Mosteiro de Alcobaça
Foto: © José Eduardo Rodrigues Oliveira (JERO)
1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 4 de Janeiro de 2014:
ASSINATURAS DO TEMPO
Quando moramos num sítio vamos absorvendo pormenores que há primeira vista pouco importam, até parece que não nos afectam . Mas ficam gravados na nossa cabeça e mais tarde, adquirem importância para lá do que alguma vez pensamos.
Naquele tempo, que eu caminhava entre casa e a fábrica ou o café para as habituais tertúlias, sabia de cor cada pedaço de calçada arrancada, cada pedaço de lancil marcado por uma jante, cada mancha de musgo ou mesmo os estranhos desenhos, que ficavam quando caía algum pedaço de reboco de uma parede ou mesmo um muro. Era assim a vida lenta, previsível, como tempo de quem sabe que mais não podia fazer para além disso enquanto esperávamos pela tropa.
Como eu me lembro do conformismo desse tempo. Uns iam para Angola, outros para Moçambique e por fim outros para a Guiné. Também alguns felizardos iam para S. Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Macau ou Timor mas eram poucos e mesmo por isso invejados. Não havia volta a dar, ir para a tropa e esperar que não nos calhasse os piores destinos, era o pão nosso de cada dia.
Fazia parte de um ritual da nossa passagem à idade adulta. Engraçado que conhecia os nomes de quase toda a gente que morava em Alcobaça, hoje não conheço os nomes dos moradores do prédio onde moro. A taverna do Dinis e dos homens a comer laranja com sal para fazer peito ao copo de 3, do quartel dos bombeiros em frente, o Manuel Lourenço de quem eram suficientemente conhecidas as suas três grandes paixões: os bombeiros, o Benfica e o ciclismo.
A mercearia do sr. Emidinho com o seu sobrinho quase tão velho como ele. Os dois pequeninos magrinhos e carecas, eram figuras únicas que eu sempre vi com uns casaco de sarja cinzenta, cumprimentavam cerimoniosamente e humildemente as senhoras que ia à sua mercearia, quer pagassem logo, ou mandassem assentar no rol.
O David Pinto e os seus bem conhecidos sonhos de democracia mais a sua famosa ginja, que chegou aos dias de hoje como supremo néctar, que se espera ansiosamente por provar todos os anos.
Café Paris nome pomposo que acabou por ser popularmente conhecido pelo café do Isidro, que fazia uns bitoques que nós devorávamos já fora de horas. Recordo os jogos de xadrez, o ar preocupado dele com algumas conversas e com alguma literatura, que mudava de mãos nas horas tardias.
As fiadas de lojas que vendiam louça típica e histórica de Alcobaça.
Emprestavam um colorido sem par com as louças artisticamente pintadas a forrar as paredes exteriores das mesmas, espalhadas pelas calçadas em prateleiras e cestos cheios até cima de miniaturas pintadas por aprendizes da Vestal, Olaria, Elias & Paiva (Pouca Sorte) e Raul da Bernarda.
Naquele tempo só uma fábrica tinha alcunha de “pouca sorte”, hoje todas acabaram por ter a mesma sorte.
Os correios o largo dos Mosteiro de Sta Maria, que todos chamavam e chamam rossio com os seus jardins com alguma relva arrancada pelos transeuntes, que atalhavam caminho pisando-a sem dó nem piedade. Vi a Rainha de Inglaterra aí a descer as escadarias do Mosteiro, corsos carnavalescos com batalhas de flores com sacos de serradura, farinha e água à mistura, mas era carnaval e nada parecia mal.
A saudosa esplanada do Bau e os bolos da pastelaria Toval, não é que os de hoje não sejam porventura bem melhores, mas na altura o acesso a essas guloseimas era muito mais restrito e por isso ficaram na memória.
Local de namoricos e troca de caricias.
Também manifestações avassaladoras de pesar, quando a dor atingiu algumas famílias de Alcobaça na perca de vários dos seus filhos, em que toda vila se uniu na dor.
Local de discretas celebrações de datas como o 1 de Maio.
