Foto (e legenda): © José Claudino da Silva (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Continuação da pré-publicação do próximo livro (na versão manuscrita, "Em Nome da Pátria") do nosso camarada José Claudino Silva [foto atual à esquerda] (*):
(i) nasceu em Penafiel, em 1950, "de pai incógnito" (como se dizia na época e infelizmente se continua a dizer, nos dias de hoje), tendo sido criado pela avó materna;
(ii) trabalhou e viveu em Amarante, residindo hoje na Lixa, Felgueiras, onde é vizinho do nosso grã-tabanqueiro, o padre Mário da Lixa, ex-capelão em Mansoa (1967/68), com quem, de resto, tem colaborado em iniciativas culturais, no Barracão da Cultura;
(iii) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado; completou o 12.º ano de escolaridade; foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);
(iv) tem página no Facebook; é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.
2. Sinopse dos postes anteriores:
(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;
(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da dos percursos de "turismo sexual"... da Via Norte à Rua Escura;
(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);
(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;
(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau, e fica lá mais uns tempos para um tirar um curso de especialista em Berliet;
(vi) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM para Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos' (ou vê-cê-cês), os 'Capicuas", da CART 2772;
(vii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;
(viii) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";
(ix) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";
(x) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...
(xi) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda; e ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerograma as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.
(xii) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;
(xiii) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1.º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.
(xiv) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);
(xv) começa a colaborar no jornal da unidade, os "Serrotes" (dirigido pelo alf mil Jorge Pinto, nosso grã-tabanqueiro), e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras dúvidas sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, as pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo;
(xvi) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. cap.º 34.º, já publicado noutro poste); como responsável pelos reabastecimentos, a sua preocupação é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco;
(xvii) dá a notícia à namorada da morte de Amílcar Cabral (que foi em 20 de janeiro de 1973 na Guiné-Conacri e não no Senegal); passa a haver cinema em Fulacunda: manda uma encomenda postal de 6,5 kg à namorada;
(xviii) em 24 de fevereiro de 1973, dois dias antes do Festival da Canção da RTP, a companhia faz uma operação de 16 horas, capturando três homens e duas Kalashnikov, na tabanca de Farnan.
(xix) é-lhe diagnosticada uma úlcera no estômago que, só muito mais tarde, será devidamente tratada; e escreve sobre a população local, tendo dificuldade em distinguir os balantas dos biafadas;
(iii) tem orgulho na sua profissão: bate-chapas, agora reformado; completou o 12.º ano de escolaridade; foi um "homem que se fez a si próprio", sendo já autor de dois livros, publicados (um de poesia e outro de ficção);
(iv) tem página no Facebook; é membro n.º 756 da nossa Tabanca Grande.
2. Sinopse dos postes anteriores:
(i) foi à inspeção em 27 de junho de 1970, e começou a fazer a recruta, no dia 3 de janeiro de 1972, no CICA 1 [Centro de Instrução de Condutores Auto-rodas], no Porto, junto ao palácio de Cristal;
(ii) escreveu a sua primeira carta em 4 de janeiro de 1972, na recruta, no Porto; foi guia ocasional, para os camaradas que vinham de fora e queriam conhecer a cidade, da dos percursos de "turismo sexual"... da Via Norte à Rua Escura;
(iii) passou pelo Regimento de Cavalaria 6, depois da recruta; promovido a 1.º cabo condutor autorrodas, será colocado em Penafiel, e daqui é mobilizado para a Guiné, fazendo parte da 3.ª CART / BART 6250 (Fulacunda, 1972/74);
(iv) chegada à Bissalanca, em 26/6/1972, a bordo de um Boeing dos TAM - Transportes Aéreos Militares; faz a IAO no quartel do Cumeré;
(v) no dia 2 de julho de 1972, domingo, tem licença para ir visitar Bissau, e fica lá mais uns tempos para um tirar um curso de especialista em Berliet;
(vi) um mês depois, parte para Bolama onde se junta aos seus camaradas companhia; partida em duas LDM para Fulacunda; são "praxados" pelos 'velhinhos' (ou vê-cê-cês), os 'Capicuas", da CART 2772;
(vii) faz a primeira coluna auto até à foz do Rio Fulacunda, onde de 15 em 15 dias a companhia era abastecida por LDM ou LDP; escreve e lê as cartas e os aerogramas de muitos dos seus camaradas analfabetos;
(viii) é "promovido" pelo 1.º sargento a cabo dos reabastecimentos, o que lhe dá alguns pequenos privilégio como o de aprender a datilografar... e a "ter jipe";
(ix) a 'herança' dos 'velhinhos' da CART 2772, "Os Capicuas", que deixam Fulacunda; o Dino partilha um quarto de 3 x 2 m, com mais 3 camaradas, "Os Mórmones de Fulacunda";
(x) Dino, o "cabo de reabastecimentos", o "dono da loja", tem que aprender a lidar com as "diferenças de estatuto", resultantes da hierarquia militar: todos eram clientes da "loja", e todos eram iguais, mas uns mais iguais do que outros, por causa das "divisas"... e dos "galões"...
