1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Junho de 2013:
Queridos amigos,
Nunca vi devidamente tratada a questão ideológica dos Congressos do Povo como neste trabalho de Manuel Belchior, supostamente um dos assessores que terá carreado argumentos favoráveis ao novo significado destas assembleias Povo/Governo.
Belchior parte da noção que a sociedade tradicional foi maltratada nos países independentes, havia que demonstrar à comunidade guineense que o Governo apoiava o diálogo, tinha o ouvido à escuta para todos os reparos construtivos. Os movimentos nacionalistas eram controlados por elites de formação europeia que desprezavam as hierarquias tradicionais, iriam erradicá-las. Era preciso demonstrar a essas sociedades tradicionais que o Governo da Província não só promovia a sua existência como era o garante da sua respeitabilidade. Ao que parece, foram importantes mas chegaram tarde, a capacidade de armamento do PAIGC e a população apoiante revelaram-se superiores aos olhos da comunidade internacional, que caucionou, sem hesitar, a independência sob a égide do PAIGC.
Um abraço do
Mário
A ideologia dos Congressos do Povo da Guiné
Beja Santos
Manuel Belchior foi um funcionário colonial que se distinguiu pelos seus trabalhos de recolha de contos e narrativas dos povos Mandinga e Fula. Trabalhou ativamente nos conceitos que deviam suportar os Congressos do Povo, gizados por Spínola e mantidos por Bethencourt Rodrigues, no seu breve mandato ainda se realizou o 5.º Congresso. Em 1973, a editora Arcádia deu à estampa a sua obra “Um Novo Caminho: Os Congressos do Povo da Guiné”. É indubitável que Belchior lançou mão de um suporte ideológico para uma das mais temíveis armas que Spínola usou contra o PAIGC, a consulta popular em assembleias primeiro regionais e depois provinciais. Belchior questiona mesmo se o sucesso da experiência não devia ser aferido em Angola e Moçambique. E explica que este seu trabalho de reunião entre o Povo e o Governo é a única via capaz de congregar entusiasmo e determinação dos povos para enfrentar os sacrifícios da guerra. Daí explicar a argumentação ideológica subjacente à às boas práticas e aos ensinamentos havidos com os Congressos do Povo.
Primeiro, a iniciativa do Congresso nasceu numa necessidade real e urgente de permitir uma expressão direta de comunicação entre as diferentes etnias (mediante representação) e o Governo da Província. Concebeu-se o Congresso como um amplo espaço para dar voz aos representantes das sociedades tradicionais. As elites africanas de cultura europeia, por vezes dominadas pela lógica ocidental, rejeitam valores culturais das sociedades tradicionais, tratando-as como primitivas. Acontece que estas sociedades são o esteio da vida agrícola, se não forem respeitadas cederão aos cantos da sereia da guerrilha, jamais confiarão no Governo da Província e participarão sem sinceridade no esforço de guerra. Para ganhar a guerra é fundamental mostrar que se restituiu a dignidade de todas as etnias e de todas as culturas num projeto de sociedade multicultural. E essa política de respeito tem a sua expressão no Congresso do Povo.
Segundo, a essência do Congresso não reside na apresentação de teses escritas mas na capacidade de comunicação dos congressistas face a um conjunto de temas que são postos à discussão, de natureza transversal. Por exemplo, o que pensam todos dos novos reordenamentos. É por isso que existe uma fase regional, onde se faz o levantamento dos problemas tidos como prioritários. Citando o régulo Mamadu Bonco Sanhá, régulo de Badora, apelando a uma grande participação, ele fê-lo nos seguintes termos: “Nós não devemos pedir ao Governo que nos defenda. O que nós devemos pedir são armas porque devemos ser nós a poder defender com sucesso o nosso país, nós conhecemos bolanha por bolanha, árvores por árvore”. Mais adiante, o autor refere que no 4.º Congresso, um congressista de Catió censurava a conduta daqueles que se prestavam a fazer o jogo duplo. Logo no 1.º Congresso um orador Balanta tinha criticado certos ordenamentos cuja localização passara ao arrepio da consulta popular, tinham ficado longe das bolanhas, é nestas que está a fonte da alimentação, havia reordenamentos muito interessantes em termos de condições de vida mas que se saldavam em canseira nas idas e vindas e nos perigos das razias dos guerrilheiros. Esta crítica surgiu no Congresso Regional de Bissorã onde um orador observou que havia aquartelamentos mal implantados por estarem distantes das populações, que se sentiam inseguras. O autor sobreleva exatamente a sinceridade usada e quando se obtém resposta e se soluciona um problema, o amor-próprio dos intervenientes aumenta, sentem utilidade na participação.
Terceiro, a liberdade de expressão é uma regra de ouro. Belchior refere que numa reunião havida em Bafatá, a preceder o 4.º Congresso, um chefe religioso chamado Al Hagi Zacarias Jau declarou que a guerra não acabaria enquanto os brancos não abandonassem o território, o que deu origem a uma vaga de indignação, o régulo de Ganadu exigiu que o homem lhe fosse entregue para ser executado. Replicou-se que os congressistas tinham direito à liberdade de expressão. E na discussão que estalou na assembleia foi referido que os chefes hereditários e os chefes de tabanca tinham sido eliminados na República da Guiné e no Senegal. Belchior chama a atenção que a África tradicional é uma gerontocracia, autoridade aumenta com a idade, impõe dar um sinal público de profundo respeito por tais instituições, só assim se pode validar e conferir dignidade ao Congresso do Povo.
