quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18271: Bibliografia de uma guerra (85): “O céu não pode esperar”, por António Brito; Sextante Editora, 2009 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Novembro de 2017:

Queridos amigos,
António Brito, autor de uma obra-prima incontornável da literatura da guerra, "Olhos de Caçador", é um autor prolífico em obras de aventura e ação, criou mesmo um justiceiro, de nome Sagal.
Neste seu segundo romance concatenou uma série de factos que vão desde um Fiat abatido, a descoberta de uma mensagem dirigida a D. João IV, que o mesmo piloto encontrou numa gruta na região do Rovuma, um espetacular afundamento de um galeão espanhol perto de Peniche, as experiências assombrosas que um frade desenvolve no Mosteiro de Alcobaça, e as peças do puzzle são tremendas, chegam ao Vaticano e tudo desagua numa estrepitosa cavalgada no espaço e num amor tão profundo que alguém anuncia dos céus o seu amor eterno.
Um excelente produto do realismo fantástico.

Um abraço do
Mário


O céu não pode esperar, por António Brito

Beja Santos

De António Brito já aqui se fez com detalhe a exaltação do seu livro "Olhos de Caçador"[1], seguramente um dos livros cimeiros da literatura da guerra colonial, romance baseado nas suas vivências africanas, em jovem alistou-se nas tropas paraquedistas e foi mobilizado para a guerra em Moçambique. O seu segundo romance aponta noutra direção, cimenta-se no realismo fantástico, organiza-se em repetidas viagens entre um determinado presente e um determinado passado, dispõe de um ritmo trepidante, empurra o leitor para acompanhar sem pausa esta aventura que não dá pausas, tal o seu empolgamento: “O céu não pode esperar”, por António Brito, Sextante Editora, 2009.

De que trata este romance? Façamos fé ao constante na contracapa:
“A história do Tenente Romão, o aviador que enfrenta a morte nos céus de Moçambique durante a guerra, quando o seu avião é atingido por um míssil terra-ar. Na costa Oriental de África tropeça no rasto de outro português, agente do rei de Portugal, que por ali passou séculos atrás. A descoberta arrasta-o do passado para o futuro, seguindo uma enigmática pista, anteriormente perseguida pela Inquisição. Envolve-se numa perigosa cruzada onde se entrelaçam o insólito e o inexplicável, a política de estado e as intrigas das organizações clandestinas, a procura do sagrado e o conhecimento profano. Descobre que o mesmo céu que percorreu de avião foi durante séculos alvo da curiosidade de outros homens com outros propósitos. Homens que, movidos pela força da fé e a curiosidade da razão, afrontam o fanatismo dos dogmas e a ordem estabelecida. Em "O céu não pode esperar", cruzam-se a ciência divina do Novo Mundo e o obscurantismo religioso, a Restauração da Independência de Portugal e a herança judaica, os inimigos da Revolução de Abril e a política da Santa Sé. Quando a admirável verdade irrompe, tudo faz sentido, tudo se harmoniza, até o censurável amor, coisa admirável de acontecer”.

Logo na abertura, António Brito dá-nos conta dos factos com que vai manipular este edifício da escrita: um Fiat atingido por um míssil Strela, em Outubro de 1972; o afundamento do galeão San Pedro de Alcantara, perto de Peniche, em 2 de Fevereiro de 1786, seguiam a bordo índios ligados à rebelião inca de Tupac Amaru; a ocupação espanhola de Portugal e a Guerra da Restauração; as perseguições da Inquisição que levaram à extinção dos judeus em Portugal e à perseguição de cientistas como Bartolomeu de Gusmão, construtor da Passarola; os crânios de cristal descobertos na América Central e na América do Sul, no interior destes cristais foram descobertas imagens holográficas a três dimensões; a construção, em 1993, pelo físico russo Eugene Podkletnov de um mecanismo antigravitacional que conseguia anular parcialmente a lei da gravidade e diminuir o peso dos corpos, enquanto um cientista francês desenvolvia um projeto de uma aeronave experimental com propulsão eletrocinética. Abreviadamente se dá conta desta trama avassaladora: o abate do avião do Tenente Romão, o afundamento do galeão espanhol e o auxílio prestado pelos monges do Mosteiro de Alcobaça; a cicatrização das feridas do Tenente Romão, que estava prisioneiro dos guerrilheiros, e que descobre numa gruta a seguinte inscrição: “Aqui chegou Fagundes Dias no ano de 1643 vindo de Jerusalém a cidade de Nosso Senhor, entrou na gruta e encontrou um pequeno cofre; no Mosteiro de Alcobaça fazem-se experiências e o índio Yupanki é envolvido numa intrigante construção; o documento guardado naquele cofre são umas folhas acastanhadas que falham de um naufrágio… Assim vamos saltando no tempo e no espaço, e é uma deslealdade tamanha usar o poder quase discricionário de esmiuçar minuciosamente a essência da trama da obra em análise, descurando que não se deve defraudar o leitor na vivência desse empolgamento, como é o caso.