(xi) faz contas à vida e ao "patacão", de modo a poder casar-se logo que passe à peluda; e ao fim de três meses, está a escrever 30/40 cartas e aerograma as por mês; inicialmente eram 80/100; e descobre o sentido (e a importância) da camaradagem em tempo de guerra.
(xii) como "responsável" pelo reabastecimento não quer que falte a cerveja ao pessoal: em outubro de 1972, o consumo (quinzenal) era já de 6 mil garrafas; ouve dizer, pela primeira vez, na rádio clandestina, que éramos todos colonialistas e que o governo português era fascista; sente-se chocado;
(xiii) fica revoltado por o seu camarada responsável pela cantina, e como ele 1.º cabo condutor auto, ter apanhado 10 dias de detenção por uma questão de "lana caprina": é o primeiro castigo no mato...; por outro lado, apanha o paludismo, perde 7 quilos, tem 41 graus de febre, conhece a solidariedade dos camaradas e está grato à competência e desvelo do pessoal de saúde da companhia.
(xiv) em 8/11/1972 festejava-se o Ramadão em Fulacunda e no resto do mundo muçulmano; entretanto, a companhia apanha a primeira arma ao IN, uma PPSH, a famosa "costureirinha" (, o seu matraquear fazia lembrar uma máquina de costura);
(xv) começa a colaborar no jornal da unidade, os "Serrotes" (dirigido pelo alf mil Jorge Pinto, nosso grã-tabanqueiro), e é incentivado a prosseguir os seus estudos; surgem as primeiras dúvidas sobre o amor da sua Mely [Maria Amélia], com quem faz, no entanto, as pazes antes do Natal; confidencia-nos, através das cartas à Mely as pequenas besteiras que ele e os seus amigos (como o Zé Leal de Vila das Aves) vão fazendo;
(xvi) chega ao fim o ano de 1972; mas antes disso houve a festa do Natal (vd. cap.º 34.º, já publicado noutro poste); como responsável pelos reabastecimentos, a sua preocupação é ter bebidas frescas, em quantidade, para a malta que regressa do mato, mas o "patacão", ontem como hoje, era sempre pouco;
(xvii) dá a notícia à namorada da morte de Amílcar Cabral (que foi em 20 de janeiro de 1973 na Guiné-Conacri e não no Senegal); passa a haver cinema em Fulacunda: manda uma encomenda postal de 6,5 kg à namorada;
(xviii) em 24 de fevereiro de 1973, dois dias antes do Festival da Canção da RTP, a companhia faz uma operação de 16 horas, capturando três homens e duas Kalashnikov, na tabanca de Farnan.
