quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16809: Os nossos seres, saberes e lazeres (189): De novo em Bruxelas e a pensar nas Ardenas (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 5 de Julho de 2016:

Queridos amigos,
Cada turista tem as suas pechas, os seus amores desmedidos alguns deles até se justificam porque o lugar visitado guarda memórias inolvidáveis. Por razão do meu trabalho, entre 1977 e 2007, visitei com muita assiduidade Bruxelas. Fiz amizades, tenho lugares de culto, sento-me num banco de jardim e volto décadas atrás, recordo exposições espantosas, designadamente aquelas que gravitam à volta da Europália, a começar pela Europália de Portugal, 1991, lembro-me de ter ido a Charleroi visitar a exposição dos nossos instrumentos científicos antigos, guardados religiosamente pela Universidade de Coimbra, vieram excursões da Polónia, Países Bálticos e Escandinávia ver o que já tinha desaparecido.
Está bom tempo, amanhã partimos para as Ardenas, está-me reservada uma experiência única, dormir numa casa que ainda está na Bélgica mas que faz fronteira com a França.
Depois conto.

Um abraço do
Mário


De novo em Bruxelas e a pensar nas Ardenas (2)

Beja Santos

Trata-se de uma visita familiar, é deliberado fazer uma peregrinação a lugares bem conhecidos, no centro da cidade, hoje disfarço-me de cicerone, acompanha-me um amigo que está longe de conhecer ou perceber como estes lugares são da minha eleição. Estamos agora numa igreja chamada Nossa Senhora do Bom Socorro, rue Marché du Charbon. Aqui houve uma modesta capela no século XII, no século XVII a capela transformou-se em igreja. Está aqui um pouco da história da Bélgica. Na porta temos o escudo de armas de Carlos de Lorena, governador dos Países Baixos no século XVIII. Aliás a igreja foi reconstruída no fim do século XVII, depois dos bombardeamentos por ordem de Luís XIV. Altar em mármore e madeira pintada, a formosa estátua da virgem do bom socorro, data do século XIV. Tivemos sorte com a visita, já que o edifício serve de cenário para concertos de música barroca, devido à boa acústica, andávamos por ali a deambular e começou o ensaio, passámos meia hora nas alturas.



A seguir a uma igreja vamos a outra, a de S. Nicolau, perto do edifício da Bolsa, nunca acerto com os horários, talvez pela hora matinal volta a não ser possível visitar as esculturas de Rodin, não acredito que sejam grande coisa, os guias concedem-lhes magras referências. Em vez de seguirmos para a Grand Place entramos numa igreja que também privilegia o barroco, destruída pelos canhões do marechal de Villeroy, mas os danos não ficaram por aqui, os franceses chegaram a Bruxelas em 1794 e derrubaram a igreja, só em 1956 ela foi completamente restaurada e repostas as suas riquezas. Temos uma nave central, que é primorosa, respeita a arquitetura dos séculos XIV e XV, tem belíssimas abóbadas de cruzeiro, a nave central e as naves laterais assentam em robustos pilares quadrados. A grande atração de S. Nicolau é um relicário com as relíquias dos mártires de Gorkum, é um trabalho admirável de ourivesaria. Muito bela é também a imagem de Nossa Senhora da Paz do século XVI. Contrastando com toda a beleza do barroco está lá um ícone de Vladimir, a Virgem da Ternura, digamos que não há nada de espetacular na pintura, mas a expressão do menino é cativante, se a Mãe é a ternura, o que dizer deste abraço?



Os viandantes fazem agora uma inversão completa e dirigem-se ao bairro mais popular de Bruxelas, Marolles, seria impensável com este bom tempo não dar uma saltada à Feira da Ladra local. Como não é a primeira vez que se sujeita ao leitor a imagens semelhantes, o melhor é dar conta do que adquiriu: um álbum fotográfico de uma família que já deve estar nas nuvens e que aí por 1963 fizeram o Chamonix e desceram toda a França até Carcassone, bem perto da fronteira espanhola; uma bela edição de Orfeu, de Monteverdi, duas estampas congolesas, vários tecidos em seda chinesa, dois livros em edições Arte Nova, belíssimos, mais tarde vem o arrependimento quando o encadernador pede um balúrdio, não havia reparações para as lombadas. A fúria só acaba quando os livros aparecem impecavelmente remoçados, dão gosto, ali junto à mesa de trabalho, ainda mais com o Orfeu a chorar pela sua Eurídice.



A brincar, a brincar, começamos a expedição turística já lá vão perto de 4 horas a dar aos pés. Mas o que se vê nesta extensa rua chamada Blaes possui magneto, há por aqui traquitana de toda a ordem, como interessa ser comedido para não enfastiar, mostra-se uma montra do tempo antigo, não me importaria nada de ter aquela poltrona, e mesmo com o estômago a bater horas quando há pintura entra-se nas lojas e fazem-se perguntas. Foi o caso deste tríptico, como a câmara é modesta assentou-se a atenção no painel central, gostos não se discutem, um dos viandantes teve a insânia de perguntar o preço, modesto por sinal e falou em portes. Outro viandante alertou para as horas, nestas coisas das compras há mais marés que marinheiros.



Vamos então dar por findo o dia de trabalho, a tarde será reservada para outro tipo de ferro-velho: livros usados e frontarias de edifícios. Bruxelas é conhecida pelas suas pichagens artísticas. Os viandantes entusiasmaram-se, já estavam de barriga aviada, houve uma bela sopa de legumes, endívias com presunto, gelado e café, era com ardor que passarinhavam pela cidade. E despedem-se com duas pichagens, dão prova do quilate do que o turista pode encontrar nesta cidade a quem tanto chamam sombria, monótona, uma sensaboria.



(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16779: Os nossos seres, saberes e lazeres (188): De novo em Bruxelas e a pensar nas Ardenas (1) (Mário Beja Santos)

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