terça-feira, 15 de maio de 2018

Guiné 61/74 - P18635: Lembrete (29): Lançamento do livro de Mário Beja Santos, "Um Escafandrista nas Nuvens", Âncora Editora, amanhã, dia 16 de Maio, pelas 18 horas, no Auditório da Sociedade Portuguesa de Autores, em Lisboa

L E M B R E T E



CONVITE À TERTÚLIA DA TABANCA GRANDE

LANÇAMENTO DO LIVRO DE MÁRIO BEJA SANTOS, "UM ESCAFANDRISTA NAS NUVENS", AMANHÃ, DIA 16 DE MAIO DE 2018, PELAS 18 HORAS, NO AUDITÓRIO DA SOCIEDADE PORTUGUESA DE AUTORES, AV. DUQUE DE LOULÉ, LISBOA. 
APRESENTADOR, JOSÉ JORGE LETRIA.

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"UM ALMOÇO COM OS BRAVOS DO PELOTÃO"


Na véspera, elaborara o menu, fizera compras e agora lança-se ao trabalho. Uma sopa simples, como sempre frita a cebola, esquarteja e esfarripa couves e brócolos e um alho francês, junta umas ervilhas, enfiou as batatas aos gomos, salgou e apimentou, meteu um cubo para dar gosto e muito alho, como sempre ajuntou coentros. Quem diz comida para guineenses diz arroz, fê-lo com cenoura aos bocadinhos e meteu umas ervilhas. Quem recebe guineenses tem que saber várias coisas: os muçulmanos bebem água ou sumo, os animistas ou cristãos não dispensam um copázio de vinho, ou vários, e não há prato mais apreciado que bacalhau, cozido ou na brasa, à Zé do Pipo, em cebolada, a nadar em azeite. Berto decidiu-se por uma açorda de bacalhau, tinha pão alentejano, preparou tudo a preceito. Pedira encarecidamente a todos que se juntassem no largo da igreja de S. Domingos, e que tomassem o metro do Rossio, pedia para virem juntos, para terem a comida quentinha, preparou ainda uma salada de frutas e havia depois uma tisana com bolo da Madeira.

Este almoço estava aprazado desde há meses atrás, ao tempo em que lhe fora diagnosticado o cancro, Berto convidou o seu amigo Suleimane Djaló, antigo soldado, para almoçarem e explicou-lhe que tinha uma doença grave e que podia morrer, havia ali em casa um conjunto de objetos relacionados com a Guiné que ele queria oferecer a quem com ele combatera, coisas com valor sentimental. Aquele Futa-Fula calmeirão de cabelo pintado ouvira-o silenciosamente, só interrompendo, quando Berto falava em poder morrer para dizer que Deus era grande e que nós, os homens, nada sabíamos sobre a Sua inescrutável misericórdia. E mais disse a Suleimane que tinha preparado um documento que ficava em poder dos filhos para distribuir pequenas importâncias para os mais necessitados. Vivia, por um lado, tranquilo, com aqueles que dispunham de pensões por deficiência, ao serviço das Forças Armadas, havia outros que beneficiavam de segurança social, tinham obtido a nacionalidade portuguesa, mas havia um ou dois casos que o inquietavam muito, sentia que o estado de saúde do seu antigo guarda-costas, Inderissa Mané, se estava a deteriorar e que Dauda Seidi, depois de dois graves acidentes cardiovasculares precisava de muito apoio. Em suma, desejava estar com todos aqueles que com ele combateram, mais Dauda Seidi que conhecera em criança e que acompanhava tão fraternalmente desde que ele decidira fixar-se em Portugal, fora professor primário, a pretexto de uma formação em Setúbal foi-se deixando ficar, trabalhou arduamente na construção civil, foi explorado por patrões inescrupulosos que lhe retiraram dinheiro para a segurança social, Dauda veio a descobrir, quase 20 anos depois que não existiam os seus descontos, eram um ilustre desconhecido, uma infâmia que se praticava com muita gente.
(…)
Pouco passava da uma da tarde quando soou a campainha e Berto foi feliz abrir-lhes a porta, saiu para o patamar, gostava de os ver a subir, uns mais lestos outros a acusar a idade e a dificuldade das próteses. Como sempre, abraçou-os com carinho, a uns dava mesmo beijos, àquele que ele conhecera em criança, ao seu guarda-costas que sofrera horrores nas prisões guineenses, ele que fora um simples soldado comando, e a Suleimane, a quem devia talvez a vida. O que talvez importa esclarecer o leitor.