Podia fazer o caminho quase de olhos fechados tal foram as vezes e os anos a percorrê-lo. As figuras castiças como o Tibúrcio, o Valadares engraxador, o Augusto da Vestiaria eram parte da identidade da vila com quem nos cruzávamos a todo o instante. Os internados do asilo que pediam sempre um cigarrito ou à falta disso apanhavam as beatas, que eram sempre abundantes pelo chão. Desfaziam-nas para dentro de uma caixa de lata e a seguir com mortalhas, confecionavam novos cigarros.
Reciclavam, palavra que está hoje em voga.
Entre eles, dois ou três juntavam-se a nós, havendo mesmo um, que tinha um ar existencialista e toda a vida ter frequentado a universidade, compunha o estilo com ar de poeta, um livro de baixo do braço, fosse para onde fosse.
Mais tarde falou-se que afinal não sabia ler, o que não teve importância nenhuma, tal era a forma com que enriquecia as tardes e serões com a sua experiência de vida. Morreu quando eu estava na Guiné.
Morreu só, uma vez que as pessoas que cativáramos fora da instituição viviam as suas vidas a outras velocidades. A sua doença e morte acabaram por passar quase despercebidas. A maioria de nós só soube quando regressou das comissões.
Na Guiné foram muitas dessas recordações que me fizeram companhia juntamente com o calor e os mosquitos. Muitas vezes no posto de sentinela revia mentalmente o percurso e vinham-me à cabeça todos os pormenores que antes julgava não prestar atenção. A distância aguçava as saudades ao mínimo pormenor.
Quando regressei, voltei a fazer vezes sem conta os mesmos caminhos. A maioria das coisas estavam lá ainda, pouco se tinha alterado, eu é que via tudo com outro olhar.
Vinte e sete meses longe tinham-me transformado e era com avidez que bebia as imagens, que funcionavam como assinaturas do tempo.
Juvenal Amado
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Nota do editor
Último poste da série de 19 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12170: Estórias do Juvenal Amado (49): Afinal era bala real - Lembrando João Caramba
14 comentários:
Olá Juvenal.
Nós, só sentimos, só apreciamos as coisas simples que nos rodeiam, quando deixamos de as ver, nessa altura verificamos que não são assim tão simples, são de um valor muito grande, talvez do tamanho do mundo!.
A tua "aguarela", perdoa chamar-lhe assim, pode ter alguma comparação, com o que se passa quase todos os dias nos "sonhos", nos pensamentos de um emigrante!.
Os teus pensamentos, nesse momento da tua vida, talvez fossem os de milhares de companheiros, onde eu me incluía, lembrando a minha aldeia.
Quando acabei de ler, fiquei com vontade de ler mais.
Obrigado e um forte abraço,
Tony Borie.
Caro Juvenal:
Belíssima descrição de Alcobaça, "colorida" de afetos : as figuras populares, a atividade industrial e comercial, as guloseimas que nunca mais foram iguais, etc... etc. Para quem não conhecer Alcobaça, fica uma ideia bem próxima da realidade, do que foi e do que é.
Um abração.
Carvalho de Mampatá.
Caro Juvenal
Bonita reflexão sobre os 'jogos de sombras luz' que no fundo são as nossas recordações.
Gostei bastante do relato, acabei por verificar que encontro muitos pontos de contacto com o que e como descreves. Também sou capaz de 'ver', ainda hoje, vários pequenos pormenores da minha vivência, principalmente em Vila Franca.
Logo no parágrafo inicial dizes o essencial, pois é bem verdade que "Quando moramos num sítio vamos absorvendo pormenores que há primeira vista pouco importam, até parece que não nos afectam . Mas ficam gravados na nossa cabeça e mais tarde, adquirem importância para lá do que alguma vez pensamos." É isso mesmo!
Por agora é só o que quero dizer.
Abraço
Hélder S.
PS
Excelente, a foto do JERO.
Juvenal:
Há hoje uma onda de revivalismo, de redescoberta, de interesse pelo quotidiano, as figuras, os monumentos e as ruas das nossas terras, de há 100/120 anos para cá, quando a fotografia se começou a vulgarizar... È louvável e meritório o esforço que alguns, muitas vezes, carolas têm vindo a fazer para salvar a "iconografia" da sua terra natal ou de adoção: há coisas (edifícios, equipamentos...) que irremedivalmente se perderam, devido à ignorância, estupidez, arrogância, novorriquismo das elites locais (pu do poder central)... E que só pela fotografia chegam hoje ao conhecimento dos mais novos...
