Caros Nuno Dempster e Luís Graça,
Antes de mais quero felicitar o Nuno pela publicação do seu livro de poemas que, se bem me lembro, em tempos já nos tinha sido anunciado.
Sobre o poema ora apresentado, com odor de sangue e de morte, duas coisas espalmadas em frases muito sentidas me chamaram a atenção e motivam este meu comentário como que a testemunhar os traumas que persistem, também, na memória de quem viveu no teatro de uma guerra violenta e indesejada, à semelhanca dos fumadores passivos.
Uma vez, trouxeram ao aquartelamento de Fajonquito, provavelmente para evacuação, um grupo de civis, trabalhadores de uma casa comercial, que tinham sido feridos no rebentamento de uma mina A/C na estrada de Cambaju.
Entre os feridos, havia um que de forma insistente emitia este mesmo pedido de cortar a respiração de quem ouvia e que ainda hoje parece que estou a ouvi-lo: "Água, água, quero água!!!".
Na altura, não tinha compreendido que, no meio de tanta gente, ninguém se tivesse oferecido a ajudar o desgraçado do homem que, de forma ininterrupta, continuou até a madrugada, a cortar o silêncio da noite, com o seu grito lancinante. De manhã, quando voltámos ao quartel, era um silêncio completo. Das duas uma, ou sucumbira ou tinha sido evacuado.
A segunda observação, menos dramática, tem a ver com o que se parece ser uma forte ligação entre os Comandantes das companhias (os Capitães) e os elementos constituintes destas mesmas companhias que tenho constatado amiúde nos relatos de antigos soldados e mais uma vez se expressa numa frase do poema: "Capitão, meu Capitão, não nos deixes sós".
Numa recente troca de mails, o meu amigo e camarada de Fajonquito, José Cortes , da companhia "Deixós-poisar" [, a CCAÇ 3549 ,] disse-me que um dos acontecimentos mais marcantes da sua companhia durante a comissão tinha sido a perda do seu Comandante, Cap Patrocínio, a quem tinham muita estima. [ De seu nome, José Eduardo Marques Patrocínio].
E algumas semanas antes da chegada desta companhia, a outra que vinham substituir [, CART 2742,] a tinha perdido, num acidente, o seu comandante, Cap Figueiredo[, de seu nome completo, Carlos Borges Figueiredo]. Esta perda foi tão brutal e dolorosa que ainda hoje, ao que parece, não se reencontraram em parte alguma, tendo perdido o fio a meada, aglutinador, ao contrário de outras cujos encontros se tornaram habituais.
Entre nós há um provérbio que diz que os mais velhos são como as lixeiras, sítios/espaços para (des)carregar as mazelas e...o lixo dos outros. Na língua Fula chamam-lhe "Donha" e em crioulo é “Muntudo”, ou seja a capacidade de sofrimento na humildade.
Estas observações me levam a uma tese (questionamento) que lanço à discussão de todos e em especial ao meu irmão de Contuboel, Luís Graça na qualidade de antigo combatente e sociólogo:
Cherno Baldé
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 12 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9028: Blogpoesia (167): K3, de Nuno Dempster: excerto: "Capitão, meu capitão, não nos deixes sós!"
(**) Último poste da série > 14 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8901: Memórias do Chico, menino e moço (29): O sold cond auto Dias ou Manuel Alberto Dias dos Santos, da CCAÇ 3549 (Fajonquito, 1972/74) (Cherno Baldé / José Cortes)
8 comentários:
Caro Luis Graca,
Fiquei assim um pouco surpreendido com este poste, quase instantaneo mas, pese embora o facto de compreender o quao dificil é o trabalho de cuidar de uma horta grande como a nossa, para onde a maioria, como eu, so vai para se aproveitar dos verdes rebentos; parece que, no texto, faz falta um paragrafo que faz ligacao com a chegada da companhia Deixos-poisar de José Cortes. Faz Favor de completar, amigao.
Entre nos ha um proverbio que diz que os mais velhos sao como as lixeiras, sitios/espacos para (des)carregar as mazelas e...o lixo dos outros. Na lingua Fula chamam-lhe "Donha" e em crioulo é Muntudo, ou seja a capacidade de sofrimento na humildade.
