1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.
Do Ninho D'Águia até África (14)
O herói Curvas
O cenário da área onde se encontram uns tantos militares
que seguiam em normal patrulha e que neste momento
esperam pela ajuda de um helicóptero, para fazer pelo
menos duas evacuações, é este: capim e arbustos rasteiros, algumas árvores, também
rasteiras, algumas até têm picos, um homem natural da
província, que era guia e tradutor, está morto depois de uns
minutos de agonia, no chão, um pouco encolhido, com duas
balas alojadas na zona do peito que quase lhe perfuraram o
corpo de um lado ao outro; um militar, com sangue em ambas as
pernas, chora e lastima-se da sua pouca sorte, e um pouco
retirado, encostado a uma dessas árvores sem picos, está o
Curvas, alto e refilão, que chama filho da puta a toda a gente,
pois vê o seu amigo Trinta e Seis, que tem uns arranhões dos
picos das árvores que o feriram nos braços, porque é baixo, e
tem a mania de andar sempre de camuflado com mangas
arregaçadas.
A história foi contada pelos intervenientes, que ao chegaram
ao dormitório, beberam água e se atiraram para cima das camas,
alguns rompendo mesmo o mosquiteiro, pois vinham exaustos mas
com um ar de pessoas importantes, e tinham alguma razão.
Na noite anterior, o furriel miliciano entra no dormitório
e avisa uns quantos:
- Amanhã, ao romper do dia, vamos sair em patrulha, preparem
as G3 e carregadores, vejam se têm suficientes munições, se não
tiverem, alguém que vá buscar uma caixa e carreguem os carregadores, pois as granadas, logo ao sair serão distribuídas,
vai ser coisa simples, de rotina.
O grupo estava formado à hora e subiram para os Unimogues
que os deixaram a sudoeste, numa zona de mato e capim, quase
seca, de onde deviam começar o patrulhamento em direcção ao
aquartelamento, onde estava previsto regressarem antes de anoitecer. Alguns já tinham feito este tipo de
patrulhamentos e às vezes adiantavam-se, chegando a meio da
tarde, ao aquartelamento, o que levava muitas vezes o Setubal
dizer ao Cifra:
- Porra, quando sou eu, deixam-nos em casa do caral...! Mas
estes deixaram-nos à porta do aquartelamento!
Enfim, voltando à história, andaram por mais de uma hora,
nada de suspeito, não tiveram qualquer contacto com pessoas, o
que leva o Curvas, alto e refilão, a falar na linguagem que
todos lhe conhecem, dizendo:
- Aqui há merda. Não se vêm pessoas. Será que já entramos
noutro País?
E o Trinta e Seis, baixo e forte na estatura, que ia como de
costume a seu lado, logo lhe diz:
- Tão alto e tão burro. Nós estamos perto do aquartelamento,
que fica a dezenas de quilómetros da fronteira.
Mas o Curvas, alto e refilão, que não acatava ordens, não se
convencia, e voltava a dizer:
- Não, isto não é normal. Não fales merdas, tem que haver
aqui pessoas.
Ainda não tinha acabado de pronunciar estas últimas palavras
e já se ouviam tiros de metralhadora, vindos de umas árvores, um
pouco ao longe.
- Abaixem-se, é uma emboscada.
Grita o furriel miliciano que comandava este grupo.
Seguiu-se um tiroteio, não muito longo, pois passado uns
minutos deixou de se ouvir tiros e o resultado foi a morte de
um guia tradutor, que seguia na frente do grupo, e ferimentos
com balas nas pernas de um militar, acima dos joelhos, que
chorava com fortes dores, mesmo depois de estancado o sangue
com ligaduras.
O helicóptero veio, evacuou o ferido e o morto e a título de
curiosidade, pois a ordem era regressar ao aquartelamento
imediatamente, mas o Curvas, alto e refilão que não acatava
ordens, disse, tentando desapertar o cinto:
- Porra, esperem só uns minutos. Estou à rasca! Vou ali
fazer um serviço que ninguém pode fazer por mim e volto já.
E foi revistar a zona de onde tinham vindo os tiros,
deparando com uma pequena aldeia, apenas com duas casas, muito
baixas, que se confundiam com o capim e demais vegetação, com
um arsenal de armas e munições, assim como alguns documentos
importantes.
Um achado valioso em termos militares, muito mal guardado,
pois segundo se soube, deviam ser poucos os guerrilheiros, que
ao darem pela presença dos militares, deviam ter disparado
tiros, mas julgaram que se tratava de um grande grupo de
militares logo se puseram em fuga, como era seu costume.
E o Curvas, alto e refilão, continuava, dizendo:
- Eu sabia! Eu sabia! Vejam o que estes filhos da puta,
aqui tinham escondido. Vou matá-los a todos, todos!
Entraram de novo em contacto com o comando, que enviou
alguns reforços, assim como viaturas e veio o helicóptero de
novo, que recolheu todo aquele arsenal, por diversas vezes, para
uma zona próxima, onde podiam circular as viaturas, que por sua
vez, transportaram todo o arsenal para o aquartelamento, todos
olhavam o Curvas, como um herói e poucos recriminavam a sua
linguagem, alguns, até o imitavam.
Este pequeno arsenal estava a poucos quilómetros do novo
aquartelamento, sinal que os guerrilheiros avançavam e andavam
por perto.
E o Setubal, dizia ao Cifra:
- Isto está a aquecer, qualquer dia escalda.
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 29 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10454: Do Ninho D'Águia até África (13): O Bóia (Tony Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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