Por exemplo, na minha terra, Lourinhã, o camartelo camarário deitou abaixo a escola Conde Ferreira onde eu e a minha geração estudou (rapazes, de um lado; raparigas, do outroo)... Ou o coreto da banda filarmónica, peça central das nossas brincadeiras na hora do recreio...
Mas esse "revivalismo" peça por falta de "contextualização", historiográfica, sociológica... Há o risco de ficarmos pelo "anedótico", o "fait-divers", a "figura típica", ol "pitoresco"...
Tudo isto para te dizer que gostei de rever a Alcobaça do teu tempo de menino e moço... E que aprecio a sensilidade poética e o saber socioantropológico com que falas do quotidaino e das pessoas de carne osso da tua terra, no tempo em que já tinhas sido "apanhado na rede como um cão" (, como eu digo num dos meus poemas)...
Tu, eu e todos nós... Eu tinha 14 anos, em 1961, quando os meus vizinhos, mais velhos foram chamados para ir para "Angola, rapidamente e em força"... Como outros já tinham ido para a Índia Portuguesa... Não sei porquê, mas tive uma estranha premonição: aquela guerra, a do Ultramar, ainda deveria sobrar, como sobrou, para mim (, para ti, para todos nós)...
Faz o favor de meter este texto no teu próximo livro!
Amigo Juvenal!
Como eu adorei o teu texto. Senti-me a passear pela tua Alcobaça de antigamente nesse convivio calmo nos lugares que referes com todos os teus amigos e conhecidos tão simples e naturais como o sol como a chuva, enfim como a vida.
Senti-me regressar ao aconchego da minha aldeia, na minha juventude em que os homens jogavam à relha ou ao ferro por um copo de vinho.
As figuras mais interessantes quer sejam familiares ou não, da minha história pessoal são quase todos desse tempo e desse lugar.
Um grande abraço
Francisco Baptista
Olá Juvenal! ... é só para te dar os parabéns por este belo texto.
Um abraço amigo do
Manuel Joaquim
Caríssimo Juvenal
As suas memórias descritivas, referindo lugares, pessoas, e acontecimentos que vivênciou, são, como não podia deixar de ser, uma retrospectiva que acompanho, lendo com prazer e com saudade, como se o tempo, que também era o meu tempo, fosse efectivamente, o meu tempo, e toda essa gente, que refere e não conheci, me tivessem acompanhado ao longo do meu caminho, porque essa é a forma que me encanta na escrita!
Descrever lugares e gentes, é tornar imortais as pessoas e os lugares, é projectar, imortalizar, os que conhecemos, e de uma forma ou de outra, influenciaram, ou ao contrário, nos fizeram saber escolher o nosso caminho, baseado nos exemplos observados.
Lógico, que é assim que aprendemos, que crescemos e damos testemunho, mas, é muito gratificante, quando sobre o papel, ou neste formato virtual, lemos de um amigo, a confirmação do impacto que teve e tem, sobre si, a contemporaneidade com a geração anterior, com os lugares do passado, que são presente, e fazem na nossa memória um arquivo, (mau grado, de curta duração), mas que se pode tornar infinitamente longo, se conseguir-mos passar às gerações vindouras,o gosto pela análise do "quem somos"? e "porque o somos"?
Obrigada Juvenal, pelo seu carisma, pela sua sensibilidade, pelo respeito e ternura com que nos transporta pelas ruas e lâncis das suas memórias!
Dizer-lhe que me sensibilizou, era desnecessário, mas digo-o! Foi mesmo com muita emoção, que li, palavra após palavra, todo o texto referido.
Continue fazendo da sua vida um relato colorido dos dias e das gentes, que eu, enquanto me forem dadas capacidades de poder segui-lo, quer virtualmente, ou em papel, serei uma leitora atenta e obrigada.
Aceite um abraço fraterno e sincero da amiga de sempre:
Felismina mealha
Caro Juvenal,
Foi como camarada que te conheci: Galomaro village, Guiné country. Mas, de forma mais incisiva, conheço-te agora, com mais pormenor e significado, pela tua escrita, seja na prosa ou na veia poética.
