terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12500: Conto de Natal (17): O Natal em Brunhoso, Mogadouro

1. Mensagem do nosso camarada Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), com data de 22 de Dezembro de 2013:


O Natal em Brunhoso

No dia 24, dia de Consoada, segundo as leis da Santa Madre Igreja, que a terra acatava era dia de jejum e abstinência.

Por ser o tempo da apanha da azeitona, levantávamo-nos bem cedo, logo ao alvorecer e andávamos 3 ou 4 quilómetros até às arribas do Sabor onde se situavam os olivais, plantados em socalcos como as vinhas do Douro.

Dias frios, desagradáveis por vezes, pela humidade, pelo nevoeiro com as oliveiras cobertas de sinceno. Aguentávamos, que remédio, a colheita da azeitona tinha que ser feita fizesse calor ou frio.
Não havia almoço ou merenda, era dia de jejum e abstinência.


Olival no Douro - Foto Olhares, com a devida vénia

Nesse dia o regresso à aldeia era uma hora antes que o habitual. O jantar da consoada era cedo, logo depois do sol-posto. Normalmente constava de batatas cozidas, tronchos de couve e polvo. A sobremesa era pouco variada, rabanadas, bolas fritas de trigo e laranjas se houvesse.
Pela meia-noite, nalguns anos, havia a missa do galo com muitos cânticos de Natal a que todos assistíamos, pois éramos todos muito religiosos e tementes a Deus, ou aos pais, para nos atrevermos a faltar.

Antes disso os rapazes da terra já tinham acendido uma enorme fogueira, a fogueira do galo, no adro da igreja com toros que tinham pedido ou roubado aos lavradores. No fim da missa homens e rapazes íamos aquecermo-nos para junto da fogueira e beber um copo de vinho que os rapazes tinham levado em cântaro ou garrafão e que serviam em 3 ou 4 copos que iam circulando de mão em mão e boca em boca.

Quando mais novo, a minha mãe algum tempo depois de nos deitarmos percorria os quartos dos filhos e filhas pé-ante-pé, disfarçada de Menino Jesus. O menino Jesus era simpático mas pobre, umas meias, um chocolate pequeno eram estas ou algo parecido as prendas que deixava no sapato.

O Pai Natal, esse milionário americano, esse velho de barbas brancas, de aspecto bondoso mas provavelmente acionista da coca-cola ou agente da CIA não se aventurava por estradas de montanha, com curvas, neve ou gelo.

Em minha casa éramos felizes, prendas não conhecíamos melhores, o polvo e as rabanadas eram únicos, autênticos manjares de consoada, a festa na igreja ou no adro era grande, cabia nela a aldeia inteira.
Mesmo em criança nunca fui muito religioso, aqueles terços obrigatórios dos longos serões de inverno de Avés-Marias e Santas-Marias tão repetitivos, devem ter contribuído para isso. Porém da missa de Natal até gostava com cânticos próprios e mais alegres e com a própria cerimónia do beijo ao Deus Menino.


Felgar - Fogueira do Galo

Foto do espólio fotográfico do Dr. Santos Júnior em Farrapos de Memória, com a devida vénia

Gostava também muito da fogueira do galo, c'os diabos camaradas eu sou um filho daquela terra.

Um grande abraço a todos e um Bom Ano
Francisco Baptista
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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12496: Conto de Natal (16): Oh nosso Cabo, o que é o Natal? (Juvenal Amado)

5 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro camarada Francisco Baptista

Fui capaz de encontrar muitos pontos comuns aos tempos dos 'velhos Natais' passados na minha aldeia, não tão para o norte como a tua, aqui mais próximo do Cartaxo.

Nessa altura já não era época de 'apanha da azeitona', coisa ocorrida nos primeiros dias de Novembro, mas o 'madeiro' a arder lá no Largo, por onde "cabia a aldeia inteira", pretexto para o convívio, a conversa e a petisqueira, é muito semelhante.

Sinto que está a fazer falta ir de novo buscar a força às nossas raízes. É necessário para enfrentar os desafios que se nos apresentam.

"Festas Felizes"
Hélder S.

Anónimo disse...

Francisco Batista

Daqui fala um outro alto-duriense que deixou aquelas terras aos 12 anos.
Estou aqui para confirmar o POLVO na consoada daquelas terras. Podia haver bacalhau, mas polvo haveria sempre. Quando digo isto, as pessoas manifestam estranheza. E era polvo comprado seco, colocado de molho em água, de véspera. Como o bacalhau. Polvo seco como o que no Algarve comem (mascam) depois de assado na brasa.
Boa achega ao Pai Natal!
Achei engraçada a referência ao "sinceno". É que na minha terra (Foz Côa) chamamos-lhe "sincelo". Consultando o Dicionário Porto Editora, constato que ambas as palavras designam o mesmo: " Pedaços de gelo suspensos das árvores e dos beirais dos telhados...". Só que não são "pedaços de gelo", são gotas e gotas congeladas, como que paradas no tempo e no espaço, à espera de caírem. Quem conheça o Alto Douro (agora Douro Superior...) só na Primavera e Verão, não imagina que isso acontece por aquelas terras.
Venham mais recordações!
Abraço
Alberto (Abrunhosa) Branquinho

manuel carvalho disse...

Caro Francisco

Bela descrição do que era o Natal por aquelas terras e de certa maneira ainda é.Já há uns anos que não passo lá o Natal mas passei alguns e sei como era.Quanto ao sinceno julgo que sabes que não devemos varejar as oliveiras com ele porque ficam quase secas durante uns anos. Apesar de avisado fiz isso um ano e bem me arrependi.As oliveiras nunca mais foram as mesmas.As tuas narrativas são muito bem feitas sabes do que falas . Um abraço.

Manuel Carvalho

Anónimo disse...

Caro Francisco Baptista:
Certamente, o que suscita mais atenção, por parte da maioria dos combatentes, são os assuntos relativos à nossa "passagem" por terras da Guiné. Há, mesmo assim, fora deste contexto, descrições tão ricas, tão fieis, tão telúricas e diria mesmo quase queirosianas, sobre quadros da vida rural, com esta qualidade, que nos prendem a atenção e nos ensinam muito sobre o trabalho heroico de um povo que, ao longo de gerações, sem apoios de ninguém, lutou pela sobrevivência. Eu, apesar de ter já experimentado, durante uma semana, o trabalho de varejador de azeitona, em Souto da Velha, não conhecia a expressão "sinceno", mas tendo consultado o dicionário, fiquei a saber que não é coisa boa e que tive a sorte de o não apanhar, por lá.
Um abração
Carvalho de Mampatá

Luís Graça disse...

Sim, é bom que sejamos nós, "baby boomers", filhos da explosão demográfica do pós-guerra, criados ainda nas dificuldades dos anos 50 e 60, mas que ainda nos sentámos à mesa da sociedade de consumo(a "soiedade da abundância",. como então se dizia), é bom que sejamos nós a fazer a ponte entre gerações e recordar a festa do Natal pobrezinho da nossa infância... Pobrezinho em termos materiais, mas rico em termos imateriais: havia rituais, gastronomia, valores e emoções que hoje estamos a revalorizar e a retomar...