(xix) é-lhe diagnosticada uma úlcera no estômago que, só muito mais tarde, será devidamente tratada; e escreve sobre a população local, tendo dificuldade em distinguir os balantas dos biafadas;
(xx) em 20/3/1973, escreve à namorada sobre o Fanado feminino, mas mistura este ritual de passagem com a religião muçulmana, o que é incorreto; de resto, a festa do fanado era um mistério, para a grande maioria dos "tugas" e na época as autoridades portuguesas não se metiam neste domínio da esfera privada; só hoje a Mutilação Genital Feminina passou a a ser uma "prática cultural" criminalizada.
(xxi) depois das primeiras aeronaves abatidas pelos Strela, o autor começa a constatar que as avionetas com o correio começam a ser mais espaçadas;
(xxii) o primeiro ferido em combate, um furriel que levou um tiro nas costas, e que foi helievacuado, em 13 de abril de 1973, o que prova que a nossa aviação continuou a voar depois de 25 de março de 1973, em que foi abatido o primeiro Fiat G-91 por um Strela;
(xxiii) vai haver uma estrada alcatroada de Fulacunda a Gampará; e Fulacunda passa a ter artilharia (obus 14); e o autor faz 23 anos em 19 de maio de 1973; a 21, sai para Bissau, para ir de férias à Metrópole; um grupo de 10 camaradas alugam uma avioneta, civil, que fica por um conto e oitocentos escudos [equivalente hoje a 375,20 €];
(xxiv) considerações sobre o clima, as chuvas; em 19/5/1973, faz 23 anos... e vem de férias à Metrópole, com regresso marcado para o início de julho de 1973: regista com agrado o facto de o pai, biológico, ter trazido a sua tia e a sua avó ao aeroporto de Pedras Rubras para se despedirem dele;
(xxv) vê, pela primeira vez. enfermeiras, brancas, paraquedistas; apercebe-se igualmente guerra psicológica; queixa-se de a namorada não receber o correio; mada um texto para o jornal "O Século" que decide fazer circular pelo quartel e onde apela a uma maior união do pessoal da companhia, com críticas implícitas ao capitão Serrote por quem não morre de amores: na sequência disso, sente-se "perseguido" pelo seu comandante...
(xxvi) vai de baixa médica para Bissau, mas não tem lugar no HM 241; passa o Natal de 73 e o Ano Novo de 1974 nos Adidos; conhece a "boite" Chez Toi onde vê atuar alguns elementos do grupo musical Pop Five Music Incoporated, a cumprir o serviço militar na Guiné.
3. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 63 e 64
[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]
63º Capítulo > Natal e Passagem de Ano 1973
Adoeci e fui evacuado para o hospital, em Bissau. Não havia camas vagas na enfermaria e fui parar ao quartel dos Adidos, medicado com meia dúzia de comprimidos e um xarope. Não informei nenhum familiar, nem escrevi a ninguém sobre o meu estado de saúde. O meu mapa ficou em branco durante três semanas.
Apenas tenho comigo uma foto da noite de Natal de 1973 para provar que a passei nesse local. Embora não goste, vou contar de memória, e muito resumidamente, o que se passou na noite de Natal.
Os únicos soldados estranhos à unidade que estavam nos Adidos eram eu e mais cinco colegas. Falhara o nosso regresso a Fulacunda que devia acontecer antes do Natal, por falta de transporte. Não sabendo que não iríamos regressar ao quartel, eu e os meus colegas gastámos o dinheiro quase todo na boémia, em Bissau.
Orgulho-me do que fiz nessa época, juntamente com um sargento que nunca conhecera antes. Alugámos um táxi e fomos ao quartel-general, onde o cabo cozinheiro que ficou a substituir o meu amigo Castro nos arranjou batatas, bacalhau, grão-de-bico, ovos e me emprestou mil escudos.
3. Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capºs 63 e 64
[O autor faz questão de não corrigir os excertos que transcreve, das cartas e aerogramas que começou a escrever na tropa e depois no CTIG à sua futura esposa. E muito menos fazer autocensura 'a posterior', de acordo com o 'politicamente correto'... Esses excertos vêm a negrito. O livro, que tinha originalmente como título "Em Nome da Pátria", passa a chamar-se "Ai, Dino, o que te fizeram!", frase dita pela avó materna do autor, quando o viu fardado pela primeira vez. Foi ela, de resto, quem o criou. ]
63º Capítulo > Natal e Passagem de Ano 1973
Adoeci e fui evacuado para o hospital, em Bissau. Não havia camas vagas na enfermaria e fui parar ao quartel dos Adidos, medicado com meia dúzia de comprimidos e um xarope. Não informei nenhum familiar, nem escrevi a ninguém sobre o meu estado de saúde. O meu mapa ficou em branco durante três semanas.