Falou-se acima em realismo fantástico, tudo a propósito de uma narrativa que tem foros de plausibilidade com a especulação de hipóteses não demonstradas. O escritor elenca factos históricos ou possibilidades de ocorrência e dá-lhes um tratamento próximo do fantástico ou mesmo da ficção científica. António Brito revela-se um mestre nesta arte combinatória, urde uma história de bom entretenimento que merece a melhor atenção do leitor, vale a pena citá-lo numa prosa em que se vive uma odisseia no espaço:
“Estava a viver uma experiência extrema.
Ao alcançar os duzentos quilómetros acima da Terra, Romão sentiu-se astronauta lançada para o espaço sem plano de viagem. Não fazia ideia de onde estava nem do que viria a seguir. Sabia apenas que estava longe, muito longe de Alcobaça. Naquele momento, nas traseiras do Mosteiro, estariam a interrogar-se pela demora, por onde andaria com a borboleta-monarca. Pela vigia, perscrutava um infindável vazio. O negrume do espaço profundo contrastava com o azul que abraçava a Terra. Continuava a afastar-se dela, cada vez mais longe de casa. Tocava nos losangos de cristal que o fariam perder a altitude, mas a nave deixara de lhe obedecer. Movia-se apenas num sentido: para cima, sempre para cima.
Passou a marca dos quinhentos quilómetros, depois dos setecentos. Uma qualquer programação da borboleta de cristal não cessava de enviar instruções à máquina, levando-o para fora da Terra. A nave tinha vida própria, deixara de lhe obedecer. Na sua arrogância de piloto experiente, pensava conhecê-la, controlar o seu previsível comportamento, mas ela escapava-lhe das mãos. Nada do que aprendera na Academia da Força Aérea se aplicava aqui. Não era Romão que levava a nave, era a nave que o levava a ele. Para onde? Não sabia.
Por volta dos mil quilómetros, a subida cessou. A vertigem do voo transformou-se em quietude. Respirou fundo. Olhou preocupado o nível de oxigénio. Devia estar no mínimo, mas deixara de receber essa informação. Os instrumentos, exaustos pela louca corrida, tinham-se amotinado, cessado de dialogar com ele, mantinham-se imóveis, olhando sem reação para o piloto. Subitamente, sentiu-se inquieto e só. Enfiado no casulo de posto de pilotagem, sem espaço para se mover, passara a orbitar em redor da Terra, envolvido por um silêncio aterrador. Nada podia fazer. A realidade explodiu-lhe na cabeça. Ampliou-lhe a compreensão do momento.
Nunca mais voltaria a casa.
Olhou para fora, espantou-se com a soberba visão do Planeta Azul. Emocionado, compreendeu, por fim, porque incas, frades e navegadores quiseram ascender ao céu. Porque quiseram contemplar a criação de Deus”.

Nunca há bom romance se a história não for bem contada. Em O céu não pode esperar cumprem-se os melhores cânones: trepidação e uma grande história de aventura e amor. Não se pode pedir mais.
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Notas do editor:

{1] - Vd. postes: P14713; P14737; P14747 e 14766

Último poste da série de 24 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18246: Bibliografia de uma guerra (84): “Contra o Vento, Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)”, por Valentim Alexandre; Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2017 (3) (Mário Beja Santos)

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