Muito Obrigado,
Cherno Baldé
Meu caro amigo e irmão Cherno:
Tens razão, é um grande glutão, este blogue. É preciso alimentá-lo todos os dias, com crise ou sem crise...
Também reparei que o teu texto saiu desformatado. Já o corrigi, com a tua adenda.
Quanto ao facto de eu ter "oportunisticamente" aproveitado um comentário teu para fazer um poste para a tua série, "Memórias do Chico, menino e moço", vê isso apenas como uma homenagem à tua pessoa, ao teu talento, à tua prodigiosa capacidade de observação e memória... Como sabes, tens aqui muitos fãs, a começar por mim, que adoram os teus escritos...
Mantenhas. Luís
Quanto à saudável e estimulante "provocação" que me fazes, a mim, ou melhor ao "sociólogo" Luís Graça, é algo que considero lisonjeiro mas é também um repto muito difícil... Não tenho (nem devo dar) "respostas de bolso", porque nunca estudei esse problema.
A tua questão é muito interessante, mas gostaria que fosse primeiro abordada pelos nossos camaradas que foram "comandantes operacionais", que lideraram companhias de quadrícula ou até de intervenção... Temos aqui, no nosso blogue, vários capitães (mas também alferes) que tiveram responsabilidades de comando operacional, do Vasco da Gama ao Jorge Picado...
A tua hipótese de trabalho é: "A forma (modelo de base) como as companhias (de quadrícula) eram formadas, estruturadas criava laços de união (ver cumplicidade) tão fortes que, por sua vez recriavam, no conjunto do pessoal, uma espécie de confiançaa/dependência exclusiva e quase paternal nos comandantes como única forma de alcançar reais sucessos no teatro de operações ou de, pelo menos, conseguir sair do inevitável sem grandes prejuízos"....
Cherno, vamos ver se a gente consegue responder à tua pertinente, inteligente mas também complexa questão... O que se me oferece dizer, para já, é que cada caso é(era) um caso... Mas em geral, pode-se dizer que no caso em que os comandantes operacionais eram verdadeiros líderes, que se assumiam como tal e eram reconhecidos e aceites como tal, havia hipoteticamente uma transferência de sentimentos, de tipo pai-filho... Para o comandante de companhia era importantíssima a segurança (e a vida) dos seus homens, a par da cabal realização das missões... Tacitamente havia o compromisso de dizer, na hora do embarque para a metrópole: "No regresso, vinham todos" (parafraseando o título de um capitão de então, Vasco Lourenço).
Infelizmente, em muitas das companhias que atuaram no teatro de operações da Guiné, entre 1961 e 1974, os respetivos comandantes não puderam, à chegada, dizer que traziam todos os seus homens, sãos e salvos...
Caro Cherno
Colocas uma questão curiosa, pertinente para quem se interessa por estes assuntos.
Já hoje, em resposta aos três milhões de visitantes, alvitrava ao nosso amigo Luís graça uma análise ao assunto. Agora o tema são as Companhias em quadrícula. Parto logo da definição quadrícula e não sei bem explicar o que é. Nós fomos de intervenção, viemos construir de raiz Mansambo e continuávamos a ser operacionais, indo para destacamentos, ou até reforçar outras Companhias em locais a ficarem mais "quentes".
Poderíamos ser considerados, em Mansambo, de quadrícula?
Mas a questão,complexa, é a ligação ao Comandante. Direi que cada caso é um caso. Tivemos quatro Capitães e dois alferes. Um, eu, só em Bissau e trouxe a Companhia para cá.
De todos, sem querer melindrar ninguém, só considero como Comandante um Capitão. Esteve connosco cerca de um ano. Não quero ir mais além. Só dizer esse,para mim, foi o Comandante da Cart 2339. Não acrescento mais.
Agora pode haver uma análise, feita e devidamente fundamentada por especialista. Quem melhor que o Luís Graça? Mas é muito difícil para ele. Ele esteve lá e é Sociólogo. Gostava de ver este assunto tratado. Bom tema.Complexo.
Ob e um abraço do T.
##Só o não virem todos##
A minha Companhia teve oito mortos e mais de cinquenta feridos anotados e alguns com gravidade.