Apenas tenho comigo uma foto da noite de Natal de 1973 para provar que a passei nesse local. Embora não goste, vou contar de memória, e muito resumidamente, o que se passou na noite de Natal.
Os únicos soldados estranhos à unidade que estavam nos Adidos eram eu e mais cinco colegas. Falhara o nosso regresso a Fulacunda que devia acontecer antes do Natal, por falta de transporte. Não sabendo que não iríamos regressar ao quartel, eu e os meus colegas gastámos o dinheiro quase todo na boémia, em Bissau.
Orgulho-me do que fiz nessa época, juntamente com um sargento que nunca conhecera antes. Alugámos um táxi e fomos ao quartel-general, onde o cabo cozinheiro que ficou a substituir o meu amigo Castro nos arranjou batatas, bacalhau, grão-de-bico, ovos e me emprestou mil escudos.
Dividindo os gastos com o senhor sargento, comprámos bebidas e vários produtos ligados ao Natal, que conseguimos encontrar nas lojas de Bissau. Com autorização do oficial de dia nos Adidos, pudemos usar a cozinha e recordo que cozinhámos em terrinas e não em panelas. O certo foi que mais uma vez festejei a ceia de Natal em franco convívio e, podem acreditar, também nessa noite as bebidas chegaram para mais de cem soldados dessa unidade que eu e o sargento andámos a distribuir por quem estava de serviço.
Acordei de manhã na cama do sr. oficial de dia com uma garrafa de whisky ao lado. Foi ele que mandou o ordenança deitar-me completamente embriagado.
Obrigado, sargento.
Na noite de passagem de ano de 1973 para 74, ainda pior estávamos. Tinham-nos dito que regressaríamos antes do fim do ano sem falta e isso não aconteceu. O dinheiro que ainda restava do empréstimo teve de chegar para todos. Comemos o rancho do quartel.
No dia 3 de Janeiro de 74 já estava em Fulacunda e no dia seguinte voltava ao normal. Se é que conto a seguir pode entrar nos padrões da normalidade!
64º Capítulo > A boite Shá Tuá [Chez Toi]
“Deves estranhar só teres recebido dois aerogramas meus neste tempo todo e um apenas dizendo que ia para Bissau e outro com desenhos alusivos à quadra natalícia”.
A realidade é esta: durante um tempo achei que não me safava e decidi cortar com tudo.
- Penso que não devo andar a ficar muito bom da tola -disse eu ao 1º sargento Santos.
“Estive doente e devo voltar para o hospital outra vez em breve parece que será logo no inicio de Fevereiro. Ninguém me diz o que tenho, ou não sabem, ou não querem dizer. Sei que estou a ficar outra vez com pouco peso, se morrer que se foda estou farto disto.
Agora temos de viajar de barco porque derrubam os aviões. Disseram-me que os “turras” tem uma arma nova que se chama RPG 7, decerto é com essa arma que derrubam os nossos aviões. Ou decerto até tem mísseis. Até o Zé Leal que foi passar uns dias a Bissau em gozo de férias, foi no barco que eu vim. Tive pena dele não ir quando eu estava lá.
Ao menos tenho aqui aquele chato do Zé Alves e os outros amigos do costume, mais o tal que conheceu a namorada por carta que também tem nome. É outro Silva.
Durante os dias que estive em Bissau fui a um local frequentado pelas chamadas mulheres da vida fácil é uma boite (diz-se buáte) que se chama Shá Tuá mas fui lá só para ouvir música. Está lá um conjunto formidável cujo baterista é um rapaz chamado Álvaro Azevedo que ainda é primo dos meus familiares de Amarante e que era o baterista dos Pop Five Music Incorporated. Só estive lá mais ou menos duas horas mas nem dancei contentei-me apenas em ouvir musica e em tomar umas bebidas.
