1. Continuação da narrativa "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.
Do Ninho D'Águia até África (15)
O Caneta
O carro da “Psico-Social” foi um invento, creio que do
comando da unidade militar a que o Cifra pertencia, pelo
menos era o que constava na altura, mas talvez não,
talvez fosse um invento de Lisboa ou do comando militar
da província, que na altura era comandado por um general
cujo segundo nome, era Schulz, difícil de pronunciar, parecendo
que este nome, não era de origem portuguesa. Alguns até
brincavam com a situação e diziam:
- Este nome, deve de ser de origem alemã, ou de descendentes
muito antigos, daquelas princesas germânicas, que se
intrometeram na família real inglesa, herdou este território
e o governo de Portugal o mandou para aqui, para olhar pelos
bens que os seus antepassados lhe deixaram.
Ao que outros logo respondiam:
- Mas se isso é verdade, não tinha nada que me mandar para
aqui, pois eu não sou seu escravo porque não lhe pertenço, o meu pai
e a minha mãe tinham cédula de nascimento e não carta de
alforria.
Enfim, coisas para rir, que não têm qualquer senso, mas
quem sabe, se lermos com alguma atenção, as diversas versões,
algumas contraditórias, que foram publicadas em todo o mundo,
contando a história do continente Africano, moralmente, talvez
tivessem só um bocadinho, mesmo muito pequenino, de razão, pois
no caso de Portugal, não nos podemos esquecer que era a
Companhia Ultramarina, não se sabia com que capitais, com
armazéns, barcos e cais de embarque, nas principais vilas ou lugares importantes, que negociava e transportava, quase todos
os produtos que saíam da então província da Guiné.
Com todo este blá, blá, blá, o Cifra não está querendo
associar a Companhia Ultramarina, à “Royal African Company”,
nem pensar, longe de nós, semelhante comparação.
Mas continuando com a narrativa, pois já estamos a ir longe
de mais com pormenores, pois o Cifra, está a falar única e
simplesmente pelo que na altura em que lá se encontrava e
todos nós tivemos oportunidade de observar, e que não deve ter
nada a ver com a guerra que todos nós, antigos combatentes,
estivemos envolvidos e que ainda hoje, os que têm o privilégio
de estar vivos, recordam e continuam a sofrer com algumas dessas
malditas recordações. Portanto vamos continuar, esta viatura
era um Unimog, coberto com uma cobertura de pano oleado, tanto
na cabine como na zona de carga, tinha instalado uma aparelhagem
sonora, com quatro altifalantes, colocados no topo da viatura,
tipo funil, tal como se usava nos arraiais das festas e
romarias, nas aldeias e vilas de Portugal.
A missão desta viatura era percorrer algumas aldeias, nas
redondezas do aquartelamento e não só, distribuindo panfletos,
alguns com a fotografia de um militar, com uma arma à tiracolo e
com uma criança africana ao colo, dizendo, num português
acrioulado, que os militares estavam ali para proteger, ajudar,
ensinar, curar feridas, dar medicamentos, enfim, fazer tudo o
que o Criador ainda não tivesse feito.
Algumas vezes, o “Pastilhas”, o tal cabo enfermeiro, que
fazia de doutor, ia na viatura, com uma mala à tiracolo, com uma
cruz vermelha desenhada na frente, onde levava, entre outras
coisas, comprimidos, álcool medicinal, tintura e
ligaduras, e desinfectava com álcool, depois pincelava com
mercurocromo, deitando em seguida um pó branco, envolvendo com
ligaduras, algumas feridas nas pernas e nos pés, que alguns
africanos, já com idade avançada, tinham principalmente dos
joelhos para baixo, dizendo mais ou menos isto:
- Mézinho do sinhô dotô, faz manga di bom
Era só o que o “Pastilhas” sabia dizer em português
acrioulado.
Quase todos sabiam, que após a viatura abandonar o local, as
ligaduras eram removidas, para os mais novos enrolarem e
fazerem uma pequena bola de futebol, sendo as feridas lavadas
com água, às vezes suja, e as moscas e outros insectos iriam
poisar de novo nelas.
A aparelhagem sonora era utilizada por um africano em quem
os militares confiavam, que falava em crioulo, ou outro
dialecto, dizendo o que só ele entendia, pois os militares não percebiam.