O meu Grupo teve dois mortos e feridos, alguns.
Pois ainda hoje eles estão comigo pá. Eu escrevo e estou arrepiado. Não vieram todos e quando entreguei a Cart entreguei poucos, muito poucos. nem que faltasse só um eram poucos. Há cumplicidade, um elo forte de união, sentimentos fortes como irmãos. Ponto final.Não esquecem...jamais e...
AB T.
Bem
Vou tentar dar uma de "sabedura".
Companhias de quadricula..eram companhias responsáveis por uma determinada área de terreno e tinham como função principal a segurança das populações aí residentes.
Nos últimos anos da guerra na guiné isso só existia em teoria,todos sabemos porquê.
Em Angola e Moçambique, penso que até ao fim da guerra, estas existiram, nomeadamente em zonas de nula ou quase nula intervenção do IN.
Sei que algumas companhias de quadricula, nomeadamente em Angola, tinham à sua responsabilidade áreas do tamanho da guiné e até superiores.
Sobre a questão posta pelo Cherno..ooh Sr. Prof. Dr. Luís Graça...não seja modesto e explique lá isso à gente
C.Martins
Caros amigos,
Agradeco as intervencoes feitas sobre o assunto que, como deverao imaginar, ainda esta longe de se esgotar, alias, nao ha qualquer pretensao de o esgotar aqui, mas tao somente tentarmos abordar o modelo estrutural da construcao do exercito portugues que combateu em Africa.
Suponho eu, que nao foi por puro acaso se foram estes mesmos comandantes, nao os Coroneis e Generais, que decidiram por termo ao regime e acabar com a guerra.
Assim, a conclusao final a que chego é que eles constituiam a verdadeira espinha dorsal (o nucleo duro) de toda a estrategia operacional da guerra e que sustentava toda a estrutura do exercito, tendo em cima os chefes e por baixo os seus soldados, os executantes.
Com um grande abraco a todos e em especial ao meu amigo, comandante Torcato Mendonca de Mansambo.
Cherno Baldé
Viva o Chico e o restante tabancal!
O Chico tem mostrado de diferentes pontos de vista, o seu interesse e sagacidade, relativamente aos militares portugueses envolvidos na guerra que a todos condicionou.
Vem agora lançar um desafio: o de avaliarmos sob o aspecto da humanidade a relação dos capitães com as companhias em quadricula.
Designou-se de quadricula, a malha de aquartelamentos que deviam garantir a segurança nos territórios em luta. Tornava-se mais ou menos densa, conforme os índices de população, a preservação de meios de comunicação, e a intensidade da luta. Não havia um critério rígido.
Já sobre as relações dos capitães com os seus subordinados, pode dizer-se muita coisa, porque tratando-se de comunidades relativamente autónomas,que podiam extravasar do âmbito de relações de um chefe de um serviço com os seus subordinados, a ligação dos capitães aos comandados pode ou deve ser apreciada de muitos pontos de vista, que resumo a: níveis de equilibrios psiquícos, níveis de segurança e de relações internas, níveis de organização administrativa, níveis de relacionamento com as esferas militares de que dependia.
Dentro de cada nível poderemos considerar outros ítens de avaliação, que no conjunto nos permitirão aferir sobre a real capacidade de intervenção do comandante para o bom desempenho da companhia.
Do meu ponto de vista, e já o tenho comentado, houve grandes falhas na organização piramidal que, pontualmente, estimularam o alheamento dos interesses colectivos, e permitiram o desenvolvimento de acções egoístas e de afastamento ao interesse maior, em última análise, o interesse público, neste caso, uma relação do interesse nacional com o dos militares que serviam nas companhias.
Como nota final: o papel de cada capitão era de muito mais variada e premente responsabilidade, do que o da maioria dos oficiais superiores, que no remanso dos gabinetes lidavam como especialistas, sem as urgências e as necessidades que em cada dia se faziam sentir nas companhias. Deste ponto de vista, acho que os capitães não foram devidamente acompanhados,por isso distinguiram-se positiva, ou negativamente, conforme as suas formações pessoais de carácter, conjugadas com a experiência e capacidade de adaptação ao meio.
Abraços fraternos
JD
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