segunda-feira, 16 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16094: Nota de leitura (839): Num número da revista Africana encontrei um trabalho de certo fôlego intitulado “Guiné: o gentio perante a presença portuguesa”, da autoria da antropóloga Maria Teresa Vázquez Rocha (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Julho de 2015:

Queridos amigos,
Pareceu-me particularmente interessante o trabalho desta antropóloga que coligiu relatos sugestivos de viajantes, juntando-lhes documentação sobre a vida das praças e a atividade missionária.
Trata-se de um percurso linear onde podemos ver a euforia de certos viajantes, a deceção dos missionários, as permanentes reivindicações de capitães-mores a pedirem mais efetivos, melhores condições, a deplorar a presença de estrangeiros perante o alheamento das autoridades portuguesas. É juntando estas peças que ganha uma certa claridade o que foi a ténue presença portuguesa e descobrir as razões pelas quais a Grande Senegâmbia excedeu as nossas possibilidades. 

Um abraço do Mário




A Guiné entre os séculos XV e XVIII: olhares e documentos

Beja Santos

Num número da revista Africana encontrei um trabalho de certo fôlego intitulado “Guiné: o gentio perante a presença portuguesa” da autoria da antropóloga Maria Teresa Vázquez Rocha, em que se procura analisar as reações, perante a presença portuguesa, até ao século XVIII das populações autóctones. E o texto arranca com um belíssimo parágrafo do Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo Verde, de André Álvares de Almada: “Esta terra é tão abundante de tudo que nada lhe falta; abastada de muitos mantimentos, muito fresca de ribeiras de água, laranjeiras, cidreiras, limoeiros, canas-de-açúcar, muitos palmares, muita madeira excelente. Povoando-se, viria a ser de facto de maior trato que o Brasil; nesta terra há algodão e o pau que há no Brasil, e marfim, cera, ouro, âmbar, malagueta, e podem-se fazer muitos engenhos de açúcar”. A autora fala abreviadamente das ligações da Guiné aos grandes impérios da África Ocidental e socorre-se de vários autores para caraterizar as diferentes etnias, e cita novamente André Álvares de Almada: “E como os reinos dos negros sejam tantos e as linguagens tão várias como os costumes diversos, porque em cada espaço em menos de 20 léguas há duas e três nações, todas misturadas, e os reinos uns pequenos, e outros grandes, sujeitos uns aos outros”. Os grupos referenciados são: Balantas, Felupes, Banhuns, Cassangas, Cobianas, Manjacos, Brâmes, Papéis, Bijagós, Beafares, Nalus, Mandingas, Fulas. Quanto à caraterização da chegada, instalação e primórdios portugueses, a fonte mais invocada é a “Crónica da Guiné”, de Azurara.

A ligação a Cabo Verde vem desde os primeiros tempos e daí as designações “Rios da Guiné do Cabo Verde”, “Guiné do Cabo Verde” ou “Senegâmbia do Cabo Verde”. Tudo começa com os comerciantes originários de Cabo Verde que se fixaram no continente adquirindo escravos e outras mercadorias, como escreveu Henrique Pinto Rema, a propósito das primeiras missões da costa da Guiné: “Estes comerciantes brancos, vindos do arquipélago, sobretudo de S. Tiago, familiarizaram-se com os negros e com as negras, aprenderam as línguas do país, enriquecendo-as por seu lado com vocábulos da própria língua materna e confiadamente se lançaram pelo sertão adentro, de onde lhes veio o epiteto de lançados”. Cacheu surge em 1588, teve praça construída por Manuel Lopes Cardoso. Mas só com Gonçalo Gamboa Aiala será construída uma fortaleza propriamente dita e ele nomeado capitão-mor, em 1641. A fixação mais densa dos portugueses verificar-se à apenas nos finais do século XVII, como forma de salvaguardar os interesses nacionais face às intenções francesas. E daí a construção da fortaleza em Bissau, em finais do século XVII e renovada em 1708. Como escreve a autora: “Só no reinado de D. José I, em 1753, se restabeleceu a capitania, ficando Nicolau de Pina Araújo à frente da mesma. A reedificação da fortaleza de S. José de Bissau torna-se então indispensável. O novo forte foi construído sob enorme oposição dos indígenas, a qual se manifestou por inúmeros atos agressivos; Papéis e Grumetes cometiam enormes desacatos, o que não impediria estes de serem, noutras alturas, grandes auxiliares na defesa das praças da Guiné”.

Para além destas praças foram criadas as de Geba, Farim e Zinguinchor. Era quase impossível encontrar colonos devido à natureza do clima e os degredados enviados eram em pequeno número e elevada a taxa de mortalidade. A autora, que pesquisou no Arquivo Histórico Ultramarino cita documentação alusiva à falta de condições de salubridade, às más condições existentes, ao miserável estado da praça de Cacheu, aos conflitos permanentes com as populações circundantes. Desde muito cedo também que irá surgir um problema para o qual não se encontrou solução adequada: a presença efetiva de missionários. Aliás, enviavam-se padres visitadores que tinham uma ação pouco ou nada eficaz, eram frequentes os conflitos entre os visitadores e os moradores das praças, na medida em que os primeiros cometiam excessos e faziam desmesuradas exigências.

