Olá Vinhal
Saúde e força para nos aturar?
Apostado que sim, cá te mando uns pedaços de lembrança que , já o sabes usarás se assim o achares.
Um grande abraço para ti e um outro para todos "atabancados"
Luís Faria
Viagem à volta das minhas memórias (45)
Destacamentos - Pedaços
Os dias nos destacamentos continuavam a passar com a sua morosidade, sem quaisquer problemas em especial e talvez por isso mesmo com poucos registos de memória, para além de um ou outro, isolados e até desenquadrados eventualmente no tempo.
Destacamento de João Landim – visto da estrada
De Mato Dingal, parece-me, recordo uns tiraços em noite escura, reacção de sentinelas devidamente acordados no seu posto de vigília, zelando pela segurança e bem estar dos companheiros adormecidos que se levantam em sobressalto e desembestam, estou em crer, para os locais de defesa para, sem mais tiros repelir o ataque aventureiro e traiçoeiro perpetrado por “turras” que tiveram a desfaçatez e ousadia de importunar a nossa paz e sossego - que tínhamos merecido, - e que afinal não eram senão… uma vaca, creio.
Ainda em Mato Dingal, creio, recordo uma cerimónia fúnebre a que assisti, não sei se convidado se de moto próprio. Foi algo que nunca tinha presenciado e não mais presenciei. Talvez fosse de Homem Grande, talvez Balanta, não lembro. Ao que me parece, foi enterrado embrulhado em pano (creio branco) tipo múmia, numa espécie de poço feito para o efeito na proximidade da morança (?) onde foi depositado na vertical. Na lateral do poço havia uma reentrância onde fora depositados objectos talvez de uso pessoal (?). Foi o que retive para além da ideia de ter havido alta e prolongada festa e de nos terem ofertado carnes.
Como estas recordações me são um bocado ”embrulhadas”, alguém que se queira pronunciar em esclarecimento, agradeço a atenção.
Também aconteceu lá em Mato Dingal, descobrir que o belíssimo forno não servia só para assar os leitões e outros… bem, o Jorge Fontinha que conte.
Os dias foram passando, os primeiros de Fevereiro vieram e com eles as férias e a ida ao “Puto”, desta vez e infelizmente sem patrocinador.
Da canícula guineense ao frio gelado e chuvoso da belíssima paisagem nortenha e ao calor de família, amores, amizades humana e canídeo, foi uma questão de horas e mais algumas para arrumar para um canto um pedaço de vida passada, embrulhado e resguardado o melhor possível.
Em contraposição agora os dias já de si curtos, passavam no “goss goss”como se a guerra tivesse urgência na minha presença! Os dias voaram.
Por aquela terra nortenha devem ter ficado as minhas pegadas na caça à passarada, acompanhadas pelas do “Pilim”, canídeo perdigueiro pintado de dálmata, que adorava abafar qualquer ave esvoaçante, mesmo doméstica galinha, pato, ou fraca, que se passeasse pelo terreiro, abocanhando-lhes a cabeça sem as ferir e indo-as depositar estendidas e inertes à porta de casa, para arrelia de minha Mãe – para quem essas aves eram uma delícia para o olhar – e gáudio de meu Pai que o afagava, como incentivo à persecução da eliminação de predadores de sementeiras, a par das arrozadas e assados que proporcionava! O meigo animal saltava de alegria.
Depressa chegou dia das saudades na certa e entre outras, talvez da lareira em óptima companhia e ao toque de um verdasco parceiro de um chouriço ou presunto e ao som de chuva possivelmente entremeada de farrapos brancos, esparramando-se nas vidraças quadriculadas de pequeno.
A par foi a hora em que houve que retirar o embrulho do canto em que estava arrumado, colocando de novo esse pedaço de vida resguardado, estendido e bem à vista de modo a que não esquecesse as lições nele apreendidas e que podiam contribuir para o aumentar, até ao despontar de um novo ciclo que sonhava e que julgava estar a breves meses de alcançar. Estava de novo em Augusto Barros.
Por lá passei uma temporada, interrompida por uma estada substitutiva em João Landim, destacamento como Mato Dingal à face da estrada mas na proximidade do Mansoa. De recordação fiquei com a do João, elemento do 1.º GCOMB.
Este homem – sim à altura já todos tínhamos sido forçados a ser homens, feitos e marcados, bem marcados – simples e valente mas não sendo nenhum Einstein, havia ganho e merecido o direito de regressar a casa, esperavamos em Junho, o que ao que lembro não aconteceria se não fizesse creio que a 4.ª classe, talvez mais propriamente “saber ler e escrever”.
