Outras memórias da minha guerra
19 - História de paz com (muita) guerra atrás
O Cláudio Reis é um dos meus maiores amigos no mundo dos ex-combatentes. Vive aqui perto de Crestuma - que visita frequentemente - e alinha em quase todos os convívios e patuscadas dessa malta grisalha. Falamos de tudo, com destaque para a nossa vivência da guerra da Guiné, onde ambos estivemos a actuar em larga escala. Eu, porque pertenci a uma Companhia de Intervenção e ele, porque fazia parte dos Pára-quedistas. Chegámos a participar em simultâneo numa OP na zona do Cantanhez.
Posteriormente, enquanto eu me dedicava ao desporto da Canoagem, ele seguia a sua paixão pela prática do Pára-quedismo. Sentados na esplanada do Bar do Clube Náutico de Crestuma, após uma breve olhada sobre algumas fotos de destaque, colocadas no hall de entrada da sede, falávamos desta vez da Canoagem, das Astúrias e do Descenso del Sella, a prova mais popular do Mundo.
https://www.google.pt/search?q=descenso+del+sella&espv=2&biw=1366&bih=667&tbm=isch&tbo=u&source=univ&sa=X&ved=0CB4QsARqFQoTCML84riQl8cCFQyb2wodoWAAzA
Realiza-se desde 1930, entre Arriondas e Ribadesella. O seu fundador foi um tal D. Dionísio de la Huerta, um ricaço catalão que costumava vir passar férias naquela estância balnear. Primeiramente, desceu o rio só com os seus amigos, mas logo provocou o entusiasmo dos aventureiros da canoagem. Devido à guerra civil, o evento foi interrompido de 1936 a 1942. Desde então, teve uma evolução acentuada, assumindo-se como “La Fiesta de las Piráguas”.
Gente de todo o Mundo vem ocupar aquelas duas pequenas cidades, durante vários dias, por forma a participar, dentro ou fora d’água, no primeiro Sábado do mês de Agosto. São mais mil canoas e “kayaks” a cobrir as águas do Rio Sella.
Os portugueses, cuja Federação só viria a ser fundada em 10.3.1979, já participavam desde 1951, através de uma representação da Escola de Remo da Mocidade Portuguesa do Porto.
Desde 1981, ano da sua fundação, que o Clube Náutico de Crestuma participa nesta prova. Acresce dizer que, até o ano de 2015, a competição só uma vez foi ganha por portugueses. Foi no ano de 1995, pelo K2 de dois Crestumenses: José Silva e João Gomes. Recentemente acompanhei estes campeões a mostrarem aos filhos a lápide de bronze com os seus nomes, assente no Hall da Fama, junto à ponte da meta, em Arriondas.
José Silva e João Gomes, ontem e hoje
Enquanto pôde, quem fez de Juiz Árbitro, durante cerca de 60 anos, foi D. Jacinto Regueira Alonso. Figura de grande prestígio internacional, no mundo da Canoagem, foi o promotor dos primeiros árbitros portugueses, vindo a ser homenageado em 1987 como Sócio Honorário da Federação Portuguesa de Canoagem. Foi também Juiz Árbitro da Maratona Internacional de Crestuma.
D. Jacinto Regueira foi meu amigo, meu professor e meu conselheiro. Era conhecido também como D. Jacinto Incorruptível e D. Jacinto Regulamentos. Foi das pessoas mais fascinantes que conheci. Era um senhor. Educado e formal, mas também divertido.
Todavia, ele não gostava de falar sobre a sua vida privada. Um dia, em minha casa, na véspera de mais uma Maratona de Crestuma, após o jantar, ficámos os dois a conversar muito para além do habitual. Dizia ele:
- Ferreira, não fazes a mais pequena ideia do que é uma guerra civil. Por muito que se queira contar, não há hipóteses de transmitir os horrores que se praticam entre amigos, vizinhos e a própria família. A guerra civil é uma coisa tão absurda e tão estúpida que até me custa falar nela.
Lembrei-lhe que eu estivera na guerra e em combate mas que não havia sentido esse tipo de horrores.
Guernica, painel pintado por Pablo Picasso em 1937
- Quando iniciou a guerra civil de Espanha eu era Inspector Escolar no País Basco. Fui perseguido e preso por ser da Galiza, terra do Juan Franco. Estive para ser executado mais de uma vez.
Um dia, num grupo de prisioneiros, foram chamando um de cada vez, para ser executado. Ouviam-se os disparos e logo vinham buscar outro, para nova execução. Não sei o que se terá passado que fiquei sozinho à espera que me viessem buscar.
Emocionado, continuou:
- O meu irmão que era oficial da Marinha, veio atacar Oviedo onde vivia a nossa mãe com a sua mulher e filho menino. O seu Comandante insistiu na orientação do fogo dos canhões para atingir também esse bairro. Felizmente, a casa não sofreu nada.
Após alguns momentos de silêncio, ele voltou-se para mim:
- E queres saber o que me aconteceu no fim da guerra? Regressei logo para a Galiza, para Ferrol, minha terra natal. Mas, como vinha da zona controlada pelos antifranquistas, fui de novo perseguido e preso por desconfiança e retaliação. Passei tempos difíceis e muito magoado, à espera que me devolvessem o trabalho de ensino escolar.
