1. Mais um episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, desta vez versando a época natalícia:
Do Ninho D'Águia até África (35)
Boas Festas, combatentes amigos!
A nossa geração de antigos combatentes da guerra que
Portugal manteve com as suas então Províncias Ultramarinas,
sofreu muito, não há nenhuma excepção, todos, mesmo todos, os
três ramos das forças armadas, desde os militares do quadro
permanente aos milicianos, desde alguns generais aos soldados,
que alguns só com o exame da segunda classe da instrução
primária, estavam ali firmes, a receber ordens que não
compreendiam, e saíam a destruir bases de guerrilheiros, só com
um bocado de pão rijo no bolso para entreter o estômago, todos,
nos melhores anos das suas vidas, principalmente dos milicianos
e soldados foram interrompidos, para irem para um local de onde
não sabiam se sairiam vivos, é verdade, os africanos também
sofreram, lutando e morrendo por um ideal de liberdade, as
enfermeiras paraquedistas, em lugar de mostrarem a sua
juventude em festas, junto de suas famílias, interromperam essa
mesma juventude e foram salvar vidas, com o risco da sua, as
populações civis, interromperam a suas tarefas, e muitas
abandonaram o seu local de sustento, passaram fome e perderam
os seus haveres, todos de uma maneira ou de outra sentiram o
“ferrete” espetado nas costas, ou o “espeto” nas unhas, de
muitas injustiças que viram e sofreram, sentem a dor no coração
de verem o camuflado do companheiro e amigo, sujo de sangue,
com restos de carne humana, muitos não mais se “acomodaram”, sim
é verdade.
As mães, os pais, as noivas, os familiares de uma maneira geral, choraram as
ausências, muitos, principalmente militares do quadro
permanente, andaram com a “casa às costas”, os filhos
frequentaram diferentes escolas, em diferentes locais, tiveram
uma vida de “saltimbancos”, com diferentes climas e costumes,
também é verdade, alguns contraíram doenças, devido a estarem
expostos a diferentes climas, sofreram cicatrizes no corpo de
estilhaços de granadas, balas, ou outros objectos que se usavam
em cenário de guerra, muitos viram ser-lhes amputados membros do
seu corpo, e outros única e simplesmente morreram, em combate, por acidente e por doença, tudo isto é uma pura verdade.
Mas alguns de nós sobrevivemos, e estamos agora aqui vivos,
com alguma, às vezes pouca saúde, mas estamos aqui, temos boca,
falamos, às vezes exaltamo-nos e desabafamos com a pessoa que
estiver mais próxima, nem sempre somos correctos, até dizem que
é “stress de guerra”, pois que seja, mas estamos aqui.
E de quem foi a culpa? De ninguém que esteja vivo, pois já
lá vão tantos anos. Talvez do primeiro marinheiro europeu que
desembarcou na África, com uma espada na mão e com uma cara de
guerreiro, que passado um segundo depois de pisar terra firme,
já estava a praticar um acto de injustiça, que se prolongou por
séculos, e que a nossa geração sofrendo, terminou.
Calhou-nos a nós, e é aí que me quero referir, pois estamos
aqui, e se o nosso pensamento tiver alguma força e poder
retornar umas décadas atrás, veremos que tirando a passagem pela
guerra até vivemos numa época em que o mundo desabrochou, e
mostrou-nos umas certas regalias, pois muitos da nossa geração,
não tinham nunca usufruído de por exemplo, a electricidade nas
casas, principalmente nas aldeias, o fogão a gás ou eléctrico, o
frigorífico, o veículo automóvel, as lojas de roupa, e mercados
de géneros alimentícios, os laboratórios descobriram novos
medicamentos e salvam milhões de pessoas, os aviões com acesso
a quase todo o mundo, o homem pisou a Lua, existem satélites que
vigiam o mundo e sabem a milhares de quilómetros de distância o
que se passa na nossa rua, comboios super rápidos, e ultimamente
o mundo dos computadores, onde se está em todo o mundo em
segundos, e de uma maneira ou de outra sobrevivemos e estamos
aqui.
A guerra voltou ao mundo há mais ou menos uma década, e
não sabemos se os nossos filhos, netos e bisnetos, vão passar ao
lado dela, oxalá que passem, pois eu não desejo ver o meu filho,
o meu neto, nem o meu bisneto, dentro do arame farpado, como eu
estive por dois anos, sempre cheio de medo, e oxalá que
usufrua de todos os comboios rápidos, dos super-aviões e toda a
tecnologia deste mundo moderno.
E só para terminar, vejam os felizardos que somos, reparem
nesta fotografia que ilustra este texto, onde um ser humano,
hoje, neste mundo que será dos nossos filhos, não tem uns
simples sapatos, pois improvisou umas garrafas de qualquer
refrigerante vazias e com uma corda feita de ramos de arbustos
imitando uma sandálias, para proteger os pés.
BOAS FESTAS, companheiros combatentes, do
Cifra amigo!
(Texto, ilustrações e fotos: © Tony Borié (2012). Direitos reservados)
____________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 11 de Dezembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10785: Do Ninho D'Águia até África (34): Aquela garotada (Tony Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
7 comentários:
Caro Tony Borié,
Agradeço e retribuo votos de Boas Festas.
Muita saúde!
Um grande abraço.
Adriano Moreira
Tony
Grande texto que escreveste a desejar-nos Boas Festas.Tenho honra em ser teu conterrâneo.
Amanhã é o aniversário dos nossos Bombeiros,e como membro dos corpos sociais,lá estarei nas cerimónias e na ceia.Vou imprimir,e vou divulgar.
Aqui,da nossa Águeda,vai o meu abraço.
Paulo Santiago
De: Augusto Silva Santos
Para: Tony Borié
Agradeço retribuindo com um grande e forte abraço.
Votos de muita saúde. Fica bem junto daqueles que mais amas.
Obrigado por aquilo que tens escrito / retratado.
Tony um texto que exprime a verdade do que sinto
So um ex combatente pode expressar o que tu as escrito
Obrigado pelo que escreves sempreque vejo um texto teu me alegro porque escreves com o coraçao
Festas felizes para ti e para todos os teus
Um abraça do Antonio Melo
Olá companheiros combatentes.
Obrigado pelos amáveis comentários, e desejos de Boas Festas.
Todos são "cinco estrelas"!.
Paulo, diz por favor "alô", a todo o pessoal dos Bombeiros, esses heróis desconhecidos.
Um abraço para todos, do amigo Tony Borie.
Tony Borié
Mais um belo e sentido texto.
Não haja dúvidas que a imagem vale por mil palavras.Se todos nós e em especial as novas gerações tiverem um pouco de atenção nos pés da tua imagem,talvês considerassem melhor a postura que hoje em dia vemos em muita gente.
Um abraço e BOM NATAL
Henrique Cerqueira
Grande Tony.
Não tenho duvidas de que és um espectáculo na escrita, não com as chamadas palavras caras como se costuma dizer, mas com uma linguagem que todo o mundo entende perfeitamente. És um camarada, que de certeza todos os bloguistas gostam de lêr. Para te babares já chega de elogios, está bem?
Agora nesta quadra com tanto significado para todos nós, daqui deste cantinho de que tanto gostamos, envio-te os desejos de um GRANDE E SANTO NATAL, para ti e toda a familia que de certeza te ama muito.
Um abração deste teu amigo, incluindo a minha mulher, minha companheira á quase 50 anos. Assim pelas simples contas, sabes que eu casei antes de ir para a Guiné.
Até sempre, Roger
Enviar um comentário