1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Outubro de 2017:
Queridos amigos,
Vive-se um período histórico que a historiografia mais comum considera tratar-se do fim das sublevações. Ver-se-á para um documento aqui incerto que há muito de ilusionismo. Bolama entrou numa desagregação irreversível, já há serviços importantíssimos em Bissau, somos igualmente informados que prossegue a penúria do papel-moeda e que há muito desânimo agrícola no Sul.
Ainda há quem confie que as obras no ponte-cais de Bolama alevantará a cidade, insiste-se na importância da ponte sobre o Corubal, velho sonho para interligar os Bijagós ao continente e este às dependências francesas.
Cresceu o número de civilizados, segundo o último censo e a presença de negociantes sírios assume o maior relevo.
Na consulta dos primeiros copiadores do BNU de Bolama, hoje praticamente indecifráveis, encontrei no cadastro dos clientes nomes como o do pai de Amílcar Cabral, os Saiegh e os Buscardini, funcionários e comerciantes implantados em várias regiões. Uma curiosidade e nada mais.
Um abraço do
Mário
Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (20)
Beja Santos
Ao vigésimo episódio do levantamento documental sobre o BNU da Guiné, importa fazer um ponto da situação. O BNU abre uma delegação em Bolama, capital da colónia, em 1903. No Arquivo Histórico do BNU não existe qualquer documentação anterior a 1917, ano em que é constituída outra delegação em Bissau. Daí a ausência de documentação sobre questões fundamentais, como é o caso da entrada da colónia na I Guerra Mundial ou referências às campanhas do Capitão João Teixeira Pinto. Cedo se irá verificar uma crescente rivalidade entre a delegação e a filial, Lisboa ver-se-á obrigada a delimitar as áreas de atuação. A generalidade dos comentários críticos ou hipercríticos assinados pelos responsáveis do BNU em Bolama ou Bissau transcendem o entendimento da comunicação hierárquica, devia haver um protocolo discreto que autorizava os gerentes a contarem com detalhe em minúcia o que julgavam de mais relevante e da socioeconómica e política da colónia. Daí a infinidade de verbetes a anunciar partidas e chegadas, a comunicar o exílio de Abdul Indjai ou o que um gerente em Bissau chama a vida imoral do Governador Carvalho Viegas. Os gerentes não se podiam imiscuir na política e a prova disso é uma carta enviada em 31 de Março de 1931 por Vieira Machado para o gerente de Bissau:
“A propósito do incidente ultimamente ocorrido entre vossas senhorias e o senhor intendente dessa cidade, de novo recomendamos que ponham de parte todas as suas inimizades pessoais, sempre que se trate de assuntos que se prendam com o banco, que não queremos ver envolvido, de longe ou de perto, em semelhantes assuntos.
Também mais uma vez – que esperamos que seja a última – proibimos vossas senhorias de se imiscuírem na política local, a que devem ser de todos alheios, evitando, assim, escusadas desinteligências ou conflitos com quer que seja.
Procurar viver no melhor entendimento com todos, deve ser a constante preocupação de vossas senhorias, deste modo se poupando e poupando o banco a quaisquer dissabores”.
Têm pois os gerentes rédea solta para contar o que julgam de mais significativo, e escusado é dizer que tais apontamentos, pelo seu ineditismo, dão um forte contributo à caraterização da vida da colónia, à evolução dos mercados e ao timbre, em diferentes ângulos, do que era a presença portuguesa desde a I República ao Estado Novo. Acresce que o leitor deve estar informado que há relatórios em falta, dados que são nalguns casos supridos pela documentação avulsa que é possível consultar neste arquivo histórico. E postas estas considerações, voltemos a 1934. A filial de Bolama, a propósito da situação da Praça recorda que de há muito se pensa em transferir para Bissau a capital, ali já se encontram as direções dos serviços do Estado, na sua maior parte. E logo observa que disso se ressentiu a Praça de Bolama, pois o comércio local perdera uma grande parte dos seus clientes com a saída de tão grande número de funcionários. A vida comercial desta Praça estava eriçada de dificuldades devido principalmente à falta de papel-moeda. Como é comum observar-se nestes relatórios, alude-se à situação das colheitas, e o que se diz é para registar:
“A colheita da mancarra na zona de Bolama, por via de regra, é tardia. Começa em fins de Dezembro e prolonga-se até à segunda quinzena do mês de Abril. Os maiores agricultores são Brames e Manjacos, os quais, por sua vez, tarde começam as lavouras. Os Beafadas e os Mandingas que habitam as regiões de Quínara e Cubisseco também se dedicam a lavoura da mancarra, mas em escala muito reduzida, visto que, uns e outros, por índole, são excessivamente ralassos (mandriões).
A colheita deste ano deve ser fraca porque os agricultores indígenas desanimados em fase dos reduzidos preços do anterior, quase que se desinteressaram da cultura desta oleaginosa.
A colheita do coconote começa agora e estende-se até ao princípio das chuvas. No fim destas também se faz a sua apanha, mas já em menor escala.