Esta viatura, depois de fazer a sua viagem, quase diária,
ficava estacionada, dentro do aquartelamento, perto do local
onde o Cifra dormia, e era aí que o “Caneta”, pegando no
colchão, no travesseiro e no rádio portátil, ia dormir,
quando os ataques de tosse contínua, o apoquentavam, e ele não
queria acordar, ou molestar, com os ruídos da sua tosse, os seus
companheiros.
O Caneta era um cabo escriturário, de estatura média, cara
de criança, pois quase não tinha barba, com uma madeixa de
cabelo preto, caída para a frente, que lhe cobria os olhos e
parte do nariz, que ele arredava para os lados com a mão,
segurando sempre um lápis ou uma caneta, de onde, talvez daí lhe
viesse o nome. Era ele quem fazia as “ordens do dia”. Fazia
cinco cópias, que distribuía por diversas repartições do
aquartelamento e arquivava o original, às vezes fazia mais uma
cópia, quando algum militar era louvado ou qualquer outra coisa
digna de registo e entregava por mão própria a esse militar.
Também escrevia, e lia, os aerogramas e as cartas a alguns
militares menos habilitados para o fazerem, portando sabia
coisas privadas, desses militares, que confiavam nele e gostavam da maneira com ele escrevia, porque começava sempre os seus
escritos com uma letra maiúscula cheia de floreados, pois tinha
alguma habilidade para o desenho, e às vezes fazia o rosto de
alguns, mais populares, como era o caso do Curvas, alto e
refilão, com uma arma na mão.
O Caneta não comia quase nada, quando a comida vinha para a
mesa, ele procurava uns bocaditos de qualquer coisa, que
colocava na boca, mastigava e raras vezes engolia, só gostava
de pão, bebia muita água, por vezes quando lhe apertava a
sede, bebia dos bidons de água, que estavam a arrefecer dos três
furos que havia ao fundo do aquartelamento, de onde saía água
quente, mesmo muito quente, a cheirar a enxofre ou coisa
parecida, por vezes com pó e insectos mortos ao de cima, onde
ele soprava a superfície, mergulhando a sua cara de criança,
incluindo a madeixa de cabelo preto, bebendo por alguns
segundos, levantando a cara e com alguma satisfação dizia:
- É suja, mas é boa.
Mais ou menos aos treze meses de estadia na província,
começou-lhe aquela tosse. Primeiro era só um catarro, depois era
mesmo tosse, ficava aflito quando alguém estava a fumar perto
dele e a tosse quase o sufocava, os olhos ficavam vermelhos,
colocando a mão na garganta em sinal de aflição.
Os colegas sabendo dessa situação, não fumavam junto dele.
Foi ver o “Pastilhas”, o tal cabo enfermeiro, que o analisou,
mandou-lhe abrir a boca, escutou-lhe o peito e logo lhe disse:
- Tens que ir amanhã, no carro dos doentes, a uma consulta ao
hospital da província, estás a ficar muito “infezado”.
Lá foi à consulta, onde o doutor o analisou, lhe mandou tirar
algumas radiografias e o mandou embora de regresso à unidade
militar, e que fosse de novo à consulta na semana seguinte, para
mais detalhes.
Vai à consulta na semana seguinte e muitas outras. Anda com
uns comprimidos e com um frasquito de xarope no bolso, de onde
toma uns goles, sempre que é atacado pela tosse contínua.
A tosse agora, prolonga-se por minutos, fica com cor
vermelha no rosto, os olhos chorosos, e passado uns minutos de
tosse, na sua boca, aparece alguma saliva com uma cor vermelha,
que limpa a um farrapo, restos de uma camisa do
Cifra, pois o Caneta já tinha gasto todos os farrapos da sua
farda.
Na próxima sexta-feira vai de novo ao hospital da capital da
província, no carro dos doentes, vê um novo doutor, pois o
antigo tinha ido para Portugal, faz novas radiografias e
regressa à unidade militar, dizendo no dormitório, para quem o
quisesse ouvir:
- Não comam nem bebam por objectos que eu tenha tocado, pois
estou tuberculoso.
Todos os presentes ficaram tristes e admirados com a
informação, guardando silêncio, excepto o Curvas, alto e
refilão, que num ataque de fúria diz:
- Filhos da puta, são todos uns filhos da puta!