Ora o João, ao que me parece recordar, pouco ou nada sabia de escrever ou ler, pelo que fui nomeado seu “professor”. Em tão pouco tempo iria ser um trabalho dificil e paciente para ambos, impossível talvez.
O trabalho começou e diáriamente, com maiores ou menores esmorecimentos foi prosseguindo com o objectivo minimo de conseguir conhecer as letras, juntar algumas e lê-las, escrever o seu nome e pouco mais. O resto havia de se conseguir de qualquer jeito.
As “aulas”, dadas no espaço afundado parece-me à altura das camas e coberto da camarata, foram-se somando a par de pouca evolução académica. A motivação primeira era a “peluda” mas por vezes o combate ao desânimo do “aluno” era ineficaz, transformando-se a aula numa perda de tempo e paciência.
Um dia, estou a descer os três ou quatro degraus para dar mais uma aula e… o João aponta-me a G3 ameaçando que disparava se não me for embora !? Recordo ficar estáctico, receoso e sereno e falar… a tensão é muita… a arma baixa e fico-lhe com ela… chora, desânimo e nervos à flor da pele… destroçado pensa que está tudo perdido… não há queixas nem punições… o João alcança a “peluda”!
Luís Faria
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 25 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8819: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (44): Destacamento de Mato Dingal, umas instalações seguras
5 comentários:
Caro Luís Faria:
Destacamentos que pareciam degredos (alguns).
Estive em dois, fazendo parte da guarnição: O de Cutia, na estrada Mansoa-Mansabá (ali Morés perto)e o de Uaque, a alguns quilómetros de Mansoa e na estrada (avenida) para Bissau.
No meu tempo construiram-se os de Braia na estrada Mansoa-Bissorã e o de Maqué na estrada Bissorã- Olossato. Estes dois para defender a integridade de pontes na estrada.
O efectivo era de uma secção reforçada o que perante um ataque forte do inimigo poderia ser pouco.
Estive no de Uaque 3 semanas e tínhamos um rádio sintonizado com Mansoa pata a eventualidade de pedirmos reforços, mas sabíamos que quando estes chegassem muita coisa já estaria resolvida.
De resto, vida de cigano, com as garrafas, que foram de cerveja, cheias de petróleo e uma mecha a alumiar.
Recebe um abraço
Rui Silva
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Luís,
Assisti a um passamento muito semelhante ao que referiste,também com balantas( estive sempre em zona balanta...) que creio ter sido em Fatim.
De facto o titual é algo semelhante ao do antigo egipto(ao embrulaharem o morto num lençol) e na posição de "sentado" numa saliência da cova vertical,enquanto outra servia para apoio de uma cabaça com alimentos(creio).
Também não recordo pormenores e hoje penalizo-me por não ter dado a importância que devia a um acto daquela importância.
Para quem tem formação em história, poderia e deveria ter feito a análise sob outro prisma,mas a guerra e a sua ambiência afastavam-nos das coisas verdadeiramente importantes enquanto nos empurravam para as "malhas " do copo e da preocupação "comezinha" como saber se amanhã estarei vivo, mau grado os paraísos em que vivíamos nos matos em contraste com as dificuldades acrescidas das falhas de ar condicionado com que os ABÊS eram confrontados nas perigosas missões na capital.Esses,sim,grandes vítimas da guerra como este rapaz de nome Otelo ou o cabo cozinheiro RD baptizado como Vasco,fazedores de revoluções e grandes sofredores das agruras por que passaram tantos e tantos esforçados oficiais QP.
Não conhecia a história do João.Foi em João Landim, onde nunca estive.Quanto á Estória do Forno em Mato Dingal, Prometi por várias vezes conta-la, mas a oportunidade tem passado. Eu sei que é uma provocação(salutar)mas não vou fugir a conta-la. Terá que ser num Post. das "Estórias do Jorge Fontinha".Prometo para breve.Fico contente por voltar a reler-te. Ultimamente tenho vagueado mais pelo Facebook.
Aquele abraço.
Jorge Fontinha
Caro Luís Faria,
Como sabes, na Guiné, andei sempre com a casa às costas e conheci alguns destacamentos. A vida neles valia, como em quase todas as facetas da nossa vivência, pelas coisas boas que faziamos
Bons momentos, muitos, quase sempre toldados pela tristeza da solidão.
Um abraço,
José Câmara
Estive em João Landim em Junho e Julho de 1970.
A minha G3 esteve 2 meses encostada.
Deu para ir algumas vezes ir almoçar a Bissau. Ia num "simpático" autocarro a que chamavam de machimbumbo.
José Nascimento
Cart 2520
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