Presume-se que a colheita do arroz, em que já entrámos, seja mais abundante do que a do ano passado, por alguns indígenas terem abandonado a cultura da mancarra, dando preferência à do arroz”.
Não é incomum estes relatórios incluir uma panorâmica das obras em curso, desde as redes viárias as instalações portuárias. Informa que está preconizado o prolongamento da ponte-cais de Bolama para a acostagem direta de navios de longo curso. E não esconde a expectativa deste melhoramento: “É opinião unânime que o prolongamento na extensão de 15 a 20 metros resolveria o problema na acostagem de vapores, com manifesta vantagem para o desenvolvimento e facilidade do tráfego entre a capital da colónia e os restantes portos da Guiné e da metrópole”.
Neste relatório, o gerente inclui dados do censo da população segundo o recenseamento de 1933-1934-1935. Em termos de população “civilizada” teríamos 6 mil indivíduos e a população indígena ultrapassaria os 409 mil habitantes. E avança um elemento curioso: o número de indivíduos da raça branca aumentara em 256 em relação ao censo de 1928. Um terço destes civilizados é constituído por estrangeiros com especial destaque para os sírios.
Na ausência de dados sobre a vida da colónia em 1931, avança-se para uma carta do gerente de Bissau para Lisboa com dada de 10 de Janeiro de 1936, referente a revolta da ilha Canhabaque:
“Parece que o governo da colónia pretende acabar de vez com o foco da revolta ou rebeldia que naquela ilha desde há muito existe, ou só durante pouco tempo deixou de existir.
O indígena de Canhabaque não tem pago imposto de palhota e não manifesta pelas nossas autoridades grande respeito, ao que se afirma.
Precisa de uma lição-mestra, mas só colhido de surpresa se lha pode dar. Com o aparatoso espetáculo de mobilização de regulares e de irregulares, não pode resultar nada de útil, porque o indígena, sabendo como sabe sempre tudo quanto lhe interessa e conhecendo como conhece a inferioridade do seu armamento, não chega, por via de regra, a ter contacto com as forças do governo. Trocam-se meia dúzia de tiros em emboscadas, as tropas regulares gastam milhares de cartuchos e centenas de contos e no fim a ação militar limita-se a umas tantas palhotas incendiadas. Porque homens, gados e outros haveres, tudo se passa para as restantes ilhas do arquipélago, consideradas pacíficas ou para o continente, para a região do Cubisseco.
Começou há dias a acção militar na ilha de Canhabaque e logo de início, ao quinto tiro de uma peça de artilharia esta rebentou tirando a vida ao Sargento Correia, que a comandava. Parece que há mais uma ou duas dúzias de feridos, não surpreendendo que o tenham sido pelos próprios irregulares.
Dizem os entendidos que a melhor época para o ataque a ilha é a do começo das chuvas, porque nessa altura todo o indígena ali regressa para tratar da lavoura. Afirma todos que nessa época e com o barulho que se está a fazer em volta de um mero caso de polícia, resultara nula toda a acção governativa porque os Bijagós, avisados a tempo, limitar-se-ão a deixar na ilha meia dúzia dos mais atrevidos, que dispararão à queima-roupa, bem escondidos no mato, ou em covas disfarçadas, abertas no chão e em lugares apropriados, que lhes permitem fuga imediata. Portanto, a ocupação ou a batida da ilha não será grande feito nem precisará de grandes heroísmos; mas, acabada a “guerra”, serão propostas as medalhas para os heróis, a ilha ficará guarnecida por dois ou três postos militares, com ajudas de custo para os comandantes e os Bijagós regressarão com manhosa submissão e continuarão a ser senhores da ilha.
Tem sucedido sempre assim e a história repete-se.
É por isso que os que conhecem a Guiné são da opinião que só resultaria útil uma acção rápida e inesperada – a acção que, de preferência, se realizaria em princípio das chuvas, por dois motivos principais: primeiro, porque facilmente se poderiam castigar os rebeldes, apanhados em conjunto; segundo, porque se lhes reduziria o poder guerreiro devido à humidade da pólvora que eles guardam em recipientes de barro.
Quanto a nós, temos opinião diferente.
Somos de parecer – mero modo de pensar de um homem pacífico que nada sabe de guerras – de que a melhor altura para reprimir estes pequenos actos de rebeldia é sempre após os actos praticados, colhendo de surpresa os rebeldes.
Com grandes preparativos e mobilização aparatosa de irregulares, é dar ao indígena a impressão de que o governo só por só não tem força para reprimir uma revolta. E o pior é que os próprios auxiliares, a breve trecho, se podem capacitar que é mesmo assim, e o resultado desse convencimento pode acarretar consequências desagradáveis”.
