Deus dá a nódoa conforme o pano
por Luís Graça
No melhor pano cai a nódoa,
diz
o povo,
mais
o do campo do que o outro povo,
o da
cidade.
E
com razão…
ou
talvez não ?
Opto
pela dúvida metódica,
não
sei se cai mesmo, afinal,
a
nódoa,
no pano,
no
melhor pano,
seja
velho ou novo,
como
cai a maçã de Newton,
no
chão,
por
força da gravidade
ou
por mor do pecado original.
Por
um questão de memória
e de
verdade,
pergunte-se:
- O
que é que cai (ou caía)?
A nódoa, o pano ou o povo,
ou
todos os três,
no
turbilhão da história ?
Reformulando
o ditote
de que,
se calhar, nem é do povo a autoria:
é a
nódoa que cai no pano
ou é
o pano que cai na nódoa ?
Seria
o pano fêmea
e a
nódoa macho ?
Se
sim, então porque dizes “o pano” ?,
ou porque
escreves “a nódoa” ?
Tu, sortudo,
que
és pano, limpo, alvo,
de
linho, seda ou até de algodão,
tu
que és pano de veludo,
brocado,
bordado
a prata ou ouro,
posto
à mesa do rico ou do governante,
por
que é que deverias ser
estático,
passivo,
servil,
expectante,
objeto,
recetáculo
?
E tu
que és nódoa,
suja,
repelente,
nauseante,
de
vinho ou azeite,
de
sémen ou de sangue,
de
vómito ou de pecado,
por
que é que deverias ser
dinâmica,
proativa,
predadora
sujeito,
ator,
vetor
?
Diz
o demagogo ao povo:
-
Dai-lhe asas de vento, dai-lhe,
ao
pano,
que
ele voa,
que
ele é capaz de voar,
como
o tapete mágico
da
lenda das mil e uma noites!
E
desintegrar-se-á em mil e um bocados,
em
mil e um orgasmos,
em
mil e uma nódoas,
numa
espiral de entropia
que o
levará a um fim trágico.
Segrega
o confessor ao pecador,
com o
típico mau hálito da boca dos confessores:
-
Cuidado, meu filho,
que
a nódoa pode ser oportunística,
como
a serpente da árvore do paraíso,
e
estar ali especada,
emboscada,
traiçoeira,
como
a flor carnívora
à
espera da sua vítima,
o
pobre do incauto inseto.
Ou como
a orquídea-abelha
à
espera do zangão
para
ser fecundada,
acrescenta
o biólogo.
Sociólogo,
filólogo ou teólogo,
atiça,
provoca, alvoroça, desafia o povo,
sem
evocares o seu nome em vão
e
muito menos o de Deus:
- Se
no melhor pano cai a pior nódoa,
por
que é que no pior pano
não
cai a melhor nódoa ?
… Afinal
o sujo faz parte do continuum do
limpo.
Na seda mais fina é que a nódoa pega,
há também quem o diga e ajuramente,
há também quem o diga e ajuramente,
burguêsmente,
o que vale é que
a nódoa que põe a amora.
com outra, verde, se tira.
Eu prefiro a bosta de abril
que tira manchas mil.
Mas cuidado com outros meses do calendário,
que a nódoa de janeiro
não a tira o ano inteiro.
E depois há nódoas e nódoas,
o que vale é que
a nódoa que põe a amora.
com outra, verde, se tira.
Eu prefiro a bosta de abril
que tira manchas mil.
Mas cuidado com outros meses do calendário,
que a nódoa de janeiro
não a tira o ano inteiro.
E depois há nódoas e nódoas,
algumas
indeléveis:
nem toda a água do mar
pode certas nódoas tirar.
E, abrenúncio!,
nódoa de gordura
é alma… que cai no inferno.
nódoa de gordura
é alma… que cai no inferno.
Fique
o poema provisoriamente inconclusivo,
arremata
o poeta,
que
não é limpo de geração:
-
Não há pano sem nódoa,
não
há nódoa sem pano,
não
há ponto sem nó,
não
há povo sem dichote
(nem
povo que queira e ame o chicote!).
Não
há aquém sem além,
nem
há xis sem corações,
mesmo
que se vejam as caras
e
não se vejam os corações.
Mas
o pior é que, às vezes,
não
há mesmo ninguém
que
goste de nós!
Mais:
não há
sábio sem louco,
nem
médico sem doente,
nem Deus dá nozes
a quem não tem dentes,
porque
isso seria indecente,
da
Sua parte.
Enfim,
e já que Ele para aqui foi chamado,
por
causa da nódoa original, primordial,
do
pecado,
é
bom que se saiba
que Deus,
Misericordioso, dá a nódoa
…conforme
o pano!Lisboa, v5 22out2015
© Luís Graça
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Nota do editor:
Último poste da série > 14 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15248: Manuscrito(s) (Luís Graça) (65): O Tempo Parece Querer Mudar... (Coleção de citações do diário de Tomás de Mello Breyner, c. 1902-1904)
3 comentários:
Luís
Gostei de ler e na minha opinião a nódoa é sempre oportunista e nunca uma oportunidade.
Um abraço
Caro Luís:
Sou um filho da civilização judaico-cristã. Foi com essas vestes que os meus pais, a professora e o padre embrulharam a minha alma. Nunca me consegui libertar delas e hoje estão cheias de nódoas que são os meus pecados e outras imperfeições do carácter.
Gostei do teu poema que me ajuda a fazer estas reflexões e a olhar melhor para dentro de mim.
Um abraço. Francisco Baptista
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