Sentam-se e começa a algazarra, a barulheira com o sorver da sopa, as manápulas em direção ao cesto do pão, comentários com a boca cheia, para Berto há pouco contentamento maior do que este, olha enternecido para esta velhada com quem ele conviveu diariamente por mais de dois anos todos os dias, que passaram as maiores agruras finda a guerra, que viviam com as maiores dificuldades e sempre a ajudar as famílias, Berto vai fazendo perguntas a cada um, há os filhos e há os netos, há mesmo divórcios, caso de Ieró Baldé que veio para Portugal e comprou uma mulher nova em folha, anos depois, e já com três filhos, tudo deu para o torto, Cumba anunciou que não queria viver mais com Ieró, este pediu a interceção do nosso alferes, nosso alferes foi a Chelas J, viagem proveitosa para se aperceber que o mundo mudara, que uma mulher guineense, a trabalhar a dias ou em supermercados, convivendo com outra gente sacrificada mas com sonhos e ambições, a mentalidade evoluíra, era o caso de Cumba que lhe dizia sem papas na língua que não aceitava viver com aquele velho, mesmo sendo bom homem, conhecera alguém que amava, já dera conhecimento aos filhos da sua decisão, queria ser feliz.
(…)
Naquela mole humana sentada na mesa da varanda, Mamadú Camará olha-o de forma perscrutante, vai começar o jogo de perguntas e respostas sobre a sua família que vive em Belfast. Mamadú Camará de há muito que vive em Portugal, em 1972, numa operação dos Comandos em Salancaur, foi atingido num calcanhar, andou anos na cirurgia a tentar uma reconstituição, todo falhou, acabaram por lhe amputar o pé, ficou deficiente das Forças Armadas. Arranjou uma relação estranhíssima com uma cabo-verdiana que tinha morto o primeiro marido com um facalhão do talho, juntaram-se quando ela saiu do presídio, já havia dois meninos do primeiro casamento apareceram depois mais três. Segundo Mamadú, o casamento foi um inferno, o valoroso Comando aceitou encarregar-se da educação dos cinco filhos, os seus e os de Filomena Cardoso Évora. Então não é que três daqueles filhos casaram com irlandeses e vivem na região de Belfast? É com prazer que Mamadú passa a comandar a conversa, todos o ouvem com atenção, os muçulmanos arrepiados com este Fula traidor que lambe a beiça a comer ovos com bacon, quase todos os dias, que gosta de uísque e frequenta pubs. Mamadú não veste como os outros combatentes, traja fato completo, com colete, sempre bem engravatado, é um gigante que claudica um pouco, devido à prótese, mas que lhe dá um andar distinto, ele tem consciência de que traz à conversa uma abertura sobre o mundo, a Irlanda é mar ignoto na vida destes guineenses agrilhoados pelo destino, conhecem pouco de Portugal, em tempos idos da juventude chegaram a visitar o Senegal, a Guiné-Conacri, a Gâmbia ou até o Mali, com a guerra tudo mudou, embora nas conversas se fale naqueles que emigraram e que procuram melhorar as suas vidas no Senegal.