Não posso de maneira alguma dizer que naquele ambiente não senti desejo de ter relações sexuais, senti sim até porque as boites existem mesmo para isso, simplesmente sempre que se trate de mulheres que não sejas tu eu não levo ao fim os meus desejos, contigo custa-me resistir mas se não estás a meu lado está a tua imagem e pelo muito que te amo não posso de maneira alguma trair-te. Confesso que nunca fui assim e até era bastante mais volúvel, mas agora sou teu e apenas vivo para ti, portanto podes ter confiança em mim, eu amo-te e apenas os teus braços é que me abrigam pois só envolto neles tenho a certeza dum amor cheio de pureza”.
Que grande burro! Aposto que nenhuma mulher acreditava nesta treta. Então a Amélia é que nem pensar!
Acordei de manhã na cama do sr. oficial de dia com uma garrafa de whisky ao lado. Foi ele que mandou o ordenança deitar-me completamente embriagado.
Obrigado, sargento.
Na noite de passagem de ano de 1973 para 74, ainda pior estávamos. Tinham-nos dito que regressaríamos antes do fim do ano sem falta e isso não aconteceu. O dinheiro que ainda restava do empréstimo teve de chegar para todos. Comemos o rancho do quartel.
No dia 3 de Janeiro de 74 já estava em Fulacunda e no dia seguinte voltava ao normal. Se é que conto a seguir pode entrar nos padrões da normalidade!
64º Capítulo > A boite Shá Tuá [Chez Toi]
“Deves estranhar só teres recebido dois aerogramas meus neste tempo todo e um apenas dizendo que ia para Bissau e outro com desenhos alusivos à quadra natalícia”.
A realidade é esta: durante um tempo achei que não me safava e decidi cortar com tudo.
- Penso que não devo andar a ficar muito bom da tola -disse eu ao 1º sargento Santos.
“Estive doente e devo voltar para o hospital outra vez em breve parece que será logo no inicio de Fevereiro. Ninguém me diz o que tenho, ou não sabem, ou não querem dizer. Sei que estou a ficar outra vez com pouco peso, se morrer que se foda estou farto disto.
Agora temos de viajar de barco porque derrubam os aviões. Disseram-me que os “turras” tem uma arma nova que se chama RPG 7, decerto é com essa arma que derrubam os nossos aviões. Ou decerto até tem mísseis. Até o Zé Leal que foi passar uns dias a Bissau em gozo de férias, foi no barco que eu vim. Tive pena dele não ir quando eu estava lá.
Ao menos tenho aqui aquele chato do Zé Alves e os outros amigos do costume, mais o tal que conheceu a namorada por carta que também tem nome. É outro Silva.
Durante os dias que estive em Bissau fui a um local frequentado pelas chamadas mulheres da vida fácil é uma boite (diz-se buáte) que se chama Shá Tuá mas fui lá só para ouvir música. Está lá um conjunto formidável cujo baterista é um rapaz chamado Álvaro Azevedo que ainda é primo dos meus familiares de Amarante e que era o baterista dos Pop Five Music Incorporated. Só estive lá mais ou menos duas horas mas nem dancei contentei-me apenas em ouvir musica e em tomar umas bebidas.
Não posso de maneira alguma dizer que naquele ambiente não senti desejo de ter relações sexuais, senti sim até porque as boites existem mesmo para isso, simplesmente sempre que se trate de mulheres que não sejas tu eu não levo ao fim os meus desejos, contigo custa-me resistir mas se não estás a meu lado está a tua imagem e pelo muito que te amo não posso de maneira alguma trair-te. Confesso que nunca fui assim e até era bastante mais volúvel, mas agora sou teu e apenas vivo para ti, portanto podes ter confiança em mim, eu amo-te e apenas os teus braços é que me abrigam pois só envolto neles tenho a certeza dum amor cheio de pureza”.