Enfim, os gerentes não eram abstémios em contar o que viam ou ouviam e este documento deixa outra prova, a que segue:
“Há dias, qualquer mal-intencionado dos muitos que vivem pelas colónias, perguntava-nos se já tínhamos reparado na coincidência curiosa de se darem sempre actos de rebeldia quando os postos militares na Guiné não eram comandados por oficiais. Que nunca tínhamos reparado, respondemos-lhes. Pois repare e verá que é assim. Se um oficial está no posto, acrescentou, o indígena paga o imposto com mais ou menos dificuldade, mas paga; o oficial sai e o indígena recusa-se a pagar, desrespeita a autoridade, envenena as águas, fere ou mata um ou dois soldados. E, ao despedir-se, dizia-nos ainda o nosso interlocutor que o indígena não gosta de pagar impostos em duplicado”.
(Continua)
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Notas do editor:
Poste anterior de 26 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18255: Notas de leitura (1035): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (19) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 29 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18266: Notas de leitura (1036): “Modelo Político Unificador, Novo Paradigma de Governação na Guiné-Bissau”, por Livonildo Francisco Mendes; Chiado Editora, 2015 (2) (Mário Beja Santos)
3 comentários:
Estes relatórios de funcionários brancos ou de qualquer cor, ultramarinos, são interessantíssimos para compreender o que era a vida no ultramar.
Havia vontade de fazer alguma coisa para sair de uma morte lenta "à sombra da bananeira" e como não havia nada ou muito pouco para preencher o tempo, falava-se, escrevia-se, davam-se palpites, cortava-se na casaca, falava-se e sabia-se de tudo e mais alguma coisa.
Qualquer serralheiro sabia de médico, qualquer médico sabia de agricultura e qualquer manga de alpaca dava um político e até treinador de futebol, e este do BS, até sabe de táctica de guerra contra os bijagós.
Como não havia jornal a bola nem TV mescigenava-se o que se podia.
E quem estava em comissão, sabia que havia uma promoção à espera quando chegasse à metrópole.
Um dia em 1961, a UPA interrompeu a rotina e agitou as coisas durante 13 anos até que se acabou uma vida de muitos anos.
Olá Camarada Rosinha
A pouco e pouco vamos descobrindo como as "coisas se passavam".
Aquela da peça que rebenta e mata o sargento diz muito do que era a "administração ultramarina" e nacional também.
Nos anos trinta do século passado ainda havia "revoltas dos gentios", o que atesta a política de integração e de são convívio entre povos. Enfim uma "política multicontinental e pluriracial" que não podia deixar de dar frutos!
Fica assim provado que realmente a "acção civilizadora" dos portugueses e vivência em paz à "sombra da bandeira verde-rubra do Minho a Timor" eram um facto incontroverso.
Mesmo que se façam descontos a maledicência dos funcionários em serviço na colónia (o que sempre acontece nos ambientes "pequenos e provincianos") era difícil que se desviassem muito da realidade.
Aquela de aumentar o cais de 15 a 20 metros dá uma ideia de penúria que se vivia.
Uma miséria!... Uma caricatura de administração!
Um ab. e um bom domingo
António J. P. Costa
Antonio J.P.Costa, eu também fui funcionário público, da Junta de Estradas e repito aqui uma piada sobre mim e os meus inúmeros colegas ultramarinos em Angola:
Era assim, quando a força aérea levantava vôo, levavam as seguinte instruções, se virem um grupo desconhecido no mato, mas que não esteja em movimento, não bombardeiem, porque não são turras, são funcionários da Junta de Estradas.
Enfim, ia-se levando, mas que era uma vida deliciosa, (anos 50, até 61), para quem não tivesse muitas preocupações na vida, ninguém tenha dúvida.
E ninguém tenha dúvida, que os indígenas apreciavam a presença dos "brancos" que não os chateassem muito, que era o meu caso e o de milhares de funcionários de todas as cores em Angola e creio que na Guiné seria a mesma coisa antes de 61.
Só houve uma verdadeira colonização na África negra,embora com segregação, apartheid e alguma violência, foi apenas na África do Sul, com os Boers e iniciada por Cecil Rhodes, onde hoje deve existir mais ouro armazenado que será dos países mais ricos do mundo em ouro,duzentos anos a armazenar ouro, com mão de obra barata e em abundância.
Pessoalmente considero que a melhor colonização de África, Indias e Américas, foi a colonização lusa, porque foi a que menos chateou o indígena e que menos o explorou e que menos exigiu e aculturou.
O que os europeus pretendiam em 1880 e seguintes era apenas a exploração das chamadas "riquezas naturais" de África, aquilo que nós nunca tivemos engenho nem arte nem gente nem dinheiro para sacar essas riquezas.
Tanto no Brasil na India ou em África não foram os "nossos" indígenas que se chatearam connosco, foi o Tiradentes,o Amilcar Cabral o Neru e Agostinho Neto, que nenhum era indígena.
Hoje os Zulus da África do Sul são mais felizes que os Balantas da Guiné Bissau?
Se o ouro traz felicidade, os Zulus e os Shosas são os pretos mais felizes do mundo.
Os avós deles viveram aos milhares durante duzentos anos dentro de minas...a pensar nos netos.
Penso que ser colonizador em Bolama como o nosso bancário do BNU, devia sofrer de uma claustrofobia terrível, aí, eu não aguentava, depois de conhecer Luanda.
Cumprimentos
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