Quarto, os Congressos do Povo surgiram para resolver o grave contencioso entre Mandingas e Fulas, etnias que constituíam o pilar de apoio das sociedades tradicionais aos portugueses. Foi daqui que se evoluiu para outra estrutura, os congressos regionais que contemplavam cinco grupos de etnias, nunca se descurou a base étnica, ponto de partida para a assembleia de todos os povos. E cedo se definiu o objetivo dos congressos: reconhecimento da dignidade dos guineenses e das suas culturas; encorajamento do diálogo; deteção dos erros do governo ou dos seus agentes; deteção dos casos em que as leis portuguesas se revelam manifestamente inaptas para as sociedades tradicionais; conhecimento da existência de conflitos entre etnias; encorajamento da colaboração entre os nativos e a administração da Província. É com base nestas linhas que o autor discreteia sobre a dignidade guineense, a necessidade da sua progressiva integração cultural e do conhecimento das culturas tradicionais. Para Belchior, os congressos são uma escola de diálogo e um exemplo a seguir em todos os escalões mais baixos da administração, como ficou anteriormente dito, confere-se ao Congresso a capacidade de deteção dos erros da administração e a capacidade de deteção de incompatibilidade entre o direito português e as sociedades tradicionais. O exemplo escolhido foi da pensão de sangue dos militares africanos mortos em que a lei consagra que devem ser pagas às viúvas, daí a ampla discussão sobre quem deveria ser o verdadeiro beneficiário da pensão de guerra na medida em que a viúva pode ser entregue a outro membro da família e as injustiças que tal procedimento pode acarretar.
À laia de conclusão, Belchior lembra que a situação da Guiné tem diferenças pronunciadas de Angola ou Moçambique. Isto a propósito de uma minoria de autóctones dispor de uma cultura europeia quem nem sempre está atenta à cultura tradicional. Acontece que os portugueses não têm preconceitos raciais, não fazem distinção entre o africano evoluído e o mais comum dos metropolitanos estão abertos ao diálogo entre as duas sociedades e a dinamizar o seu respeito mútuo. A lógica do Congresso permite ao Governo conhecer os sentimentos da população africana de igual modo que os barómetros permitem avaliar a pressão atmosférica. E termina dizendo que a guerra que nos é imposta em Angola, na Guiné ou em Moçambique não é uma guerra de carácter nacional como foi a da Argélia ou da Indochina. Isto porque o inimigo tem do seu lado uma minoria da população, a maioria deseja a paz. Essa minoria pretende dinamitar as estruturas tradicionais. Ora os chefes dos movimentos de libertação sonham com um grande mercado de consumo para África o que para Belchior é um erro trágico já que a economia de subsistência torna indispensável a conservação das estruturas tradicionais, incompatíveis com esse grande mercado de consumo, o sonho daqueles que pretendem ver instaladas grandes sociedades industriais em África.
Em suma, essas sociedades tradicionais, devidamente respeitadas pelas autoridades portuguesas são o mais forte travão do ímpeto da guerrilha.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 14 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12148: Notas de leitura (525): "Do Estado Novo ao 25 de Abril", por Mário Matos e Lemos (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Mais uma de Beja Santos.
Resultou em pleno em Angola com os governadores de distrito, acções deste género, como este livro fala.
Nunca ouvi falar neste termo Congressos, mas eu não ligava a mínima devido à idade talvez.
O pessoal chamava só, em calão, a «psícula».
Mas havia uns governadores, majores modernos, como Soares Carneiro na Lunda, Branco Ló no Cuando Cubango, que ao meu ouvido ficaram muito célebres pelo total sucesso junto das populações autóctones.
Ao ponto de eu e centenas de colegas, Estradas, outros como Geologia e Minas, Técnicos agrícolas, Administrativos, toda a gente circulava como se circulasse de Lisboa à Praia da Rocha sem portagens.
Se os chefes do PAIGC como Luís Cabral, Vasco Cabral, mesmo o tribal Nino, Manuel Saturnino, Gazela, o Caboverdeano Nanuel dos Santos,etc. tivessem procedido como este Belchior pensava,respeitinho,tal como Spínola ou Soares Carneiro, o povo e seus mais velhos tinham compreendido e aceitariam o Partido, provavelmente.
Assim, apenas os jovens foram atraz do Partido, (apenas)à procura de «bolsas» para estudar no estrangeiro.
Mas isto foi em toda a África em geral, infelizmente.
Talvez o sucesso dessa política descrita nesse livro tenha levado a que nós tugas tenhamos tido alguma ilusão após 1968, mesmo com a perna da cadeira partida.
Fiquei muito interessado na compra do livro. De facto, aqui são esmiuçados diferentes tópicos sobre os "Congressos do Povo", que nós combatentes desconhecíamos em absoluto.
De facto, a informação na Guiné era escassíssima, e nós pouca rádio ouvíamos, e era mais música ou futebol.
Spínola foi um pensador, não só pelo "portugal e o Futuro", mas por esta iniciativa que ia além da contra-guerrilha. Mas não teve capacidade para mobilizar a tropa no necessário apoio, do que resultou a tal qualificação depreciativa de "psicola", alguma coisa como cuidado que levas uma porrada, outra guerra dentro da guerra.
Nunca na minha companhia, muito mal orientada, tivémos algum briefing ou troca de impressões sobre a política daquela maneira desenhada, e imagino que o mesmo se passasse na generalidade.
No entanto, não sei se o efeito persuasor seria duradouro, pois como bem se refere, as cúpulas ocidentalizaram-se, tal como as cúpulas tuteladas pelo governo, e essas desejavam marcar a sua distunção e privilégio, atraiçoando o equilibrio social eminentemente rural.
JD
Enviar um comentário