Que grande burro! Aposto que nenhuma mulher acreditava nesta treta. Então a Amélia é que nem pensar!
Estou ansioso por saber o que ela me respondeu, até vou andar mais rapidamente na leitura.
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Nota do editor:
Último poste da série > 9 de julho de 2018 > Guiné 61/74 - P18828: Ai, Dino, o que te fizeram!... Memórias de José Claudino da Silva, ex-1.º cabo cond auto, 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Capítulos 61 e 62: "tenho muito amor para te dar e não é um sacana dum capitão que o vai impedir"
9 comentários:
Dino, tenho uma história passada no "Chez Toi", já aqui publicada há uns anos... Mas o que eu te queria dizer é que esse tal grupo de música, os "Pop Five Music Incorporated", existiu mesmo e alguns elementos foram parar à Guiné... Na tua passagem pelo "Chez Toi" [lê-se "chê" e não "Shá"..."Tuá"] alguns deles eram os do grupo fundador.... Aqui tens uma "entrada" na Wikipédia:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Pop_Five_Music_Incorporated
(...) O grupo formou-se no Porto, em 1967. Os elementos da banda eram David Ferreira (órgão Hammond, piano, guitarra e voz), António Brito (baixo, guitarra e voz), Paulo Godinho (voz, teclas e guitarra-irmão de Sérgio Godinho), Álvaro Azevedo (bateria) e Luís "Pi" Vareta (baixo e voz).
Lançam, em 1968, o EP "Those Where The Days". O disco inclui "You'll See" de Tozé Brito.
O segundo EP inclui os temas "Ob-la-di Ob-la-da", "The Weight", "Adagio" e "Birthday".
O álbum "A Peça" inclui versões de clássicos "Overture", "Jesus, Alegria dos Homens" (Bach), "Blackbird" (Beatles), "To Love Somebody" (Bee Gees), "Proud Mary" (Creedence Clearwater Revival), "Medicated Go" (Traffic), "Mess Arround", "Hush", "Come Down To My Boat", "Baby", "Fire" (Jimi Hendrix), "Sour Milk Sea" (George Harrison) e "Can I Get a Witness".
Em 1969 é editado um single de Mike McGill com os Pop Five, editado pela Orfeu [sat 802], com os temas "Our Last Goodbye" / "Without Her", produção de Fernando de Matos, empresário da banda.
David Ferreira e Tozé Brito saem do grupo e entra Miguel Graça Moura. Lançam um single com os temas "Menina" e "Homens do Mar".
Em 1970 gravam "Page One". O single foi editado no Brasil, Austrália, Holanda, França e Alemanha. Nalguns países o lado B, "Ária para a 4ª Corda", de Bach, foi escolhido como tema principal.
O single "Orange" também é editado internacionalmente.
Os Pop Five Music Incorported vão gravar a Londres, nos Estúdios Pye, os seis temas dos três singles lançados em 1971 e 1972.
Em 1971 participam no Festival de Vilar de Mouros, ao lado de nomes como Manfred Mann e Elton John.
"Stand By", "Take me to the sun" e "No time to live" são lançados em single mas sem obter o sucesso dos trabalhos anteriores.
Em 1972, alguns dos membros são chamados a cumprir o serviço militar obrigatório e Miguel Graça Moura abandona o grupo em Outubro desse ano. (...)
Há muito mais referências sobre o grupo de música "ié-ié", os "Pop Five Music Incorporated"... Pesquisa no Google...São do tempo do Quarteto 1111...
Ver aqui mais:
Texto de João Carlos Calixto, na RTP Memória:
https://www.rtp.pt/rtpmemoria/gramofone/pop-five-music-incorporated-por-joao-carlos-callixto_330
Convenhamos que a tropa, e em especial na nossa "comissão de serviço" (sic) na Guiné, era pior que o convento: fazíamos votos de pobreza, castidade e obediência...Obediência cega, castidade hipócrita, pobreza descarada... LG
O governo, hipócrita, falsamente puritano, mandou fechar as casas de passe... em plena guerra colonial, em 1963. Fechou a "casa da Mariquinhas" e tantas outras, por todo o país... Fechou os olhos ao negócio da prostituição, descarada, que depois se expandiu, de mil e uma maneiras, com óbvio dano para a saúde pública...
