sábado, 20 de julho de 2013

Guiné 63/74 - P11857: Bom ou mau tempo na bolanha (20): O Cifra encontra os seus amigos (Tony Borié)




Vigésimo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.


O Cifra e o seu amigo e companheiro Setúbal, cujo verdadeiro nome era Jeremias, por diversas vezes se encontraram. Este companheiro, regressado à Europa, entrou pelo ramo da restauração e teve um certo sucesso.
Continuaram a sua amizade durante o tempo em que que o então Cifra se manteve em Portugal, ainda trocaram cartas nos primeiros anos depois da emigração, mas o tempo tudo leva, e ficaram as recordações de pura amizade, daquele que foi amigo, companheiro e combatente.

Passado um algum tempo após regressar da Guiné, o Cifra, que nessa altura já era de novo o Tó d’Agar, vindo a pé da sua aldeia no vale do Ninho d’Águia até ao Santuário de Fátima, cumprindo uma promessa de sua mãe Joana, por ter chegado são e salvo a Portugal, em determinada localidade onde pernoitou, querendo saber onde podia dormir e comer, dirige-se a uma praça de táxis.
Vendo um táxi, com o condutor lá dentro, a dormir sobre o volante, bate na porta do carro tentando acordar o homem para lhe pedir a informação. Qual foi o seu espanto quando deparou com o Curvas, alto e refilão.

Agora chamava-se senhor Manuel Silva, e era sócio do Trinta e Seis, que por sua vez se chamava senhor António Laranjeira.

Eram proprietários de dois carros de aluguer, naquela praça, que tinham adquirido com a ajuda dos pais do Trinta e Seis, que agora se chamava senhor António Laranjeira, e para o qual, ao empenharem as suas terras, tinham mostrado documentos num banco local, de que tinham posses, e não precisavam de nenhum empréstimo. Só assim o referido banco, depois de lhes hipotecar todos os seus bens, se disponibilizou a financiar a compra dos referidos carros de aluguer, ficando com a posse das terras e dos carros até ao pagamento final, cobrando-lhes todos os juros e despesas de documentação.

Mas continuando, ao ver o Cifra, que agora era o Tó d’Agar, o Curvas, que agora era o senhor Manuel Silva, levanta-se dentro do carro, bate com a cabeça no tejadilho, sai para fora do carro, abana a cabeça duas vezes, fecha e abre os olhos outras tantas vezes, e diz muito alto:
- Filho da puta! Querem ver que tenho que matar alguém!. Ah, és tu, oh Cifra! Devo de estar a sonhar!

E deu-lhe um abraço tão forte, que lhe ia partindo as costelas. Os três, o Curvas que agora era o senhor Manuel Silva, o Trinta e Seis que agora era o o senhor António Laranjeira, e o Cifra que agora era o To d’Agar, passaram quase toda a noite na farra, e já altas horas da manhã, caminhando os três por uma ruela, a caminho da casa do Trinta e Seis que agora era o senhor António Laranjeira, onde o Cifra que agora era o To d’Agar, ia dormir, ouvem alguém gritar de uma janela, no segundo andar:
- São horas de chegar a casa, meu vadio? Sabes que estou grávida, e estou em cuidados contigo?

Era a Lizete, esposa do Curvas, que agora era o senhor Manuel Silva, que o chamava, e era prima do Trinta e Seis que agora era o senhor António Laranjeira, com quem andou de namoro e se casaram, com um banquete a preceito, onde a Lizete, no dia do casamento, toda vaidosa, olhava o marido que levava uma medalha cruz de guerra ao peito, e que finalmente tinha uma família. E o seu marido, o Curvas que agora era o senhor Manuel Silva, responde, com uma voz rouca:
- Só descanso quando os matar a todos e não ficar um único vivo! Lembram-se do Madragoa, do Bóia, do Vouzela, do Madeira, daquele outro que era da Serra da Estrela, e não me recorda o nome, daquele paraquedista, que antes de morrer, pediu para lhe darem um tiro e acabarem com ele, pois não suportava a agonia das dores? Maldita guerra, que não me sai do pensamento!

E o Trinta e Seis que agora era o senhor António Laranjeira, diz numa pausa, em que o amigo pára de chorar:
- E tantos e tantos portugueses e africanos que lutaram uns contra os outros e morreram sem terem nada a ver com esta maldita guerra.

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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11847: Bom ou mau tempo na bolanha (19): O 1.º Cabo Fialho da CCAÇ 616 (Toni Borié)

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