Oitavo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.
Gostávamos muito de Aveiro, talvez fosse normal, pois
creio que era a única cidade que pensávamos que
conhecíamos, ou talvez fosse daquela camioneta verde e
amarela, com assentos forrados a cabedal, que esperava
pelo comboio na estação e, nos levava à praia da Costa
Nova.
O comboio, “o nosso comboio”, num dia de verão levou-nos
de novo à cidade de Aveiro, nessa altura usámos um
bilhete pago pelo Governo de Portugal, íamos “para a
tropa”, mais propriamente para o “Quartel de Sá”, que por
acaso até ficava perto da estação ferroviária. Aqui
começámos aquele treino fatigante, tanto física como
mentalmente, os instrutores, alguns até eram pessoas
preparadas, que utilizavam linguagem e maneiras, que
seguíamos, fazendo com que aqueles exercícios e aulas
de mentalização, fossem executadas com alguma
facilidade.
Para nós, tudo ia sendo normal até aos exercícios finais,
tirando claro, aquele instrutor que tinha vindo de uma
comissão de serviço em Angola, que nos exemplificava na
aula de combate como se devia matar, para uma morte
lenta, rápida ou assim-assim, em que nos colocava uma
faca no pescoço, com os olhos “vidrados de raiva” e dizia:
“tens que matar aqueles filhos da puta assim”, passando
adiante, veio “uma semana de campo”, onde nos faltou as
instalações do “Quartel de Sá”, que embora as nossas
casernas fossem umas antigas “cavalariças”, pelo menos
tinham paredes e telhado.
Fomos para as “Gafanhas”, que era para o lado sul da
cidade de Aveiro, havia aquelas senhoras que com um
açafate à cabeça, andavam por ali vendendo “sandes e
pirolitos” aos militares, nós no segundo ou terceiro dia,
com algum apetite, queríamos comprar duas ou três
sandes, para comer e guardar e, a senhora disse-nos,
com uma expressão que demonstrava alguma
repreensão: “leva só o que precisas neste momento,
deixa alguma coisa para os outros”.
Aquela senhora parecia-nos uma pessoa simples, “do
povo” e, que grande lição nos estava a dar. Anos mais
tarde, lemos algures “The 10 Indian Commandments”,
onde um desses mandamentos diz precisamente o que
essa simples pessoa nos disse, que é, mais ou menos,
“Retire da Terra, o que é necessário para viver, e nada
mais”.
Havia muitas “Gafanhas”, era a da “Encarnação”, da “Ria”,
do “Juncal”, de “Mira”, de “Áquem” ou de “Além”, mas nós
éramos um dos militares em treino, que estão naquela
fotografia onde também lá estavam muitos, que não nos
lembra o nome, mas eram irmãos e companheiros, onde
alguns já devem de estar algures, talvez no “Além”.
Já agora, a título de curiosidade, aqui vai a tradução,
também mais ou menos, dos “The 10 Indian
Commandments”, que nós tentamos seguir, mas não é
fácil, neste mundo, além de outras coisas, muito
controverso.
1 - A Terra é a nossa Mãe, cuide dela.
2 - Honrar todas as nossas relações.
3 - Abra o seu coração e alma para o Grande Espírito.
4 - Toda a vida é sagrada, trate todos os seres com
respeito.
5 - Retire da Terra o que é necessário para viver, e nada
mais.
6 - Faça o que precisa ser feito para o bem de todos.
7 - Dê constantes graças ao Grande Espírito para cada
dia.
8 - Fale a verdade, mas apenas para o bem nos outros.
9 - Siga os ritmos da natureza.
10 - Aproveite a viagem da vida, mas não deixe pistas.
Tony Borie, Março de 2015
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Nota do editor
Último poste da série de 8 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14334: Libertando-me (Tony Borié) (7): Temos que lá voltar
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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4 comentários:
Camarada Tony Borié
Ai as Gafanhas, "ex-vizinho" de Águeda, que inventaste mais algumas...mas gostei, apesar de não as identificares, aquelas onde se efectuavam os exercícios de campo e a carreira de tiro, como pertencendo a ÍLHAVO.