Havia controlo sanitário das "toleradas" que viviam nas "casas das Mariquinhas", mas não no grande bordel que era Bissau, do Chez Toi ao Pilão, ou que era Luanda, a Beira, Lourenço Marques, ou a Lisboa do Cais do Sodré, do Bairro Alto, do Intendente ou a Reboleira do sr. J. Pimenta (que terá servido para branquear muito dinheiro sujo da guerra)...
Quantos milhões de penicilina não levou a malta durante os 13 ou 14 anos da guerra colonial, cá e lá ? Um problema-tabu, de que ninguém gosta de falar...A começar pelos nossos camaradas dos serviços de saúde militar (médicos, enfermeiros...), que nos curavam dos "valentes esquentamentos"...
Reparem, que nem "camisas de Vénus" o exército, hipócrita, distribuía... À socapa, os nossos enfermeiros lá nos davam umas bisnaguinhas de pomada anti-venérea do LM - Laboratório Militar!...
Qunado vim à metrópole, de ferias, em 1970, estive alguns dias em Bissau,a aguardar o avião... Lembro-me que estive hospedado nessa espelunca do Chez Toi, de paredes de tabique, que à noite funcionava como boite. Tinha um drôle de nom, chique, sedutor, Chez Toi… Para mais em francês, comme il faut… Convidativo ao voyeurismo: entra, senta-te, pede o que quiseres, estás em tua casa…
Por azar, logo na primeira noite, alguém, na minha ausência, "arrombou" a porta do meu quarto, forçou o cadeado da mala de cartão e fanou-me uma Dimple. Duas ou três garrafas de uísque, velho, era toda a riqueza que eu levaria a bordo para a Metrópole, para além de algumas peças, baratas, de quinquilharia e artesanato, que ainda tencionava comprar no Taufik Saad, chinesices e merdas do género... que chegavam a Bissau ao preço da uva mijona...
Nessa mesma noite, tive uma conversa (desagradável) com o gordo do gerente do Chez Toi, sebento, empertigado na defesa da honra e do bom nome da casa.
As suspeitas recaíram logo num dos rapazes, um "papel do Biombo", se não me engano, que fazia o serviço de quartos. Ali não havia criadas, só criados, como no resto de África. Alguns clientes, à civil, mais exaltados, de copo de uísque na mão, juntaram-se a nós, a mim e mais o meu parceiro do Pilão. E aí, às tantas, o clima começou a ficar propício à pancadaria e ao linchamento. É a famosa lei de Gresham do conflito, a bola de neve que amplifica o conflito e faz perder de vista o pomo da discórdia e os protagonistas iniciais.
Eu e o sabujo do gerente já tínhamos chegado a um arremedo de acordo de cavalheiros, e o ladrãozeco de uísque suava por todos os poros, ao ver que não tinha nenhum buraco no chão para se enfiar. Foi quando alguém mandou um copo ao chão e berrou, alto e bom som, um chorrilho de asneiras e provocações racistas:
- Filhos da puta de nharros, cambada de barrotes queimados, turras de um cabrão!... E anda aqui um gajo a foder o coirão no mato para lhes proteger as costas em Bissau!...
O resto da história, desagradável para mim, que vinha de uma companhias de "nharros", e que eu considerava como verdadeiros camaradas..., já aqui foi contada há muitos anos atrás... Uma história pouco edificante sobre os nossos "brancos costumes" (como diria a Joana Gorjão Henriques)...
