Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 14 de maio de 2018
Guiné 61/74 - P18631: Notas de leitura (1066): “Tatuagens da Guerra da Guiné”, pelo Capitão Luís Riquito; Guerra e Paz Editores, 2018 (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Maio de 2018:
Queridos amigos,
O então Capitão Luís Riquito desembarcou em Bissau em 1965, andou a afeiçoar a sua CCaç 816 em territórios de inequívoca dureza, entre Bissorã e Olossato, e meses depois, quando o Olossato estava no centro do furacão, coube-lhe construir e reconstruir em Olossato, Ponte Maqué, desobstruir estradas e abrir caminho, ao tempo tão intimidativo, para a base do Morés.
Para surpresa de muitos leitores, aparece em relatos em que os grupos de combate se afoitam pela floresta e tratam gente que vive sob o controlo remoto da base do Morés e grupos incidentes. Foram reagrupados e de um modo geral não voltaram a fugir para o mato.
Um relato um tanto formal onde não se escondem dolorosas e também dulcificantes situações naquele contexto tão áspero em que o PAIGC firmava posições e era crucial afronta-lo, no dia-a-dia.
Um abraço do
Mário
Nas terras do Oio, entre 1965 e 1966
Beja Santos
“Tatuagens da Guerra da Guiné”, pelo Capitão Luís Riquito, Guerra e Paz Editores, 2018, é um relato memorial de quem comandou a CCaç 816, que desembarcou em 26 de maio de 1965, o narrador dá pelo nome do Capitão Fernando Gonçalves, usa a terceira pessoa do singular e centra o essencial do seu registo em terras do Oio, mais concretamente Mansoa, Bissorã e Olossato. Para quem desconhece aquela floresta densa e fechada, o narrador fala-nos de várias campanhas de pacificação e dos seus povos. É informado das bases do PAIGC espalhadas pelo Oio: Morés, Iracunda, Cai, Cansambo, Cambajo (quatro bases de segurança periférica da base central), e de Maqué, de Biambi, de Queré e de Rua, bases regionais vocacionadas para o apoio logístico e o controlo das populações.
É uma peça de literatura memorial que obedece à estrutura de um relatório desdobrado em itens. Depois do que ele denomina treino operacional, esta Companhia independente chega em finais de setembro de 1965. Descreve o subsetor do Olossato e as missões de que está incumbida a sua Companhia. Era tudo trabalhoso e tanto, as forças do PAIGC não davam descanso: frequentes emboscadas às colunas da estrada para o Olossato; a estrada para Farim estava interdita, fora limpa e aberta em julho de 1965, não deixou de haver violência; destruição em 3 de agosto de 1965 da ponte de Maqué, onde foram implantadas minas antipessoal; abatises na estrada entre Mansoa e Bissorã, foram removidos; ataque à guarnição de Olossato, em 15 de agosto de 1965, e muito mais. Havia que reabilitar e construir infraestruturas, procurar e acolher populações transmalhadas, gerar boa convivência, patrulhar, intervir em operações, assistir e abastecer as populações dentro das suas tabancas. E tudo se descreve: a destruição de uma serração, um ponto estratégico onde as forças do PAIGC atacavam quem partia ou chegava ao Olossato; o diálogo com os Muçulmanos. E é dentro desta formalidade descritiva, um tanto seca e rígida, que surge um episódio emocionante, uma memória de Bacar Queba, este diligentíssimo combatente é atingido por uma mina, levado para a enfermaria, ficara cego, quer falar com o Capitão, e este regista a conversa pungente e transmite-nos uma dor universal:
- Esta mina era mesmo muito perigosa, Bacar, e tu conseguiste safar-te, pá. Aquela era para limpar quem apanhasse e tu safaste-te. Tiveste mesmo muita sorte, Bacar. Sabes como foi e como podia ter sido, pá! Dentro deste azar, tu sabes que tiveste muita sorte por continuares aqui a falar comigo e tens todos os teus amigos da OITO16 a rezar por ti, para que fiques bem e continuares a trabalhar por esta tua gente. Uma vez que chegaste aqui, o nosso furriel está a preparar tudo para seres transferido para o Hospital de Bissau e os médicos podem resolver e recuperar a tua vista, percebes?
- Pois é, Capitão, mas eu estou aqui sozinho mesmo, pá, e o que eu quero mesmo, mesmo, é voltar para aí! Para sentir isso aí fora, percebes Capitão? Dá cá a tua mão, para eu sentir outra vez isso aí fora, pá!
O Capitão estendeu a mão direita a Bacar que, ao segurar, a apertou com força, num cumprimento de esperança, de camaradagem e de amizade correspondida, e desabafou:
- Agora já sinto, Capitão, já sinto isso aí fora onde tu estás e estou a ver-te, mas eu estou longe, pá; mas agora assim estou melhor, já sei onde estou e a lembrar com quem estou a falar, sabes. Parece que voltei, Capitão, já sinto mesmo, pá.
Há um aspeto que seguramente emocionará o leitor, a integração das populações espalhadas pelo mato que em sucessivas ações os homens da CCaç 816 vão ao contacto, e trazem quase sempre com sucesso gente que é forçada a cultivar e a alimentar as forças do PAIGC. Um conjunto de descrições que deverá doravante merecer a atenção dos historiadores para situar naquele tempo ainda fortes debilidades no controlo remoto exercido por Morés sobre populações que viviam foram da base.