Nesta documentação, a autora deteta informação sólida sobre os europeus e o seu comportamento em terras guineenses: falta de qualidades morais de lançados e comerciantes, ganância e toda a sorte de expediente para enriquecer rapidamente, arbitrariedades de toda a espécie. Ficamos igualmente a saber o que se transacionava nas praças, com destaque para o tráfico de escravos. E temos também as queixas sobre a concorrência de franceses, ingleses e holandeses, é percetível o enfraquecimento da presença portuguesa. Quanto às relações políticas, há um documento eloquente, a carta do rei de Bissau, Bacampolco, a D. Pedro II, em 26 de Abril de 1694, manifestando a sua afeição e propondo-se enviar o seu filho primogénito e onde diz: “Rei de Portugal meu irmão, a esta minha ilha veio o bispo dos cristãos e eu o recebi com amor e desejava que ele ficasse logo amigo, pelo gosto que tive de o ver; e como se ele tornar a esta ilha e me achar vivo me quero lavar minha cabeça e fazer cristão, e não só eu mas todos os meus vassalos; peço e rogo a Vossa Majestade que o queira mandar com ele alguns padres para me ensinarem e a minha gente o caminho verdadeiro do Senhor Deus para salvação das nossas almas, que estou pronto e com grande vontade fazer igrejas em que se conheça e adore o verdadeiro Deus”.

A ação missionária dos franciscanos foi hostilizada por quantos se dedicavam ao tráfico de escravos, são choques infindáveis, os frades sairão da Guiné no início do século XVIII. A missionação da Guiné ficou entregue aos cuidados dos padres seculares de Cabo Verde, a assistência foi sempre muito reduzida. Como observa a autora, o século XVIII foi marcado pela decadência missionária. Até 1940, a igreja da Guiné esteve dependente de Cabo Verde, depois ganhou autonomia.

Queremos agora fazer referência a outro artigo publicado nesta revista Africana, trata-se de uma conferência proferida por Silva Cunha em 1959 no Instituto dos Altos Estudos Militares e que tem a ver com os antecedentes da subversão na Guiné. Em dado passo, e falando da importância do movimento islâmico na Guiné e Moçambique, disse o seguinte: “Cerca de um terço da população indígena destas províncias seguem o credo muçulmano e o número tende a aumentar, pois o islamismo, religião missionária, faz um intenso proselitismo entre as populações animistas do nosso território, sem que, infelizmente, se lhe oponha por parte das missões cristãs um apostolado eficiente. A situação é tal que, a manter-se, dentro de uma dezena de anos toda ou quase toda a população nativa da Guiné estará islamizada. Ora, a comunidade de religião cria novas afinidades que, por vezes, superam mesmo as divisões tribais e tendem a uniformizar os caráteres sociais das populações”. O antigo ministro do Ultramar enganou-se, o islamismo cresceu, tal como, surpreendentemente, as religiões cristãs, com destaque para o catolicismo. Iniciada a guerra, verificou-se que o islamismo não foi em si um fator de divisão, ou seja, nem toda a população islamizada se manteve fiel à bandeira portuguesa, e os aspetos religiosos, na atualidade, não parecem tender a agravar as grandes questões étnicas e não se deteta a tal uniformização dos caráteres sociais das populações. Há outros fatores em jogo nesta ponderação, o cultural, a vitória sobre o analfabetismo, a criação de riqueza, o sentido de identidade nacional, o primado do trabalho, etc, jogam tanto ou mais que o fator religioso na tal uniformização dos caráteres sociais do povo.



Carta Hidrográfica da Guiné Portuguesa, 1844, Sociedade de Geografia de Lisboa que amavelmente permitiu a sua publicação no livro “Da Guiné Portuguesa à Guiné-Bissau: Um Roteiro”, por Francisco Henriques da Silva e Mário Beja Santos, Fronteira do Caos, 2014, reproduz-se com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16081: Nota de leitura (838): Alexandre Herculano e a Questão de Bolama (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

"O antigo ministro do Ultramar enganou-se, o islamismo cresceu, tal como, surpreendentemente, as religiões cristãs, com destaque para o catolicismo. Iniciada a guerra, verificou-se que o islamismo não foi em si um fator de divisão..."

BS, estás a trazer um assunto à baila, que se em 1959 já preocupava Silva Cunha, na Guiné e Moçambique, hoje será um problema terrível para a África toda em geral.

Sabemos que é notícia constante de crianças guineenses vendidas/raptadas/cedidas/desaparecidas
e que vão para escolas corânicas não se sabe bem aonde e com que fins reais.

Ainda ontem as notícias davam o presidente françês na Nigéria reunido com religiosos.

Cumprimentos