O Carlos Pinheiro tem cerca de meia centena de referências no nosso blogue e conheceu Bissau como poucos de nós, já que lá viveu 25 meses... Colocado no QG, nas horas também dava uma ajuda no estabelecimento do o seu parente, Costa Pinheiro, estabelecido em Bissau desde os princípios dos anos 50. A casa Costa Pinheiro era uma das boas casas comerciais de Bissau. Achamos oportuno revisitar a cidade de Bissau dos anos de 1968/70 (**)
A Cidade de Bissau em 68/70
Texto e fotos de Carlos Pinheiro
A esta distância no tempo, recordar a cidade de Bissau onde passei mais de 25 meses da minha vida, obrigatoriamente e sem alternativa de escolha, não é fácil, mesmo assim é bom recordar Bissau, para que a memória não esqueça e para que outros possam também recordar e testemunhar.
Bissau era uma cidade simpática onde havia um pouco de tudo e acima de tudo muita tropa, muitos militares em movimento, a chegar, a partir e a estar. Não era uma grande metrópole mas tinha infra-estruturas que uma cidade de província, na Metrópole de então, não tinha, não podia ter e nem tinha que ter.
Tinha por exemplo um Aeroporto, na Bissalanca, que é certo se confundia de algum modo com a BA 12, já que as pistas eram as mesmas e, aliás, o Boeing da TAP só lá ia uma ou duas vezes por semana, levar de regresso combatentes que tinham vindo de férias, buscar outros em sentido contrário e acima de tudo levar e trazer correio tão indispensável para o apoio moral das tropas e especialmente dos seus familiares cá na santa terrinha.
Na maior parte do tempo eram os FIAT G91, os T6 e os DO27, para além de outros meios aéreos, os únicos a utilizar as pistas quando eram lançadas Operações onde o apoio aéreo tinha uma preponderância mais que evidente.
E, claro, também era dali que saíam os helicópteros, os Alouette III, para as Operações, mas acima de tudo para fazer as evacuações dos doentes e dos feridos
Tinha também um porto de mar, que por acaso era no rio Geba onde, por vezes, os barcos maiores, o Uíge ou o Niassa, não atracavam.
Mas barcos como o Rita Maria, o Ana Mafalda, o Alfredo da Silva, o Manuel Alfredo, todos da Sociedade Geral, da CUF, esses porque eram mais pequenos, atracavam. Também o Carvalho Araújo, penso que dos Carregadores Açorianos, nos seus últimos tempos de vida, também ali atracava. Mas era um porto com poucas condições. Este último barco, porque tinha pouca autonomia, tinha que ir, na viagem de ida, a S. Vicente, Cabo Verde, meter água e nafta e no regresso, era no Funchal que atestava.
Mas tinha o Palácio do Governador, tinha a Associação Comercial, tinha algumas casas apalaçadas de arquitectura tipicamente colonial, tinha um cinema, a UDIB, tinha dois campos de futebol, o campo da UDIB e o Estádio dos Cajueiros, à Ajuda, tinha um comércio florescente, especialmente dominado pelos libaneses, onde tudo se vendia desde o alfinete ao camião, tudo importado, principalmente do Japão, mas também dos States, da Inglaterra, da Escócia, da Itália, da Holanda, da Checoslováquia, da França, etc., e naturalmente da Metrópole.
E Bissau tinha algumas casas que toda a malta conhecia pois era lá que convivia, que matava saudades e acima de tudo matava a fome e a sede.
Logo à saída do QG havia o Santos, a que simplesmente, mas com muito carinho, chamávamos o “Enfarta Brutos”, onde se comia, talvez a maior febra de Bissau. Parecia que tinha as orelhas de fora do prato, tal era a sua dimensão. Mas as batatas fritas a acompanhar também mereciam respeito. Quanto à cerveja, ela era igual em todo o lado, desde que estivesse bem fresca e isso às vezes conseguia-se e muita até era da Manutenção Militar.
