Terceiro episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.
O senhor Spencer era uma robusta pessoa, que eu não
sabia se era de origem cabo-verdiana ou guinéu, era para
todos “o Senhor Spencer”, era comerciante em Mansoa,
em especial de madeiras, também lá havia na altura outro
comerciante que se dedicava a madeiras, mas de origem
europeia e, creio que vivia em Bissau.
Mas o “senhor Spencer” é o progonista da nossa história.
Nas muitas vezes em que nos juntávamos na célebre
“sueca”, aquele jogo de cartas muito popular entre os
militares, em que quem perdia pagava, neste caso era
“licor”, como ele dizia, não cerveja ou vinho, que o bebam
vocês lá no quartel, dizia ele, coçando o estômago, já um
pouco saliente.
Era proprietário de uma camioneta que só existia a
cabine e o esqueleto atrás, com umas traves presas por
cordas, dizia que era o suficiente para ir buscar os “toros
de madeira” ao interior das matas, para transportar ao fim
do mês para Bissau, onde o seu destino era o continente.
Às vezes, alguns brincavam com ele, perguntando-lhe,
quando regressava com a camioneta, com dois ou três
“toros” em cima, deitando muito fumo:
- Quantos mataste para te carregarem a camioneta, com
toda essa madeira roubada?
Ele ficava furioso, mas controlava-se, sorrindo.
Um dia disse-me que em Bissau o
informaram que havia um novo produto, já muito famoso,
que iria substituir a lenha para cozinhar, era o “Gazcidla”,
ele próprio iria ser o agente em Mansoa, assim como iria facilitar
qualquer pessoa que quisesse viajar para fora da Guiné,
pois também iria representar uma agência de viagens da
capital, pedindo-me que lhe fizesse um cartaz
publicitário para colocar junto à sede do clube “Os
Balantas”, num largo em cimento que na altura lá existia,
em frente, ou ao lado, do clube onde nós os militares
jogávamos andebol e basquetebol.
Ajustámos que ele dava a tinta e outros materiais, eu só
fazia os “rabiscos”, pagando ele 65 pesos. Como combinado,
rabisquei conforme me foi possível, colocou-se o cartaz e,
no primeiro dia da época das chuvas, os “rabiscos”
desapareceram, pois a tinta era de muito fraca qualidade.
Conclusão, tive que rabiscar tudo outra vez, dizendo-me
ele para fazer realçar a garrafa de “Gazcidla” e o avião.
Tony Borie, Fevereiro de 2015
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Nota do editor
Último poste da série de 1 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14209: Libertando-me (Tony Borié) (2): 10 de Junho e a visita do Primeiro Ministro de Portugal à Comunidade Portuguesa de Newark
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Tony, caro Tony
Não me foi possível comentar 'em tempo oportuno', ou seja, em cima da sua saída, os teus últimos trabalhos.
Mas ainda o vou fazer, nem que seja para te enviar directamente.
Quanto a este trabalho o que se me oferece dizer é que o que revelas mostra bem como a 'comissão' foi, como agora se diz, 'uma janela de oportunidade' para muito boa gente, onde puderam dar largas à imaginação e, talvez, encontrar novas perspectivas quanto ao futuro.
Tiveste aí a tua primeira incursão nas artes gráficas?
No mundo da publicidade?
Percebeste que tinhas outras possibilidades para desenvolveres os teus trabalhos e competências sem ser voltar à serra d'Arga?
Pois é.Sempre a aprender.
Abraço
H+elder S.
Olá Hélder.
Obrigado pelo teu comentário.
Eu, nos intervalos das minhas tarefas, andava por ali, visitava a tabanca, onde perdia mais tempo, que ficava do lado norte do aquartelamento, arranjava a máquina de escrever, para usar sempre a mesma fita, dum senhor, muito educado, que bebia muita cerveja, que fazia a manutenção do gerador da vila, o frigorífico a petróleo do Libanês e do clube os Balantas, que era uma coisa simples, pois a torcida "apagava-se" e, claro corria fama, para o senhor Spencer me pedir os "rabiscos".
De facto, tinha algum jeito, para que, quando regressei a Portugal, não querer mais a agricultura como profissão!.
Um abraço Hélder.
Tony Borie.
Tony, fazes-me recuar 45 anos, quando vejo os nomes de José Spencer, José Diébe, Tito, Emilia Sá, todos ilustres habitantes de Mansoa, para não falar numas Libanesas que tinham uma casa em frente á sede dos Balantas.
Mais uma vez gostei de lêr.
Um abraço
César Dias
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