1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Julho de 2015:
Queridos amigos,
Já estou em Salerno e o comboio deixa-me em pouco tempo perto de grandes belezas.
Sempre sonhei ir a Pompeia, e ficou comprovado que é um lugar espantoso. Pesto também me atraía muito, nós estudávamos no 3.º ano de História a expansão dos gregos em colónias que se estendiam até à Itália, a Magna Grécia, ora Pesto oferece-nos o que há de melhor em templos dóricos.
De seguida, vou viajar até Nápoles, outro sonho, tem a ver com romances de aventuras, capa e espada, talvez livros de história, sempre me seduziram aqueles filmes a mostrar ruas antigas, com enormes palácios. Vamos ver o que o destino me reserva, a temperatura não desce dos 40º, é uma contradição entre tanta curiosidade e o desejo de ficar à sombra, a saborear um refresco.
A aventura continua, este calor é menos palustre que o da Guiné...
Um abraço do
Mário
Un viaggio nel sud Italia (2)
Beja Santos
As primeiras viagens na Campânia: Pesto e Pompeia
Ocorreu-me que a melhor homenagem que podia prestar a Curzio Malaparte era trazer a sua obra-prima, para esta viagem, "Kaputt" é o livro mais horrivelmente cruel e divertido que até hoje se escreveu sobre todas as guerras. O nome deste grande escritor é ainda motivo turístico em Capri a Villa Malaparte, que ele mandou construir, é mostrada pela sua peculiar modernidade. E há descrições de Nápoles em "Kaputt" que raiam o sublime. Estamos no início da obra, Malaparte foi visitar Axel Munthe em Capri, em plena guerra, falam da Alemanha e do seu povo doente. Vejamos o diálogo entre Malaparte e Axel Munthe:
“- Eles têm medo. Têm medo de tudo e de todos. Matam e destroem por medo. Não é que receiem a morte; nenhum alemão teme a morte. Também não têm medo do sofrimento. Têm medo de tudo aquilo que vive para além deles – e também de tudo aquilo que é diferente deles. O mal que sofrem é misterioso. O medo deles acordou sempre em mim uma profunda piedade.
- Então são ferozes? Então é verdade que eles massacram as pessoas sem nenhuma piedade? – interrompeu-me Axel Munthe.
- Sim, é verdade – respondi -,matam pessoas desarmadas, enforcam os judeus nas árvores das praças das vilas e aldeias, queimam-nos vivos nas suas casas como ratos, fuzilam os camponeses e os operários nos pátios dos kolkhozes e das fábricas. Viu-os rir, comer e dormir à sombra de cadáveres que se balançam nos ramos das árvores”.
Tinha saudades de Malaparte, trouxe-o até à Campânia, é uma estadia curta, bem queria percorrer o Golfo de Nápoles, visitar Caserta, Herculano, Avelino, passar um dia a olhar o Vesúvio. Há que disciplinar o tempo, o pior é o corpo espapaçado pela temperatura a roçar os 40º. Apanha-se um comboio ronceiro em Salerno, tem-se como companhia uma venezuelana que é guia turística e que refere a delicada situação económica da Itália, com um desemprego juvenil maciço e a chegada permanente dos norte-africanos, 40 minutos depois chega-se a Pesto ou Paestum, uma das jóias mais preciosas da arqueologia.
A lenda atribui a fundação de Pesto aos Argonautas, mas na realidade foram os habitantes de Síbaris que a fundaram no século VII antes de Cristo com o nome de Poseidonia, converteu-se num dos centros mais florescentes do Mediterrânio. Não dá para ver, mas Pesto conserva as melhores muralhas do mundo antigo, nenhuma ruína arqueológica lhe rivaliza, são quase cinco quilómetros. É a maior cidade da Grécia Antiga na costa do mar Tirreno. Faz parte da Magna Grécia.
A particularidade deste parque arqueológico são três templos dóricos do século V antes de Cristo, estão entre os melhores conservados da Antiguidade: o Templo de Neptuno, a Basílica e o Templo de Ceres. Os dois primeiros estavam destinados ao culto da deusa Hera. Atrelei-me a um grupo que tem um guia francês, é minucioso a descrever as riquezas destes templos dóricos, as conquistas posteriores até chegarem os romanos que enriqueceram a cidade de grandes edifícios, há belos vestígios do Fórum, das termas, do anfiteatro e do Templo da Paz. Depois veio o declínio, a vegetação tomou conta de tudo, estes templos dóricos ficaram a olhar para o mar. O fenómeno do Grand Tour, as viagens culturais de escritores, poetas, artistas e aristocratas das mais diversas nacionalidades, fenómeno que começou na primeira metade do século XVIII, levou à redescoberta deste prodigioso lugar. Olha-se e não é preciso pensar duas vezes que a arquitetura neoclássica europeia e norte-americana foi influenciada por este estilo dórico.