Caminha-se para o meio da tarde, há quem já olhe para o relógio, Berto sugere que passem ao seu escritório, quer mostrar-lhes aqueles papéis, dar-lhes um destino especial. Algo que jamais esquecerá é quando entrega a Dauda o mapa da região do Cuor, andava sempre com ele dentro de um revestimento de plástico, dentro de um bolso na coxa do camuflado, aquele é o chão de Dauda, para um guineense o chão é sagrado, dali se parte e ali é imperioso regressar, deve-se ajudar a família que vive no chão, lembrar os mortos que estão no cemitério, o chão é uma condicionante para toda a vida, e ter agora aquele mapa com nomes de localidades que jamais existirão mas que fizeram a grandeza do Cuor, é motivo para deixar Dauda emudecido pela forte emoção. Entregam-se os outros bens, coisas que Berto trouxe da Guiné em 1970 e que devem ficar em mãos guineenses, pois claro. Promete-se novo encontro em breve, todos sabem que faz parte da encenação, se tudo correr bem vão encontrar-se daqui a alguns anos. Em caso algum os bravos do pelotão de nosso alferes conhecem a doença de Berto, só Suleimane é que está na posse do segredo daquele cancro, nesta hora, segundo diz o médico, altamente controlado, por isso nunca se falou da visita da morte, cada um deles leva cartas para entregar, abraçam-se, e Berto fica seraficamente a vê-los partir, ouve-se um rumorejo de crioulo, é o suficiente para ele retornar à Guiné, uma das chaves elementares da sua existência. Então, qualquer dia estaremos novamente juntos, fecha a porta e sente-se cheio de saudades daquele chão onde viveu tão intensamente, daqueles cheiros penetrantes, daquele solo arenoso que se lhe colava a todas as células do corpo, daquele sol ofuscante, daquelas gentes com quem viveu dentro do arame farpado. “Não queria morrer sem voltar à Guiné”, diz para si próprio, não sabe se é promessa ou se faz parte da oração diária, da dádiva de estar vivo e intensamente lembrado dos códigos da camaradagem de guerra, que nunca se desfazem.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17969: Lembrete (28): Para os camaradas da 23ª hora: termina à meia-noite o prazo de inscrição para o 34º almoço-convívio, em Algés, da Magnífica Tabanca da Linha... O vice-régulo Manuel Resende estava audivelmente feliz, ao telefone, há um bocado: com 72 inscrições, ía-se entrar para o livro dos recordes do Guiness!... Atenção, malta, que o cabrito do "Caravela de Ouro" é da Serra, certificado, não é o "cabrito pé de rocha, manga di sabi" que alguns de nós comemos, em sandocha, no mercado de Bandim...

3 comentários:

Cherno Baldé disse...

Caro amigo Mario Beja Santos,

Li e gostei imenso deste pequeno naco de prosa com odor africano e da nossa Guiné em pequenos pormenores que mostram quao profundo é o amor e o conhecimento acumulado sobre a realidade e a cultura dos Guineenses.

Nao sei se ainda vamos a tempo, mas convinha mudar aquela expressao a meio do texto onde diz Caro amigo Mario Beja Santos,

Li e gostei imenso deste pequeno naco de prosa com odor africano e da nossa Guiné em pequenos pormenores que mostram quao profundo é o amor e o conhecimento acumulado sobre a realidade e a cultura dos Guineenses.

Nao sei se ainda vamos a tempo, mas convinha mudar aquela expressao onde diz: "...caso de Ieró Baldé que veio para Portugal e comprou uma mulher nova em folha...".

Na verdade, nao se trata de compra nenhuma, na Guiné, apesar das aparencias e situaçoes que podem induzir a isso, nunca se vendeu e nao se compram mulheres. Esta linguagem nao é correcta e convinha que os ex-combatentes, mesmo nao sendo estudiosos de Antropologia ou Sociologia, pudessem deixar de utilizer, por ser ofensiva e injusta para os Guineenses e africanos em geral. A prova mais evidente desse equivoco esta mesmo no texto quando se diz que, a mulher (a Cumba) depois se separou (de Iero Baldé) logo que ganhou coragem e autonomia, caso fosse comprada, isso nao seria possivel.

Outra coisa a corrigir é o nome de Idrissa que no texto diz Iderissa, de acordo com uma certa pronuncia mandinga. Este nome é de origem arabe, Idriss.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

Antº Rosinha disse...

Ai se Spínola soubesse línguas guineenses...não tinha sofrido tantos desgostos, nem tantas surpresas.

O mesmo se pode aplicar a Amílcar e Luís Cabral.

E a mim também, evidentemente, mas eu não conto.

António J. P. Costa disse...

Boa Noite Camaradas
Estive lá e foi bestial!...
Esteve badaladíssimo!.
Obrigado
António J. P. Costa