A guerra para o Caneta acabou.
Começou outra guerra, agora não combatia guerrilheiros,
combatia uma doença que naquela época era quase mortal. Recolhe
todos os seus haveres, que coloca no saco do exército e numa
malita, incluindo o seu rádio portátil, onde ouvia entre outras
coisas, o relato de futebol do seu clube em Portugal. Na semana seguinte vem para a metrópole, como então se dizia, para
um sanatório numa montanha, no centro de Portugal.
O Cifra, não mais teve notícias do Caneta, mas nunca o
esqueceu, e quando regressou a Portugal, como a sua aldeia ficava não muito distante dessa montanha, vai um dia de
bicicleta, a essa região de hospitais sanatórios para tentar encontrar o Caneta.
Encontrou um velho, com cara de criança. Magro, muito magro,
o cabelo raro e cinzento, uns olhos iguais, com algum brilho, as
orelhas finas e saídas, trazia vestido uma bata branca que lhe
cobria o corpo até aos pés, estava sentado na borda da cama, com
um lápis na mão direita e um bloco de papel branco na mão
esquerda, tentando desenhar a cara de um militar com uma arma na
mão, cercado de arame farpado, talvez lembrando o seu antigo
aquartelamento, na província de onde foi evacuado, já doente.
O rádio portátil, estava lá.
Assim que viu o Cifra, levanta a cara, larga o bloco de
papel, que caiu no chão, fica com o lápis na mão direita,
levanta-se com algum custo da cama, dá uns passos para o
Cifra, dizendo:
- Só podias ser tu, mais ninguém. Ainda nenhum militar do
nosso comando me veio ver.
E abraça-se ao Cifra, chorando, com alguns soluços,
tentando conter-se. Dava a impressão que lhe custava chorar.
Conversaram, fez algumas perguntas a custo, pois não dizia
duas palavras seguidas, sem abrir a boca e tentar pôr algum ar
dentro de si, tinha mesmo muita dificuldade em falar, o Cifra
respondeu-lhe a tudo o que se lembrava, incluindo o regresso,
mas o Caneta sempre lhe perguntava:
- Mas... morreu mais alguém?
E por fim diz, com bastante dificuldade:
- Olha se não tens receio de comer a comida tocada por um
tuberculoso, aceita estes figos, que a minha mãe que ontem
esteve aqui, me deixou.
O sabor dos figos da mãe do Caneta são a última recordação
que o Cifra, nessa altura o To d’Agar, guarda do colega de
guerra que foi o Caneta, pois passado algum tempo, foi de novo
para o visitar, mas já lá não se encontrava, informaram-no que
mesmo débil, foi embora, queria regressar à sua aldeia, porque queria morrer na sua aldeia, junto da sua família. O
Cifra, nessa altura o Tó d’Agar, nunca mais soube nada do
Caneta, que era oriundo de uma aldeia próximo da Guarda, junto à
fronteira com a Espanha, para onde mandou duas cartas, uma pelo
Natal e outra pela Páscoa, nunca obtendo resposta.
Oxalá esteja
vivo e possa ler este texto, mas, se já não está neste mundo,
esta é a sentida homenagem do amigo e combatente “Cifra”.
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 2 de Outubro de 2012 > Guiné 63/74 - P10467: Do Ninho D'Águia até África (14): O herói "Curvas" (Tony Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Caro Tony
Nem sempre tenho podido acompanhar o nosso Blogue nos últimos tempos, razão pela qual não tenho feito comentários, que acho importante para que quem escreve se aperceba que é lido e em que medida é entendido o que escreve.
Nesse sentido relevo que não me foi possível apreciar outras das tuas histórias/memórias, embora tenha a ideia que, de um modo geral, retratam 'tipos' ou 'figuras' que de certa maneira se cruzaram contigo e fazem parte da tua história de vida.
Neste relato prestas uma homenagem ao "Caneta", do qual se lamenta a doença contraída, sendo provável que as condições de vida vividas na Guiné tivessem potenciado o que poderia estar já fragilizado, tendo em conta o que eram as condições de vida no interior de Portugal, por esses tempos (e que agora vão ressurgindo...).
Quantos "Canetas" ter-se-ão cruzado connosco, não o saberemos, mas este, pelo menos, teve aqui o relevo da sua memória.
Abraço
Hélder S.
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