quarta-feira, 17 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11851: Notas de leitura (501): "Guineidade e Africanidade", por Leopoldo Amado - uma outra leitura (1) (Francisco Henriques da Silva)

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402/BCAÇ 2851, Mansabá e Olossato, 1968/70; ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999), com data de 15 de Julho de 2013:

Meus caros amigos e ex-camaradas de armas,
O nosso comum amigo Mário Beja Santos - no meu caso amigo de há quase 50 anos! - elaborou uma recensão, em duas partes, ao excelente livro do nosso confrade Leopoldo Amado, "Guineidade e Africanidade" (ver aqui e aqui).
Decidi de algum modo completar essa recensão com uma análise minha, sublinhando outros aspectos não focados pelo Mário, mas que se me afiguram igualmente relevantes. Porém, concentro-me mais na Guiné-Bissau contemporânea e nas imensas dificuldades de construção do país sobre o qual se colocam inúmeros pontos de interrogação e que, seguramente, não se dissiparão tão cedo.
A temática da guerra e da literatura da guerra também me interessa, como é óbvio - ou não tivesse por lá andado por lalas e bolanhas, quer no chão mancanha, quer nas matas do Morés - mas neste momento, entendo que a temática da construção ou se se quiser da própria "criação" do país é um assunto das maiores importância e actualidade e, neste particular, as tarefas são ciclópicas, porque, na prática, falta tudo ou quase tudo para se atingir a meta.
À semelhança do Mário divido também o meu texto em duas partes.

Com os meus cumprimentos cordiais e amigos
Francisco Henriques da Silva
(ex-Alf. Mil. de Infª. C.Caç. 2402,
ex-embaixador de Portugal em Bissau 1997-1999)


"Guineidade e Africanidade"

A minha leitura do livro de estudos, crónicas, ensaios e outros textos de Leopoldo Amado [foto à direita], sob o rótulo abrangente, algo enigmático e ambicioso de “Guineidade e Africanidade”, cobrindo um vastíssimo período histórico, desde a literatura colonial até aos nossos dias, incidiu mais nos aspectos contemporâneos da sociedade bissau-guineense e menos nos factores históricos, designadamente nos relativos à guerra colonial/luta de libertação nacional, uma vez que se trata de um tema amplamente glosado por inúmeros autores e incontornável quando nos referimos ao nascimento conturbado e sangrento da Guiné-Bissau, com repercussões em todo o então espaço colonial português e, antes do mais, no próprio Portugal, como se sabe. Li, evidentemente, e com as maiores atenção e interesse toda a obra, mas dado que o meu colega e amigo, Mário Beja Santos, abordou na sua recensão desta colectânea de escritos de Leopoldo Amado o tema em apreço, limitar-me-ei a fazer apenas duas ou três referências de passagem à temática da chamada “guerra de África”.

O trabalho a que se propõe o autor consiste, no fundo, num exercício de reflexão em que nos apresenta escritos de natureza muito diversa em momentos também muito diferentes da sua vida e da vida do seu país e com estados de espírito igualmente variáveis. Podemos dizer que há de tudo um pouco desde a crónica ao ensaio, passando pelo relato de pendor jornalístico, pela análise política profunda ou pela emissão de opiniões sobre determinados eventos. Neste labor intelectual de indubitável mérito, o autor procura sempre ser rigoroso e objetivo, mas, como dizia, não deixa de exprimir em vários dos seus textos estados de alma e opiniões, digamos, musculadas sobre personalidades e acontecimentos no seu país de origem.

Começo por referir dois aspectos que me suscitaram em particular a minha atenção e sobre os quais vou, desde logo, exprimir juízos críticos (construtivos, obviamente), mas que se me afigura deverem ser devidamente aferidos pelo autor: em primeiro lugar, não há nenhum texto em que se defina com clareza os conceitos de guineidade e africanidade – estas questões poderão ser despiciendas para os bissau-guineenses, para os africanos cultos em geral ou para os estrangeiros (não africanos, entenda-se) interessados e familiarizados com estas matérias, mas não o são, seguramente para o público em geral; em segundo lugar, os textos relativos ao século XXI – alguns são peças do maior interesse – param de uma forma algo abrupta em 2008 e nós sabemos que, mês após mês, para não dizer dia após dia, os acontecimentos se sucedem incessantemente a um ritmo por vezes galopante e cujo fluxo, como se sabe, altera a vida política, económica e social da Guiné-Bissau. Estes são os meus reparos principais. Assim, a meu ver, seria importante, como nota introdutória, uma clara definição conceptual da temática que o autor se propõe tratar e em que termos o vai fazer e, por outro lado, são necessários esclarecimentos sobre a evolução mais recente da Guiné-Bissau, mesmo que assumam a forma de meros relatos jornalísticos, opiniões conjunturais ou incluso de apontamentos pessoais.