- Impressionante! - Dizia o Cláudio que se mostrava atento a tanta narrativa.
De seguida abordámos o conhecimento daquela região lindíssima de Galiza, Astúrias e Cantábria. E, aqui, foi a vez do Cláudio falar da sua “guerra” mais recente.
- Tenho uma história incrível, passada lá nas Astúrias, mais concretamente em Gijon.
Como sabes, depois que saí da guerra continuei no pára-quedismo. Aliás, segui de instrutor durante os anos que pratiquei, enquanto solteiro.
Todos os anos se disputava ali o Torneo de Pára-quedismo Principe de Asturias. Foi lá que conheci uma rapariga excepcional. A Sarita (Sara Martinez) era uma “rapaza” morenaça, jeitosa e a mais competente naquela actividade de saltos de pára-quedas. Todos os homens lhe deitavam o olho. No entanto, a presença de um português, “expert” nessa matéria do “bem saltar”, criou uma empatia reciproca, de efeitos quase imediatos. Foram dias de grande convívio e de relações intensas.
Terminado o Torneo, senti que o relacionamento com a Sarita não podia ficar assim. No convívio do encerramento, estreitámos mais a relação e, envolvidos naquele ambiente de festa e de despedida, acabámos por prolongar essa relação no hotel. A Sarita mostrou algum incómodo, sempre que acentuava a sua excitação erótica. Pensei que isso era natural, uma vez que compreendia a sua suposta condição de mulher virgem. Confortava-a, acalmava-a e transmitia-lhe o carinho e a compreensão que ela precisava. Na cama, ela pediu-me que reduzisse a luz e meteu-se debaixo do lençol. Nos preliminares ela evitou que lhe acariciasse a vagina e facilitou que a penetrasse pelo lado de trás. Como não consegui, forcei a mudança de posição e coloquei-me por cima, na posição mais natural e mais propícia ao desfloramento. Quando apontei o pénis à vagina, senti algo maior que um clítoris. Perdi logo a erecção e ela começou a chorar. O “incidente” provocado pela presença daquele clítoris, transformado em pequena “pollahermafrodita”, proporcionou-nos um prolongado diálogo com lamentos mas também com muita compreensão e muita franqueza, seguidos de acentuado reconforto. Calmamente, com amor, carícias e muito carinho, assumimos a situação com normalidade.
E foi assim que após termos vivido todos esses momentos de entrega, o pleno prazer se consumou. Já passava das onze horas da manhã. A satisfação foi evidente e recíproca. Descansámos e dormimos, prolongando os prazeres de um sonho inesquecível.
Passados mais de 15 anos, levei as minhas mulher e filha a passear por aquela zona. Convenci-as a ir ver também o Torneo que estava a decorrer. Deixei a mulher e a filha no bar e aproximei-me do local de concentração e enquanto me embrenhava na azáfama dos participantes, ouvi chamar:
- Cláudio, Cláudio, como estás?
Voltei-me naquela direcção e, surpreso, enfrento a Sarita que se aproximou. Sarita, estás boa? Que andas por aqui a fazer?
- Tenho vindo cá todos os anos e sempre pensei encontrar-te.
Fez uma pausa, olhou-me nos olhos, acusando alguma emoção e continuou:
- Precisava de te ver e de te dar uma palavrita. Estou bem e feliz. Casei, tenho dois filhos maravilhosos e um homem encantador. Todavia, sinto uma enorme gratidão pelo que fizeste por mim. Foste tu que alteraste a minha vida e me abriste a porta para a felicidade. E isso eu nunca poderia esquecer. Deixa-me abraçar-te.
Silva da CART 1689
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Nota do editor
Último poste da série de 1 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14958: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (19): Samuel e os amores desfasados
1 comentário:
Caro Zé Silva
Há uns anos, talvez 4 ou 5, não me lembro bem, estive nessa zona das Astúrias e Cantábria.
Fiz base em Llanés e visitei bastantes locais, pela costa (não fui aos Picos da Europa que ficaram para 'outra vez'...) desde Gijon a Santander.
Naturalmente estive em Ribadesella e em San Vicente de la Barquera, dois locais que me agradaram bastante, bem assim como Comillas onde apreciei o trabalho de Gaudí.
Fui no início de Julho e, à cautela, levei os apetrechos próprios para o banho, a toalha e os calções de banho, mas levei também o preconceito do "síndroma da água de Espinho", ou seja, a água devia estar fria de enregelar.
Mas aí entra Ribadesella. Vi pessoas na água, para além de surfistas, e resolvi experimentar.
Surpresa! Água espectacular! Provavelmente alguma bolsa de água da corrente do Golfo que foi empurrada para o Golfo da Biscaia mas, fosse lá o que fosse, a minha recordação é essa.
Quanto às guerras.... são todas uma merda! E as ditas civis, são as piores, porque fazem saltar o que de pior o ser humano contém em si de animalesco, de mesquinho, de invejas e vinganças.
Hoje em dia isso foi um bocado desviado para o desporto (leia-se futebol) e também por aí os augúrios, a avaliar por acontecimentos recentes cá na 'nossa praça', não são nada animadores.
Quanto ao resto.... os portugueses são sempre solidários, sempre generosos, sempre capazes de desbravar caminhos que outros podem depois explorar melhor....
Abraço,
Hélder S.
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