Mas lá em baixo, na cidade, tínhamos outras casas emblemáticas. Tínhamos a Solmar, que não tinha nada a ver com a outra de Lisboa, mas que já era um bom restaurante que também vendia muita cerveja para acompanhar as ostras e o camarão.
Tínhamos o Solar do 10, casa mais pequena mas mais requintada, onde por vezes à noite se cantava o fado depois de uma jantarada ou ceia.
Tínhamos o Zé da Amura onde se comiam uns chispes que iam para lá enlatados não sei de onde, mas que, à falta de melhor, eram apreciados.
Tínhamos, na Praça Honório Barreto, o Internacional, o Portugal e o Chave de Ouro, tudo cafés/cervejarias mas também onde se comiam umas febras ou uns bifes, quando havia.
Mas na Avenida principal [ , a Av da República], que ía do porto ao Palácio do Governo, também havia o Bento, café e esplanada característica da cidade a que vulgarmente nós, os militares, chamávamos de “5ª Rep.” já que o Quartel-general só tinha 4 Rep, 4 Repartições.
Para a malta, ali era portanto a 5ª repartição onde quem chegava do mato se encontrava com os residentes, onde se trocavam informações e onde, se dizia, que essas informações vadiavam ali dum lado para o outro do conflito. Ao lado do Bento, mais para o interior, era a Bolola, onde esteve o Serviço de Material, depois transferido para Brá, e onde era o Cemitério que ainda guarda os restos mortais de muitos camaradas nossos.
Nessa avenida estavam talvez as maiores casas comerciais. Por exemplo a Casa Gouveia, da CUF, que vendia ali de tudo e que tudo comprava o que os naturais produziam, principalmente a mancarra (2), o Banco Nacional Ultramarino, o banco emissor da Província, o Cinema UDIB e ao lado uma boa gelataria, mais acima, a Pastelaria, Padaria e Gelataria Império, assim baptizada por estar já na Praça do Império onde se situava o Palácio do Governo e a Associação Comercial.
Também era nessa Avenida que estava a Sé Catedral, templo de linhas tão simples quanto austeras.
A caminho de Brá e da SACOR, havia um local chamado Benfica onde havia um café com o mesmo nome e onde se apanhavam os transportes para os vários quartéis daquela zona como eram o Hospital Militar 241, o Batalhão de Engenharia 447, os Comandos, os Adidos e mais à frente a BA 12 e o BCP 12 [, em Bissalanca]..
Mas havia outros estabelecimentos dignos de recordação. A casa de fados Nazareno, mais tarde rebaptizada de Chez Toi, a Meta com as suas pistas de automóveis eléctricos, e como novidade também apareceu naquela altura O Pelicano, café-restaurante construído pelo Governo e explorado por privados, com uma belíssima vista sobre o Geba e avenida marginal.
Na Avenida Arnaldo Shulz, que ligava a Estrada de Santa Luzia à tal SACOR, a caminho de Brá, sempre ao lado do Cupelão [ou Pilão], estava o Comando Chefe das Forças Armadas à esquerda de quem subia, um pouco mais abaixo, os Bombeiros Voluntários de Bissau num grande quartel nessa altura muito bem equipado, a Cruz Vermelha, estes do lado direito e até a sede local da PIDE, que nessa altura já se chamava DGS, também do lado direito mas já junto ao Largo do Colégio Militar.
Na Avenida Arnaldo Shulz, que ligava a Estrada de Santa Luzia à tal SACOR, a caminho de Brá, sempre ao lado do Cupelão [ou Pilão], estava o Comando Chefe das Forças Armadas à esquerda de quem subia, um pouco mais abaixo, os Bombeiros Voluntários de Bissau num grande quartel nessa altura muito bem equipado, a Cruz Vermelha, estes do lado direito e até a sede local da PIDE, que nessa altura já se chamava DGS, também do lado direito mas já junto ao Largo do Colégio Militar.
Era uma avenida nova, como se fosse uma circular urbana onde as boas vivendas também começaram a aparecer.
No princípio da Avenida que ia para Santa Luzia, antes de se chegar ao Hospital Civil, estava o Grande Hotel, nome pomposo do melhor estabelecimento hoteleiro da cidade. O resto era pensões, algumas de quinta escolha.