9 DE AGOSTO DE 2010
Guiné 63/74 - P6839: A galeria dos meus heróis (7): Furriel Carvalho, ou melhor, Car...rasco, o homem do 'tiro de misericórdia' (Luís Graça)
https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2010/08/galeria-dos-meus-herois.html
Sobre as doenças venéreas e outras, houve uma notícia de página inteira no Correio da Manhã dos anos oitenta (que penso possuir algures guardado) em que alguém tenta provar que os tropas (brancos) da Guiné importaram a SIDA para a Europa.
Alguém tenta desmentir em página inteira do mesmo jornal.
Não vou ter meio de enviar para Beja Santos ou Luís Graça, assunto interessantíssimo para analisar por um ou outro.
Mas talvez dentro de um ou dois dias vou enviar a data e número desse jornal.
A propósito da SIDA e da Guiné, não posso precisar a data, mas possivelmente no finais dos anos 70 ou já no início de 80, numa das minhas dádivas de sangue no Hospital de Coimbra (3.ª ou 4.ª) fui surpreendido pela enfermeira que, ao conversar com o colega que me acompanhava também em igual tarefa, e depois de ele se referir que era ex-combatente de Angola, nos conta que, havendo já despiste da SIDA, do qual iriamos beneficiar, tinham descoberto recentemente que um dador habitual da área de Montemor, era portador do HV1. Mas o mais grave é que ele era ex-combatente da Guiné, da qual se se admitia de onde tivesse sido importado este virus!
Segundo dizia tinha sido transmitido, nessas paragens, pelos macacos aos humanos.
Como calculam, eu que cheguei a comer dessa carne, como já contei, até receber os resultados das análises, que após todas as colheitas nos mandavam para casa, fiquei acagassado!
Felizmente tudo negativo, tanto ao HV1, como ao HV2.
Mas que foi um susto, posso dizê-lo que foi.
Se era verdade, não sei. Nunca mais pensei nisso e não tive conhecimento desse artigo no jornal.
Abraço
JPicado
Já me fartei de rir com tudo isto. Parece que o assunto é transversal a todos.
Tudo posso confirmar, esta matéria era tabu, e também nem eu dizia para onde ia. O Pilão para mim era o Santuário das mulheres de vida fácil (nem sempre) e passei por lá muitos dias e muitas noites, e só me lembro das bisnagas de penicilina, para usar antes, o que nem sempre dava jeito. E assim, duas camadas de chatos foram tratadas pelo meu enfermeiro Veiga (já falecido) com Sheltox de matar as baratas. Aquilo era de gritos mesmo.
No rol destes acontecimentos, desconhecidos até então, lá apareceram por duas vezes aquela merda dos esquentamentos - tratados pelo Veiga, com 5 injecções de Terramicina 1000, do LM, que nos punha de rastos, tal o tamanho da agulha e a carga de merdas que lá nos meteram. Mas felizmente tudo correu bem, e de HIV's nunca me preocupei com isso até aos dias de hoje, a não ser que o vírus tenha um período de incubação superior a 50 anos.
Isto e outras coisas, fizeram da malta mais madura, para muitos conheceram aquilo que nem imaginavam, e com todas estas merdas ganharam aquilo que chamo de 'endurance' para aguentar esta vida cada vez mais difícil para velhotes.
Venham mais comentários, pois também tinha muito a contar, mas estas merdas todas circulam depois pelas redes sociais e qualquer um tem acesso à nossa vida 'intima'.
Um abraço,
VT/.
Correio da Manhã/Domingo, 18 de Maio, 2003.
Estudo - TIPO 2 DO VIRUS DA SIDA PROPAGOU-SE COM A GUERRA COLONIAL NA GUINÉ BISSAU
A CULPA É DA TROPA PORTUGUESA
São duas páginas inteiras, uns a dizer que a culpa foi dum macaco com nome esquisito que alguns comiam directamente, outros "comiam" indirectamente.
Para mim, com a vida reprodutiva passada por aquelas zonas, penso que isso não passa de mais uma das inúmeras tentativas de denegrir a Guerra do Ultramar.
Então nas colónias com aprtheid ou semi-apartheid não havia SIDA? pergunto eu.
Dei-me ao trabalho de recortar e guardar estas duas páginas.
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