As obras mais espetaculares, em termos arqueológicos, de Pesto, Herculano e Pompeia, devem ser vistas em museus arqueológicos em Nápoles e mesmo Roma. Mas há um museu em Pesto, com uma rica exposição de documentos arqueológicos que vão da Pré-História à Idade Média. Esta peça é célebre no mundo inteiro, o desenho é encantador e, pasme-se, faz parte da arte funerária.
Regresso a Salerno, o meu habitáculo é na Via dei Mercanti, em pleno bairro medieval. Enquanto caminho ofegante pelo calor que não dá tréguas, depara-se-me esta cena, uma pizzaria suportada por uma coluna, sabe-se lá de que edifício romano veio. Encontra-se esta reciclagem por toda a Itália, preparem-se para mais surpresas. Salerno tem muito que ver: o castelo de Arechi, lá no alto, faz jus ao seu período de esplendor, creio que ainda não referi que por este ponto da Campânia andaram lombardos, normandos e depois os espanhóis. Não há nenhum médico que não saiba que a instituição médica mais antiga do Ocidente foi a Escola Médica Salernitana, um farol da ciência até ao século XVI. O passeio marítimo, com o nome de Trieste, é muito aprazível com as suas palmeiras e a sua vista espetacular do Golfo de Salerno.
E há um detalhe que não resisto a contar, os Apeninos, nunca vi uma cordilheira tão constante em toda esta Itália, é a barreira natural para onde se espraiam belezas naturais, vestígios arqueológicos, terras fecundas. Não sei se foi Goethe, Shelley ou Piranese que chamou a esta paisagem “Campania felix”, talvez induzido pela história milenária, os magníficos cenários naturais, e os Apeninos a resguardar Pompeia e Herculano e a Costa Amalfitana… Amanhã cedo, convicto que a temperatura vai baixar, tomo novo comboio até Pompeia, a cidade romana soterrada pela erupção do Vesúvio em 79 depois de Cristo, camadas de cinza com 6/7 metros de espessura mataram-lhe a vida.
Pompeia é seguramente o lugar arqueológico mais famoso do mundo. Percorrem-se termas, templos e altares evocativos, o Fórum, os mercados, os edifícios da administração, um sem-número de casas particulares, e sentimos que houve ali uma tragédia, e aquela gente morreu asfixiada, aliás veremos no museu os corpos agonizantes. Pompeia reserva-nos uma viagem única no tempo, aquela catástrofe permitiu congelar em boas condições a vida na Antiguidade, a vida pública e privada, temos ali objetos intactos, é tudo impressionante, ainda por cima cercados por uma gloriosa paisagem natural.
Desengane-se o leitor, não o vou atormentar com a planta arqueológica de Pompeia, não haverá descrição do Fórum, do Templo de Apolo ou de Vespasiano, as termas, as ruas, e até o picante lupanar, um edifício de dois andares com pinturas que retratavam os serviços oferecidos aos clientes, por ali cirandei a ouvir os risinhos de meninas asiáticas e nórdicas; e há as casas das grandes famílias, com mosaicos, frescos, pinturas em cores vivas sobre um fundo vermelho, os templos, os ginásios, os anfiteatros e teatros. Selecionei alguns detalhes, considero-os chamarizes, esta cidade é tão completa sobre o que era a civilização romana, com os seus deuses, os seus hábitos alimentares, os seus hortos, triclínios, estabelecimentos, arcos forrados de mármore e quem se preparar previamente mais usufruirá, não creio que fora de Pompeia seja possível encontrar tantas provas da existência da vida, tantas manifestações do génio romano na arquitetura e nos engenhos da vida doméstica.
Regresso amochado pelo calor, nunca bebi tanta água na minha existência, agora vou preparar o dia seguinte, Nápoles, tenho muita pena que seja só uma manhã e uma tarde, paciência, há mais marés que marinheiros, se tiver sorte e um dia ameno, pelo menos as ruas de Nápoles terão de conversar comigo.
(Continua)
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Nota do editor
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Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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