Não esqueço ainda a faceta de artista na tela e o lado humano nas relações que sabes cultivar com esmero.
Não percas a mão nem o coração.
Boa nota Juvenal!
Agradeço-te o levantamento de afectos, de retratos e movimentos que alguma vez preencheram as nossas vidas, ainda com a naturalidade virgem da bondade jovem. Depois, bem depois, e decreves muito bem, vinha a emigração forçada, os anseios, a esperança de regressar à origem. Mas então, como bem lembra o Tony conujuntamente contigo, por vezes já nos sentíamos estranhos, desidentificados com todos os sinais e vivências anteriores. Era o desencontro com a malta, os que entratanto tinham arrancado para África, os que trabalhavam noutras localidades, os que mudaram de vida, e às vezes mantinham-se ali à mão.
Para mim também constituíu uma ruptura, e decidi ir à procura de novos mundos.
Um grande abraço
JD
Boa nota Juvenal!
Agradeço-te o levantamento de afectos, de retratos e movimentos que alguma vez preencheram as nossas vidas, ainda com a naturalidade virgem da bondade jovem. Depois, bem depois, e decreves muito bem, vinha a emigração forçada, os anseios, a esperança de regressar à origem. Mas então, como bem lembra o Tony conujuntamente contigo, por vezes já nos sentíamos estranhos, desidentificados com todos os sinais e vivências anteriores. Era o desencontro com a malta, os que entratanto tinham arrancado para África, os que trabalhavam noutras localidades, os que mudaram de vida, e às vezes mantinham-se ali à mão.
Para mim também constituíu uma ruptura, e decidi ir à procura de novos mundos.
Um grande abraço
JD
Caro amigo-camarada Juvenal!GOSTEI!
Continua.
Abraço
Ze de Lamego
Muito bom,amigo-camarada.Abraço
Arlindo Jorge (BCAV3864-Pirada/CCAV3463-Maréuè). Cheguei da Guiné no Natal de 73 e em 74 fui dar aulas para a Secundária onde estive dois anos. Lembro-me do Augusto da Vestiaria que aparecia na esplanada do Bau com o seu fato preto, camisa de renda e rosa vermelha ao peito. Na Escola, à noite dei aulas Desenho Aplicado às meninas da Olaria (com uma decoração mais moderna e da qual tenho algumas peças). Fui morar para a Rua Eng. Duarte Pacheco. ( ainda existia a Pensão Mosteiro, com a simpática D. Maria). Os Corações Unidos, onde fiquei 15 dias quando cheguei a Alcobaça, continua muito bem.! De vez em quando passo, porque quem passa ... Na sala de professores havia um piano e uma Professora (Helena Rocha, creio) sentava-se e cantava o tal hino a Alcobaça de entre outras canções, a pedido. A minha última tentativa de matar saudades foi tentar voltar à Adega Alegre, em busca dumas famosas farófias ... mas era domingo estava fechada.
Ainda recordo os Professores Rogério Raimundo ligado ao Centro Cénico da Cela, Fatal que depois veio a casar com a Professora Ilda Velez ... a quem eu na altura dava boleia para Coimbra ... cinco numa Dyane. Uma hora e um quarto entre as bombas da Mobil frente ao Bau e as bombas da Mobil em Santa Clara ... 100Km certinhos...
Entretanto Alcobaça foi-se modificando, estendendo ... Ainda hoje disse a dois alunos meus, um de Vale de Cambra e outro de Vila Nova de Famalicão, que Alcobaça é a minha segunda cidade, a seguir a Coimbra .... boa fruta, legumes, peixe fresco, vinho, ... praia perto... um sonho!
Caro Arlindo
É um prazer encontrar quem tenha essas recordações da nossa terra.
Como sabes muitos dos marcos a nossa juventude desapareceram há muito, O Augusto da Vestiaria morreu como morreram outros que eram figuras de reverência.
Os engraxadores ao pé da Farmácia Campeão, o Valadares, o Arpinela etc.
Não tenho ideia de te ter conhecido mas é possível que nos tenhamos cruzado uma vez que lá deste aulas a partir de Abril de 74.
Um abraço e faço votos que nos encontremos um dia destes.
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