamente, mas com ampla margem de manobra face ao ditador que veio de Coimbra. Não há ninguém que não saiba que Salazar e salazarismo são a mesma coisa, que Caetano era um colaborador crítico e por vezes incómodo, sobretudo quando dizia abertamente que o regime corporativo nunca saíra do papel. Como está amplamente documentado que para além de uma grande admiração que o ditador nutria por Caetano nunca lhe conferiu o estatuto de delfim. Meio livro é dedicado a dizer coisas consabidas sobre Salazar, a evolução do regime ditatorial e o início da guerra colonial. O estudo lê-se bem, é um bom resumo sobre a ligação entre Salazar e Caetano, fazendo avultar as dissemelhanças e não ocultando o carácter conservador e permanentemente legalista de Caetano.

A chegada de Caetano a S. Bento é também uma crónica com poucas surpresas: ele vai ficar refém de Tomás, da evolução da própria guerra e da sua incapacidade em pôr em prática o que designava por “autonomia progressiva para o Ultramar. A ligação de Caetano com as colónias, em 1944, também está profundamente estudada como é igualmente conhecida a sua posição federalista, que ele transmitiu ao Conselho Ultramarino. Aqui também não há surpresas, Caetano procura lançar Angola e Moçambique numa senda desenvolvimentista e por outros meios procura fazer o mesmo no Portugal europeu. Tudo correu sem prenúncios de borrasca apocalíptica até 1973.

Quando chega ao poder, em Setembro de 1968, Spínola já partira para a Guiné com ideias muito próprias do que ia fazer na guerra e na captação das populações. Irão entender-se bem, nesses primeiros anos, Spínola não esconde a ninguém que nunca se ganha militarmente uma guerra subversiva. Isto é muito bom de dizer quando não há o risco de a perder, Spínola falhou a paz no chão manjaco, falhou a invasão de Conacri, não conseguiu inverter o curso da guerra ou desalojar o PAIGC das suas posições. Certo é que consolidou os apoios que os portugueses tinham como certos, sobretudo junto dos fulas e mandigas, lançou a Guiné no progresso e recebeu apoio caloroso para a sua política da “Guiné Melhor”. Mas foram trunfos insuficientes.

Enquanto isto ocorre no mais belicoso dos teatros de operações, Caetano não convence com a” renovação da continuidade”. Na revisão constitucional, Caetano é forçado ao jogo do equívoco, teme o descontentamento dos ultras ou a perde de confiança do Almirante Tomás. É nesse ano de 1972 que parece surgir uma oportunidade de conversações de paz na Guiné. Dizer-se que Amílcar Cabral estava disposto a conferenciar com Spínola e não dispor de um documento a favor dessa tese, havendo até testemunhos contrários de Aristides Pereira e Luís Cabral é conjectura irrelevante. O que se negociou, e bem, foi um encontro entre Senghor e Spínola, logo que soube dos resultados (uma proposta de autonomia a prazo, que seria coroada pela independência), Caetano proíbe novas conversações. Caetano não vislumbrou saída política, insidiosamente tudo se encaminhou para um impasse, só que subitamente o teatro de operações da Guiné entrou em tumulto: após o assassinato de Amílcar Cabral, as ofensivas do PAIGC e a chegada de armamento tecnologicamente superior inverteram o curso da guerra.

Porque é na Guiné que deixa de haver impasse militar, os relatórios da delegação da PIDE/DGS na Guiné bem avisam Lisboa de que o PAIGC e sobretudo Cabral terá possibilidades de fazer a independência e acelerar a toada ofensiva nos teatros de operações. Caetano é intransigente, não abre mão para negociações com o PAIGC, elas só terão lugar quando o regime tiver entrado no ocaso, em Março de 1974. O que Spínola propõe em “Portugal e o Futuro” já não é concretizável, após a morte de Cabral só resta a independência.

Se todo este relato decorre de uma atmosfera de seriedade da investigação, sem qualquer elemento inovador, a conclusão não fica atrás: que nos anos 60 o Estado Novo já não era realizável, já não havia condições para regimes autoritários com o tipo de alianças políticas sem as quais Portugal não podia viver; que o projecto político de Caetano era um compromisso inviável com a renovação, ele que era tão radicalmente anti-revolucionário, tão dentro da legalidade; que rejeitou a negociação com o PAIGC de Amílcar Cabral (argumento absurdo, não há provas de que Cabral tenha apoiado as teses de Senghor, a posteriori); que os spinolistas lamentaram esta perda de oportunidade e também por isso apoiaram Spínola, se bem que sem medir as consequências de que se caminhava alegremente para o fim do Império.

Resta questionar como é que é possível um professor catedrático vir elogiar esta digressão de investigação bem elaborada sem mais nada, sem mais futuro. Dá que pensar como as universidades se entretêm em circunlóquios autistas e depois pretendem embasbacar o público. Este livro é gato por lebre, é mais um comprovativo de que a melhor investigação já não passa pelos títulos universitários.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8629: Notas de leitura (261): Amílcar Cabral – Vida e morte de um revolucionário africano, por Julião Soares Sousa (4) (Mário Beja Santos)

4 comentários:

Antº Rosinha disse...

Obrigado Beja Santos. é mais um livro que tiveste o trabalho de ler para mim.
O eu concordar com as tuas opiniões ou não, é liberdade minha e de cada um.
Neste caso, vou contigo que será "água chilra".
Vê se consegues encontrar coisas escritas por africanos em geral e caboverdeanos e luso-africanos em particular, para dar côr.

Anónimo disse...

Pois é!.
Eu, Francisco Godinho, também sou livre(a minha liberdade e de cada um)e por acaso concordo, com a leitura(interpretação) que o MBS faz da obra(conteúdo/objectivo/análise)agora recençada.
O que era possível negociar(pôr em cima da mesa, apoios para argumentar, contrapor, conseguir equilíbrios diplomáticos,etc., etc...) nos anos 50,60 (do século passado, entenda-se)a partir de 1970/71/72/73, essa margem de manobra, pura e simplesmente expirou, ficou fora de prazo, caducou.
Ou apagamos da história (que se faz todos os dias)as actas da ONU, as conferências internacionais, os convites para audiências papais, etc. etc...)?.
O mundo,e o "modus operandi" de o dirigir,se quizerem, "controlar",já nessa época, se calhar tal como hoje,já não era decidido em Lisboa, Luanda, Lourenço Marques(Maputo) ou Bissau. E não necessito, penso eu, de dizer onde é que, ainda hoje, essas "coisas" se decidem.
E não vale a pena,pelo menos para mim, tentar parar o curso, natural, da história dos povos.
Ainda que, com percalços, erros, atrasos, contradições, cada um seguirá o seu caminho.

Abraços camarigos

Francisco Godinho

Anónimo disse...

Caro Beja Santos,
Rui Cunha Martins é professor universitário, mas não é professor catedrático.

Um abraço,
Carlos Cordeiro

Anónimo disse...

Tive a informação de que um comentário de Abreu dos Santos sobre Beja Santos foi cortado posteriormente deste local. Lamento que tal tenha acontecido, mas tem-se notado que B.Santos tem conseguido uma posição privilegiada neste blog, que lhe permite a desfaçatez de analisar trabalhos universitários com as críticas violentas que fez, apenas porque, na sua opinião não trazia "novidades". Se fosse de um elemento dos seus lobbys não seria assim com certeza. Quanto às acusações e insultos desferidos por José Dinis a Abreu dos Santos, acabam por se virar contra quem os proferiu; por isso foram igualmente cuidadosamente excluídos do blog.
Manuel Bernardo