Estas questões são tanto mais importantes quanto sabemos que nos dias que correm e mercê do fluir vertiginoso dos acontecimentos o país está em constante e acelerada mutação.

Não vamos entrar no debate académico sobre a tipologia do Estado da Guiné-Bissau que interessa sobretudo a especialistas, mas que tem ampla repercussão na opinião pública, na medida em que as conclusões são via de regra muito polémicas e provocam as mais vivas reacções emotivas, em especial por parte dos visados, ou seja por parte dos cidadãos dos Estados classificados. Nesta matéria, vou ser muito claro, não só concordo parcialmente com o que refere Leopoldo Amado – que considera em vários dos seus textos que, não está em causa somente o processo democrático... mas a própria sobrevivência do país; qualifica a Guiné-Bissau como um Estado refém de si próprio, (p. 61); um Estado falhado (p. 143) e inclusive propõe a assunção pelas Nações Unidas de uma administração transitória do país (o que na prática significa a suspensão pura e simples da soberania – p. 146), admite que “o Estado faliu quase completamente e, mesmo que assim não fosse, ainda não deu mostras de possuir nem ideias e nem vontade política de ir fazendo alguma coisa com recursos próprios” (p. 277) vou porém mais longe numa asserção que espero clara e que, aliás, consta do meu livro recentemente publicado: “A Guiné-Bissau pode formalmente ser considerada um Estado, com bandeira e hino próprios, com fronteiras reconhecidas internacionalmente, com instituições que pretensamente funcionam (ou não) e com assento na ONU, todavia não se me afigura que estejamos perante um Estado, na verdadeira acepção e dignidade intrínseca da palavra. Deparamos, antes, com uma “entidade caótica ingovernável” - na formulação de Oswaldo de Rivero (Vd. "Crónicas dos (des)feitos da Guiné”, p. 521) Compreendo, pois, muito bem os gritos de alma de Leopoldo Amado e como amigo da Guiné-Bissau sinto-me no direito de não só corroborar as opiniões expressas, mas também de exprimir os meus sentimentos sobre a matéria.

São importantes as fortes denúncias do autor às propostas alterações à lei da nacionalidade, no Verão de 1999, uma vez terminada a guerra civil, ou seja a chamada regra dos dois avós guineenses para a assunção de altos cargos do Estado que L. Amado polemiza com abundância de argumentos qualificando-a de racista e tribalista. Com efeito, nos termos desta lei, Amílcar Cabral, se fosse vivo, não poderia de jure candidatar-se à chefia do Estado, atenta a sua ascendência cabo-verdiana, o que é significativo.

Considero interessante a adjectivação e/ou qualificação que o autor faz de certas personalidades, instituições e acontecimentos da vida bissau-guineense: por exemplo, o regime de Nino Vieira é qualificado de “despótico” (p. 30); a “cultura da matchundade” (ou seja, os “matchos” que se afirmam pela razão da força e não pela força da razão – p. 62); o “administrativo – colonial-sanguinário Honório Barreto” (p. 35), um tanto contraditoriamente com outras referências menos abonatórias constantes da obra, “Nino” Vieira acaba por ser definido em termos encomiásticos como militar e como político, sem embargo de se lhe apontar defeitos na gestão do Estado e de ter cometido erros políticos graves (pp. 141 a 143); o PAIGC é definido, quando da ascensão à independência como “partido único de matriz revolucionária anticapitalista e autocrático” (p. 169); o consulado do PRS de Kumba Ialá, na sequência das eleições de 1999, para o autor “reforçou a tendência de definhamento do papel do Estado” (p. 176), o controverso Rafael Barbosa – ex-líder do PAIGC, que terá aderido ao ideário spinolista, ao tempo da guerra - é considerado por Leopoldo Amado um “extraordinário nacionalista” (p.255)

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 15 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11841: Notas de leitura (500): "As Ilhas Afortunadas, um estudo sobre a África em transformação", de Basil Davidson (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Anónimo disse...

Em algumas leituras de reformismo vago,na canícula das Keys floridianas,surgem miragens...."O Estado faliu quase completamente e,mesmo que assim näo fosse,ainda näo deu mostras de possuir nem ideias nem vontade política de ir fazendo alguma coisa com recursos próprios"...A serem adicionadas algumas iniciais (F.M.I.- B.C.E e C.E.)quase se julgaria olhar um outro país.

Anónimo disse...

Francisco,
Vejo pelo teu texto, que não estás de férias nem brincas em serviço.
Interessantes como sempre as tuas opiniões e/ou conclusões.
Fico a aguardar a segunda parte.
Raul Albino

Unknown disse...

Meu caro Raul,
Como vês, nunca brinco em serviço Por aqui estou e sempre operacional, embora os meus temas de interesse sejam um pouco diferentes do que é habitual no blogue. Obrigado pelas tuas palavras, velho amigo da C. Caç 2402 e dos tempos idos de Có, OLossato e Mansabá.
Francisco H. da Silva