quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Guiné 63/74 - P15279: Manuscrito(s) (Luís Graça) (66): No melhor pano cai a nódoa...

Deus dá a nódoa conforme o pano


por Luís Graça


No melhor pano cai a nódoa,
diz o povo,
mais o do campo do que o outro povo,
o da cidade.
E com razão…
ou talvez não ?
Opto pela dúvida metódica,
não sei se cai mesmo, afinal,
a nódoa,
no pano,
no melhor pano,
seja velho ou novo,
como cai a maçã de Newton,
no chão,
por força da gravidade
ou por mor do pecado original.


Por um questão de memória
e de verdade,
pergunte-se:
- O que é que cai (ou caía)?
 A nódoa, o pano ou o povo,
ou todos os três,
no turbilhão da história ?


Reformulando o ditote
de que, se calhar, nem é do povo  a autoria:
é a nódoa que cai no pano
ou é o pano que cai na nódoa ?
Seria o pano fêmea
e a nódoa macho ?
Se sim, então porque dizes “o pano” ?,
ou porque escreves “a nódoa” ?


Tu, sortudo,
que és pano, limpo, alvo,
de linho, seda ou até de algodão,
tu que és pano de veludo,
brocado,
bordado a prata ou ouro,
posto à mesa do rico ou do governante,
por que é que deverias ser
estático,
passivo,
servil,
expectante,
objeto,
recetáculo ?
E tu que és nódoa,
suja,
repelente,
nauseante,
de vinho ou azeite,
de sémen ou de sangue,
de vómito ou de pecado,
por que é que deverias ser
dinâmica,
proativa,
predadora
sujeito,
ator,
vetor ?


Diz o demagogo ao povo:
- Dai-lhe asas de vento, dai-lhe,
ao pano,
que ele voa,
que ele é capaz de voar,
como o tapete mágico
da lenda das mil e uma noites!
E desintegrar-se-á em mil e um bocados,
em mil e um orgasmos,
em mil e uma nódoas,
numa espiral de entropia
que o levará a um fim trágico.


Segrega o confessor ao pecador,
com o típico mau hálito da boca dos confessores:
- Cuidado, meu filho,
que a nódoa pode ser oportunística,
como a serpente da árvore do paraíso,
e estar ali especada,
emboscada,
traiçoeira,
como a flor carnívora
à espera da sua vítima,
o pobre do incauto inseto.
Ou como a orquídea-abelha
à espera do zangão
para ser fecundada,
acrescenta o biólogo.


Sociólogo, filólogo ou teólogo,
atiça, provoca, alvoroça, desafia o povo,
sem evocares o seu nome em vão
e muito menos o de Deus:
- Se no melhor pano cai a pior nódoa,
por que é que no pior pano
não cai a melhor nódoa ?
… Afinal o sujo faz parte do continuum do limpo.


Na seda mais fina é que a nódoa pega,
há também quem o diga e ajuramente,
burguêsmente,
o que vale é que
a nódoa que põe a amora.
com outra, verde, se tira
.
Eu prefiro a bosta de abril
que tira manchas mil
.
Mas cuidado com outros meses do calendário,
que a nódoa de janeiro
não a tira o ano inteiro
.
E depois há nódoas e nódoas,
algumas indeléveis:
nem toda a água do mar
pode certas nódoas tirar.
E, abrenúncio!,
nódoa de gordura
é alma… que cai no inferno
.



Fique o poema provisoriamente inconclusivo,
arremata o poeta,
que não é limpo de geração:
- Não há pano sem nódoa,
não há nódoa sem pano,
não há ponto sem nó,
não há povo sem dichote
(nem povo que queira e ame o chicote!).
Não há aquém sem além,
nem há xis sem corações,
mesmo que se vejam as caras
e não se vejam os corações.
Mas o pior é que, às vezes,
não há mesmo ninguém
que goste de nós!
Mais:
não há sábio sem louco,
nem médico sem doente,
nem Deus dá nozes
a quem não tem dentes,
porque isso seria indecente,
da Sua parte.


Enfim, e já que Ele para aqui foi chamado,
por causa da  nódoa original, primordial,
do pecado,
é bom que se saiba
que Deus, Misericordioso,  dá a nódoa
…conforme o pano!

Lisboa, v5 22out2015

© Luís Graça

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Nota do editor:

Último poste da série > 14 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15248: Manuscrito(s) (Luís Graça) (65): O Tempo Parece Querer Mudar... (Coleção de citações do diário de Tomás de Mello Breyner, c. 1902-1904)

3 comentários:

Juvenal Amado disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Juvenal Amado disse...

Luís

Gostei de ler e na minha opinião a nódoa é sempre oportunista e nunca uma oportunidade.


Um abraço

Anónimo disse...



Caro Luís:

Sou um filho da civilização judaico-cristã. Foi com essas vestes que os meus pais, a professora e o padre embrulharam a minha alma. Nunca me consegui libertar delas e hoje estão cheias de nódoas que são os meus pecados e outras imperfeições do carácter.
Gostei do teu poema que me ajuda a fazer estas reflexões e a olhar melhor para dentro de mim.
Um abraço. Francisco Baptista