Mas o comércio de Bissau não era constituído só por cafés, restaurantes e tascas. Havia de tudo. E há nomes que não se esquecem. Para além da Casa Gouveia, o maior empório daquele então Província Ultramarina, como então se dizia, a Casa Pintosinho, a Taufik Saad, a Costa Pinheiro, e muitas outras vendiam de tudo, são nomes que ficaram para sempre na memória.
Havia, claro, várias casas de fotografia, como por exemplo a Agfa perto da Amura, que ganhavam muito dinheiro na medida em que era raro o militar que não tivesse comprado a sua Fujica, Pentax, Nicon, etc., a que davam muito uso. Muitas casas vendiam roupa barata, nessa altura já confeccionada em Macau, especialmente aquelas camisas de meia manga, calças de ganga e sapatos leves.
Carlos Pinheiro
[, Torres Novas,]
16.04.11
2. Comentário do nosso editor LG:
Recorde-se aqui a "dica" sobre a localização do Chez Toi, dada em tempos pelo nosso amigo Nelson Herbert, jornalista guineense que foi para a América, onde trabalhou na VOA - Voice of America: era na mesma rua onde ele vivia, e onde ele e os putos seus amigos brincavam com o seu "primeiro carro de rolamentos" (sic), utiliziando para o efeito o "declive que ia dos serviços metereológicos/Boite Cabaret Chez Toi... no cimo da então nossa rua, Engenheiro Sá Carneiro [, subsecretário de Estado das Colónias, que visitou a Guiné em 1947, ao tempo do Sarmento Rodrigue]"... Essa rua era "a mesma da Praça Honório Barreto, do Hotel Portugal, do Café Universal, do Restaurante ou Pensão Ronda... já agora que ia dar ao cemitério, passando lateralmente pelo hospital" e indo dar "à messe dos Sargentos [da Força Aérea]"...
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 20 de abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8138: Memória dos lugares (152): A cidade de Bissau em 1968/70: um roteiro (Carlos Pinheiro)
(**) Último poste da série > 9 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18907: Estórias de Bissau (19): O Pilão e o Chez Toi que eu conheci... (António Ramalho)... Comentários de Valdemar Queiroz, Virgílio Teixeira, Costa Abreu e Juvenal Amado sobre o primeiro "night club" que abriu na capital guineense...
5 comentários:
Camaradas. estamos a falar de um mundo que já não existe... Às vezes pergunto-me se vale a pena reevocá-lo, o mesmo é dizer, ressuscitá-lo ?...
Como se diz nos hotéis manhosos de Espanha, de beira de estrada, "desculpen las moléstias"... Boa continuação de "férias"... Luís Graça
Olá Camaradas
O "Chez Toi" chamava-se "Gato Negro" em 1973.
Era a mesma coisa, mas com nome mais pomposo.
Até tinha uma fadista que cantada axim,m as tirando isso era uma casa muito respeitável.
Um Ab.
António J. P. Costa
OK Camarada
o fundo estamos sempre a falar de um mundo que já não existe...
E se aqui estamos é porque vale a pena invocá-lo, o mesmo é dizer, ressuscitá-lo!
Se não é ue isto não tinha piada nenhuma...
Um Ab.
António J. P. Costa
É verdade, por isso já tenho uma reportagem em preparação, para esclarecer o caso do Chez Toi/Nazareno.
Esta história contada por Carlos Pinheiro tem quase tudo o que eu conheço, é claro que até 4 de Agosto 69, não existia este nome.
Amanhã 10 de Agosto 69, 49 anos depois da minha chegada ao RI15 em Tomar, vou ver se consigo mandar mais achas para a fogueira, é claro que temos de recordar, pois doutra forma não estaríamos aqui a ler e escrever tanta coisa sobre esta memória, que prevalece para todo o tempo.
Virgílio Teixeira
Obrigado Carlos Pinheiro, bonito e é bom recordar. Esses locais eram o nosso conforto. Forte abraço. J. D. Faro.
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