Na montagem fotográfica lá está o Quartel (de Sá), a velha máquina a vapor do "Vouguinha", que no verão lá ia arranjando "trabalho" para os Bombeiros e as Estações de CF.
Abraços e goza o tempo aí por Miami.
O Ilhavense
JPicado
Olá Jorge.
Obrigado pelo teu amável comentário.
Tens toda a razão, o meu pensamento é muito distante, atraiçoa-me, não me lembro de onde eram as Gafanhas e se pertenciam ao concelho de Aveiro ou ao concelho de Ílhavo, lembro-me sim de dizerem, "vamos à Barra de Aveiro", o que na verdade era de Ílhavo!.
Estes pormenores fazem muita diferença, para quem aí nasceu, viveu e tem muito carinho pela sua terra.
Lembro-me das pessoas de Ílhavo irem no verão à romaria do São Geraldo à aldeia de Bolfiar, que era à saída de Águeda, a caminho da montanha do Caramulo, as raparigas de Ílhavo, eram todas muito bonitas e modernas, e claro, nós olháva-mos para elas com vontade de as namorar a todas!.
Um abraço Jorge, oxalá tenhas saúde e vontade de viver por muitos anos.
Tony Borie.
Caro Tony,
Desta vez o que me impressionou não foi a loucura do instrutor, que em muitos outros locais de instrução resumia-se à frase pateta de que "tudo o que mexe é para abater". Não!Do que eu gostei nesta tua mensagem foi dos 10 mandamentos que expressam a sabedoria dos índios.
Na voragem do mundo ocidental, atentamos frequentemente contra nós próprios, mas, sobretudo, contra os nossos filhos, netos e descendência posterior, em manifestação de soberba e incivilidade contra o progresso genuíno. A vaidade de ter, ter, ter, e depois abandonar em lixeiras, o progresso calculista de uma nova aplicação atrás de outra, o marketing que nos inunda a casa e as mentes, são aspectos que urge repensar para atingirmos a moderação do consumo e a preservação dos recursos.
Também em África contactei com muitas pessoas, que vivendo com o mínimo, entre uma leira de subsistência e o céu estrelado, apenas com uma cobertura de colmo para protecção da humidade, viviam em harmoniosa felicidade e convívio de mais que duas gerações. Ainda não descobriram a indústria das casas de repouso, às vezes armazéns para velhos. Em resumo, somos uma sociedade que não pensa, despersonalizada e formatada para gerar lucros às grandes empresas.
Com um abraço
JD
Olha Tony com o meu comentário, apenas pretendi fazer um pouco de humor e de maneira alguma houve outra intenção.
Compreendo perfeitamente que ao fim destes anos todos, afastado deste "jardim à beira-mar plantado" que mais parece um "cemitério", e depois do que passaste nessa "terra de sonho", "amassando a farinha com o suor do teu rosto", para seres Alguém, não poderias recordar com precisão esses pormenores.
Eu sou filho de Um, entre milhares deles, que aos 27 anos, já com uma filha e depois de ter estado em França na 1.ª Guerra, também demandou essas paragens, venceu a "Grande Depressão", comendo "o pão que o diabo amassou", para sustentar toda a Família que constituiu. Mas pelo menos vinha cá de 3,5 em 3,5 anos para fazer aumentar a prole (de que eu fui o 5.º e último) e assim ia mantendo o contacto com estas terras.
Quanto ás romarias de São Geraldo, tens toda a razão, pois continuam a ser uma tradição bem actual das gentes de Ílhavo. Nunca falham.
O Zé Dinis foi mais selectivo no seu comentário e enveredou, como é seu timbre, por conceitos mais sérios e profundos.
Quanto aos anos, já não desejo muitos, pois estão quase cá 78. Apenas desejava que não tivesse de sofrer muito, enquanto por cá me arrasto.
Abraços
JPicado
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