sexta-feira, 23 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18449: Os nossos seres, saberes e lazeres (258): Uma viagem a Veneza (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)



1. Em mensagem do dia 19 de Março de 2018, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos um relato da sua viagem à Veneza.


VIAGEM A VENEZA

As grandes cidades com as suas paisagens arquitectónicas grandiosas formadas por praças, ruas, avenidas e ruelas típicas, os seus monumentos, jardins, palácios e igrejas catedrais, provocam-me uma grande emoção estética sobretudo ao primeiro impacto. Era ainda adolescente, um dia em que percorri a Baixa do Porto pela primeira vez, e senti uma exaltação, a par de um grande entusiasmo, que nunca esqueci.

Foi assim em Veneza, essa cidade monumental italiana, cidade anfíbia que parece ter nascido das águas do Adriático. Saímos cedo, eram sete horas, da estação central de Munique, manhã muito nublada, algo fria, com chuva intermitente, aborrecida, esparsa que nos irá acompanhar em toda a viagem de comboio, pela Baviera, Áustria e Itália para desembarcarmos, cerca das 14 horas, na estação de caminhos de ferro de Santa Lúcia em Veneza. Estamos em Itália, terra de muita música popular e clássica, de muitas canções que alegram o espírito, tal como a canção napolitana que parece ecoar nos meus ouvidos por ter o mesmo nome desta Estação de Comboios.

A poucos metros da estação, entramos num cais para apanhar um barco no Grande Canal, dessa grande baía do mar Adriático povoada de pequenas ilhas percorridas por muitos canais, onde foi construída esta cidade fluída, ao nível do mar e que com ele se mistura, se confunde e nele se reflecte. Depois de algumas paragens, desembarcamos no cais da Praça de S.Marcos, no centro histórico da cidade. Durante três dias iremos percorrer e admirar, já com bastante sol, estas ruas de água que ondulam suavemente, ruas e vielas de pedra dura perdidas numa emaranhado de pontes e canais. E a música de Vivaldi, que cai do céu como neve branca e suave ou nasce do bailar das águas inunda de luz a Praça de S. Marcos, a Basílica e o Palácio dos Doges. Hoje ao recordar essa viagem quase irreal, eu que amo a literatura e a música, mais do que as outras artes, sinto o "Adágio" in G Minor de Albinoni entrar-me nos ouvidos em toadas lentas, tal como alguns acordes das "Quatro Estações" de Vivaldi, um e outro compositores da cidade, ao ritmo das pequenas ondas que as marés criam nos canais de Veneza enquanto a nostalgia se instala no meu espírito com a melancolia deste dia húmido e nublado. A melancolia que se deixa misturar com sentimentos, memórias, sensações, é um estado de alma a que nos habituamos, que nos deixa suspensos entre a felicidade e a tristeza.

A Praça de S.Marcos é enorme e ampla, ladeada por edifícios nobres e clássicos onde se distingue pela beleza e elegância da sua arquitectura e escultura a Basílica de S. Marcos que tem algumas semelhanças com outras igrejas da antiga cidade de Constantinopla hoje Istambul. Toda a arquitectura da cidade parece sofrer duma forte influência do Levante que aliás lhe dá outra graça e leveza.



No Palácio dos Doges, o outro grande monumento que encima a Praça de S. Marcos, está personificado todo o poder e riqueza dessa República de comerciantes nobres e burgueses, que abre o seu interior em grandes salas que deslumbram o viajante pela beleza das suas tapeçarias, esculturas e pinturas. Nas salas, salões e gabinetes do Palácio dos Doges, estava concentrado todo o poder executivo, legislativo, judicial e não faltava sequer uma cadeia que funcionava na cave.

É sabido que Veneza dominou durante séculos o comércio entre o Oriente e o Ocidente e o seu poder e riqueza tiveram essa origem. Só os Portugueses a partir dos séculos XV e XVI com a descoberta do caminho marítimo para a Índia por Vasco da Gama, conseguiram alterar essa rota comercial para Lisboa, tendo Portugal beneficiado de algumas décadas de riqueza enquanto a República de Veneza definhava. Os Venezianos ao tempo chegaram a armar uma esquadra do mameluco do Egipto para combater a esquadra de Afonso de Albuquerque na Índia. Nessa batalha Afonso de Albuquerque derrotou os egípcios. O comércio com a Arábia, a Mongólia, China e a Índia, antes das grandes navegações era feito por terra, seguindo a rota da seda nas suas variantes, e o escritor, comerciante e aventureiro veneziano Marco Polo, dos séculos XIII e XIV, que durante longos anos por lá andou descreveu essas rotas e esse intercâmbio nas suas Viagens, num livro que teve um enorme êxito em toda a Europa. Os Portugueses ao dobrarem o Cabo da Boa Esperança, encurtaram as distâncias entre esses mundos e ajudaram a aproximar os continentes. Antes da exploração do espaço no século anterior pelos americanos e russos, os grandes exploradores da Terra foram eles, os nossos antepassados.

No Palácio dos Doges tivemos oportunidade de apreciar uma grande exposição de jóias e pedras preciosas raras, de uma beleza límpida e cintilante "Tesouros dos Mongóis e dos Marajás", que nos transportava ao tempo em que a cidade comerciava com esses nababos do Oriente.