A batalha de Maqué, expressão usada pelo autor para esmiuçar todo o trabalho desenvolvido para beneficiar o destacamento e garantir a segurança da ponte de Maqué, não deixando de referir que para além destas reconstruções, a CCaç 816 foi envolvida num conjunto apreciável de operações, patrulhamentos, emboscadas a que não faltaram duros confrontos, abrindo-se caminho para ir mais destemidamente até ao núcleo central do Morés.
Luís Riquito muniu-se de informação sobre as campanhas de pacificação, leu René Pélissier, Luís Cabral, Amílcar Cabral, seguramente que guardou arquivo de todas as atividades da CCaç 816, a não ser todo este arquivo não nos poderia dar com tal grau de minúcia as intervenções no Oio e no Morés. E destaca aquela coroa de glória que foi a Operação Castor, onde intervieram a CCaç 816 com um grupo de combate da CCAÇ 1418 e Caçadores Nativos do Olossato, saíram do Olossato em 19 de fevereiro de 1966 e apanharam muitíssimo material e algumas emboscadas pelo caminho.
Em 27 de julho de 1966 a CCaç 816 deixa o Olossato e vai para Mansoa, passa a intervenção e fica-se igualmente com um relato das operações por onde andaram. A memória detalhada do Capitão Luís Riquito culmina com um grande desastre ocorrido no quartel novo de Mansoa, o Capitão procurou evitar mais graves danos humanos e materiais, houve para ali um forte litígio verbal e não-verbal com um camarada de armas.
O documento termina com a orgânica da CCaç 816, os seus mortos e feridos e louvores.
Uma peça a considerar para o estudo da guerra da Guiné na zona crucial de Morés, entre 1965 e 1966.
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Nota do editor
Último poste da série de 11 de maio de 2018 > Guiné 61/74 - P18622: Notas de leitura (1065): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (34) (Mário Beja Santos)
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2 comentários:
Na referência de Beja Santos à CASTOR, operação em que participei, tenho a certeza de que há dois erros:
1º. - Nesta operação foi a minha CCaç. 1419 (não a CCaç. 1418) quem acompanhou a CArt. 816.
2º. - É verdade que só participou com um Grupo de Combate no assalto ao objectivo mas a outra parte da CCaç. 1419 ficou em apoio, perto, aguardando o desfecho da acção. Por isso toda a Companhia esteve envolvida neste ataque a Morés, nomeadamente a um seu armazém de material de guerra.
Sabia-se que, se tudo corresse bem, poderia haver captura de muito material de guerra, o que sucedeu. Foi este apoio que permitiu juntar todo o material recolhido num lugar que proporcionasse alguma segurança para a sua evacuação por helicópteros. Esta evacuação só parou quando o IN deu sinal da sua presença mas, então, já muito material (todas as armas e munições, p. ex.) tinha sido recolhido pelos helis. O restante material capturado foi carregado "às costas" e assim levado para o Olossato. É preciso dizer que o IN foi apanhado totalmente de surpresa e só muito tarde deu pelo desenrolar da acção, penso que alertado pelo ruído dos helicópteros.
Uns bons minutos depois de se iniciar o regresso ao Olossato, fomos surpreendidos por uma forte emboscada da qual, surpreendentemente, só tivemos alguns feridos ligeiros.
Para confirmar o que acima disse quanto à participação da minha CCaç. 1419 transcrevo parte de uma carta por mim enviada à namorada, com data de 17/Março/1966, e onde escrevo sobre a emboscada referida acima.
Fui apanhado no meio da estrada, carregado com um grande saco cheio de carregadores vazios. Deitado no chão com o saco à frente, a certa altura levantei a cabeça e vi, mesmo à frente do saco, a terra a saltar do chão picada pelas balas. Nunca mais esqueci o formigueiro sentido desde o buraco traseiro até à cabeça. Só me restou "afocinhar" outra vez e clamar pela minha Mãezinha.
Eis a transcrição:
"Olha lá, não ouviste aí falar, na rádio ou nos jornais, numa grande operação militar realizada aqui e em que tivemos um êxito enorme? Foi na noite de 19 para 20 de Fevereiro. O teu Manelito lá andou. Vi-me tão atrapalhado nesse dia que até gritei pela minha Mãezinha e por ti. Não te rias! É verdade! Um "sacana" estava mesmo a atirar-me para cima. As balas picavam o chão à minha volta e só estava à espera de sentir uma pelo corpo dentro. Mas saí incólume. Éramos perto de 250 homens e só tivemos quatro feridos. Capturámos muito material de guerra. Só cartuchos foram 100.000. As fotografias do material capturado deveriam ter circulado pelos jornais e TV. Não viste?"
Manuel Joaquim
Fur. mil. CCaç.1419
Caro amigo Manuel Joaquim quando se escreve tomando como base real as publicações de René Pelissier ou outras de quem nunca esteve no local por vezes surgem estes dados onde não liga a bota com a perdigota. Também já tive um problema parecido onde alguém por ter um certo dom na escrita e não aprofundou a pesquisa,trocava a minha companhia caç.557 pela comp. de caç. 556 a 556 cumpriu a sua comissão em Portugole e Enxalé a 556 nunca e esteve na zona de tombalY, outras vezes com a comp. de cav. 488 esta sim estiveram as duas na Ilha do Como na operação tridente mas 488 em Cauane e Caiar e a C,caç 557 no Cachil. Devido a estas trocas deu origem ao P3287 controvérsias da minha autoria e responsabilidade. Um abraço.
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