Trigésimo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66, enviado ao nosso blogue em mensagem do dia 11 de Agosto de 2015.
Queria fugir à tropa, uns dias antes de ir “às sortes”
Esta é a história de um companheiro de trabalho, lá no norte, em New Jersey, que connosco conviveu por mais de vinte anos.
Tudo começou numa aldeia de fronteira, na região de Bragança, onde tal como todos os rapazes da sua idade, querendo fugir ao serviço militar e, deste modo não irem parar à guerra em África, que na altura começara, pois a soberania Portuguesa, estava a ser ameaçada pelos diversos grupos organizados e armados que lutavam pela independência daquelas que o então governo de Portugal, considerava as suas Colónias do Ultramar.
O Joaquim, foge “a salto” para França. Não era difícil, pois o seu pai, além de rachador, amanhar umas pequenas leiras de terra, donde tirava parte do sustento para a família, também era “passador”, aliás, naquela zona, todos eram “passadores”, o Joaquim incluído, portanto ajudavam a cruzar a fronteira, eram contrabandistas, pois também ajudavam a circular produtos entre a fronteira, havia por ali muitos contactos, conheciam-se uns aos outros, tanto do lado de cá, como
do lado de lá da fronteira, para eles tudo era seu território.
Algumas noites em que trabalhávamos juntos, ele contava que fora desta cultura, só lhes restava a agricultura ou trabalhar na montanha, cortando árvores. Pela manhã saíam para a montanha, algumas vezes guiando pessoas para atravessarem a fronteira, onde normalmente a ementa, pela manhã, antes de saírem de casa, era, meia panela de ferro com três pernas, com vinho trazido da adega, que era uma gruta feita debaixo das grandes pedras, que existiam junto do curral dos animais, vinho esse trazido num balde, que noutras alturas também servia para levar a comida a esses animais, a que juntavam broa, sobretudo côdeas, algumas já com bolor, que eram retirados da referida panela um pouco antes do braseiro a fazer ferver, que com um pouco açúcar, também de contrabando, que retiravam com uma colher feita de madeira dum grande cartucho de papel cinzento, comiam aquilo tudo e iam caminhar algumas léguas, descalços, antes de começarem a fazer funcionar o serrote e o machado.
Uns dias antes de ir “às sortes”, como ele nos dizia, o Joaquim larga o serrote e o machado e vem incluído num grupo de alguns candidatos a emigrantes, que ele mesmo ajudou a cruzar a fronteira, atravessando o norte de Espanha a caminho de França, pois para lá dos Pirinéus havia muito trabalho e alguma liberdade. Ele era um jovem desenrascado, sabia fugir a alguns polícias de
fronteira, pois outros colaboravam, como sabia de lavoura, logo ficou a trabalhar numa quinta, na região do sul da França. Rapaz novo, depressa aprendeu a falar francês, não com técnica mas para se desenrascar, conheceu uma rapariga de nacionalidade francesa, a Michele, por quem se apaixona, ela corresponde a essa paixão, namoram e casam.
O Joaquim, depois de estar a algum tempo em França, o seu pensamento era constante, aqueles filmes que via dos “cowboys”, na altura até pensava que o actor John Wayne era o presidente dos Estados Unidos, fizeram-lhe criar no seu pensamento novos horizontes e, em alguns momentos, dizia para a Michele, “do lado de lá do Atlântico é que gostava de ir contigo, tenho um fascínio pela América, não sei bem porquê”. A Michele, aprovando tudo o que vinha da boca do Joaquim, concorda, e dizia-lhe: “se esse é o teu desejo, por que não o realizamos”.
Sem darem por nada estavam em Paris, em contacto com uma agência e, como a Michele era de origem francesa, a troco de algum dinheiro, depois de algum tempo os colocou em Nova Iorque, com passaporte de turista. A Michele tinha uns parentes na cidade de Filadélfia, estado de Pennsylvania, para onde se dirigiram. Foram trabalhar “dentro”, (na linguagem emigrante diz-se trabalhar “dentro”, quando normalmente um casal habita e trabalha na casa de seus patrões), para a casa de uns senhores, antigos diplomatas, já de uma certa idade. Ela
ajudando na cozinha e em outros trabalhos, ele em trabalhos de fora, conduzindo ou jardinando, por um período de aproximadamente quatro anos, onde, com a colaboração de um popular advogado entre a comunidade portuguesa, que se dedicava em especial à emigração, na cidade de Newark, no estado de Nova Jersey, receberam toda a documentação legal para poderem residir e trabalhar nos Estados Unidos.
Deste modo, o Joaquim e a Michele procuraram finalmente começar a formar um lar, onde pudessem ter filhos e educá-los, pois era essa a sua “América”, ter, criar e educar alguns filhos. Com algum dinheiro que tinham amealhado, vieram para o estado de Nova Jersey, onde arranjaram trabalho e compraram uma casa. O Joaquim vai trabalhar na Multinacional onde nós mais tarde viemos a exercer a nossa actividade profissional, a Michele vai trabalhar numa fábrica de fazer utensílios domésticos, a que a comunidade portuguesa chamava a “fábrica das cafeteiras”.
Tiveram quatro filhos, o mais velho, o Zeca, é doutor, formou-se com uma bolsa de estudo por ser um atleta, jogava o futebol americano, correndo com uma velocidade bastante fora do normal. A Lizete é advogada, formou-se também com uma bolsa de estudo, porque era fora da média em matemática. A Michele, nome da mãe, é também advogada, os pais pagaram alguns estudos e com um financiamento do banco, que depois de se formar e começar a exercer a sua profissão,
acabou de pagar a sua formatura. O mais novo, o Joca, é professor na universidade onde estudou, com a ajuda de uma bolsa de estudo, por ser, como a irmã Lizete, superior à media em matemática. Esta foi a fortuna deste casal.
Mais tarde a Michele, mãe, morreu da doença de câncer, depois de algum tempo sofrendo, o Joaquim, viúvo, já depois de requerer a sua aposentação, não quis ir para casa de nenhum filho e dizia-nos: “só vou incomodar, vou vender a casita e vou comprar perto da comunidade portuguesa, que vive naquela cidade, ao sul do rio Passaic, lá, ao menos nas ruas vou ver e falar com portugueses, vou ouvir o sino da igreja de Nossa Senhora de Fátima, vou lembrar a minha aldeia em Bragança, é aí que desejo morrer”.
Só mais um pequeno pormenor que nos faz lembrar esta simpática personagem, raramente ficava zangado, mas quando estava de mau humor falava-nos em francês, com alguns gestos de compreensão universal, o seu calçado, que ele dizia que era o seu “luxo”, era um par de botas altas, tipo “cowboy”, que usava até ficarem completamente gastas, comprando depois, outras iguais.
O Joaquim viveu mais alguns anos no meio dessa comunidade portuguesa, até que a morte o levou.
Paz à sua alma.
Tony Borie, 2015
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Nota do editor
Último poste da série de 9 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14988: Libertando-me (Tony Borié) (29): Talvez seja o "nosso aspirante"
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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