Em terra firme, onde não há trânsito automóvel, nem de motociclos se bem me lembro, as ruas no geral são pouco largas, predominando as ruas estreitas, as vielas e chega a haver ruelas onde dois homens dificilmente se podem cruzar. Em certas zonas forma-se um tal labirinto de ruas, ruelas, canais e pontes que o viajante se sente perdido se não tiver como nós uma guia e interprete para nos levar a todas as partes com os seus conhecimentos e com a ajuda dos astros.

De cima do Campanário de S. Marcos, toda a cidade se mostra, plana, ao nível do mar, os edifícios no geral têm uma altura modesta de cidade antiga, com um ar decadente também pela acção erosiva da brisa marítima, onde se multiplicam e sobressaem pela sua altura os campanários e torres das igrejas. É uma visão magnífica e repousante que a cidade nos oferece para todos os horizontes e nos leva a reflectir sobre a beleza do seu conjunto e sobre os seus mais de mil anos de História.

Nós como os milhares de turistas que diariamente a visitam, fomos lá chamados pela fama dessa beleza única, porque Veneza encerrada na neblina do mar, na neblina da História e dos seus mitos, só revela a sua magia quando navegamos as suas águas e percorremos as suas calçadas.

Há as gondolas que singram pelos canais com a elegância de aves marítimas que dão um toque romântico a essa terra onde nasceu e se criou, talvez o homem mais romântico e amado pelas mulheres. Giacomo Casanova, o autor da "História da Minha Vida", escritor, aventureiro, libertino, culto, matemático, ficou sobretudo conhecido em toda a Europa como um grande sedutor, maior do que todas os D. Juans de que fala a literatura, que não existiram pois foram criados pela imaginação de escritores.
Foi um homem que no seu tempo, pela sua presença, pelas suas palavras e pelas suas qualidades intelectuais, exerceu uma grande atracção sobre as damas nobres e outras mais pobres de Veneza e outras cidades. Poderia ser padre, ainda andou a estudar para tal mas descobriu que a sua vocação era outra. Dizem, ele escreveu, que terá sido intimo de muitas mulheres e que terá sido fiel a todas pois nunca terá feito promessas que não pudesse cumprir.

Por causa das suas aventuras, a Sereníssima República de Veneza terá tido alguns tempos agitados. A sua vida. sem lei nem regras, de jogo, e de conquistas, perturbava os nobres e cardeais da cidade pelo que acabou por ser julgado e preso nos calabouços do Palácio dos Doges, donde conseguiu fugir, tendo ido para Paris, onde viveu alguns anos e também noutras cidades da Europa.

Os grandes sedutores, poucos e raros, são homens que apreciam muito as mulheres, as conhecem, adivinham os seus desejos e conhecem as leis do amor. As mulheres gostam deles mesmo quando os recusam porque elas sabem que não há outro homem que lhes dê tanto valor, que saiba olhar para elas com discrição, respeito e admiração e que lhes saiba falar mesmo sem falar de amor.

Veneza na nossa imaginação está também associada ao Carnaval e aos seus cortejos com trajes e máscaras elegantes que procuram retratar as festas carnavalescas da sua a nobreza antiga e rica. Há muitas lojas na cidade a vender esses adereços que fazem parte da indústria turística.

Por toda a Terra é quase inevitável que os portugueses em turismo ou trabalho se cruzem com outros e quando isso acontece há sempre alguma conversa em que identificamos as origens e quando nos despedimos e já com emoção e saudades da Pátria. Portugueses eram dois, uma jovem senhora e um homem ainda mais jovem, técnicos dum serviço social, ao serviço da Comunidade Europeia, jantavam com dois jovens, ele italiano e ela polaca, do mesmo serviço. Sentamo-nos, por acaso, em mesas contíguas e nós ou eles ouvimos falar a nossa língua e estabeleceu-se logo um diálogo animado que terá durado quase uma hora.
Como bons portugueses, sentimentais, o adeus foi com beijos e abraços.



Procuro partilhar convosco meus amigos mais uma viagem da minha vida que me despertou os sentidos e as melhores emoções e ficará no álbum das minhas recordações para sempre.
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Notas do editor

Último poste de Francisco Baptista de 7 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18294: Brunhoso há 50 anos (13): Viagens de comboio ao Porto (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Último poste da série de 17 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18428: Os nossos seres, saberes e lazeres (257): Em Bruxelas, para comemorar 40 anos de uma amizade (7) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

José Botelho Colaço disse...

Resumindo: O amigo Francisco Baptista com os seus conhecimentos e a forma que ele tem de transpor para o papel aquilo que ele concentra no seu todo, faz que seja companheiro de viagem a ver os encantos de Veneza, ouvindo a musica de Vivaldi. Obrigado Baptista um abraço.

Antº Rosinha disse...

Aquela dos venezianos mandarem os egípcios contra Afonso de Albuquerque...já nesse tempo era sempre tudo contra a gente.

Mas olha com quem se meteram.

E se fossem muçulmanos, que seria o mais provável, Albuquerque até toucinho os obrigava a manjar.