sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Guiné 61/74 - P18967: Notas de leitura (1096): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (49) (Mário Beja Santos)

Imagem retirada do livro “Uma Apoteose - duas visitas - uma despedida”, comemorativo do período de governação do engenheiro Raimundo Serrão, com a devida vénia.


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Fevereiro de 2018:

Queridos amigos,
Continua a luta renhida para manter a capital da Guiné em Bolama, o gerente de Bissau do BNU é demolidor, com aqueles argumentos era como se pedisse a transferência imediata, o Sul da Província era pobrete em negócios. Bem elucidativo é o documento respeitante à participação da Guiné na I Exposição Colonial, que iria decorrer no Porto, é um descasca pessegueiro aos empreendimentos agrícolas, alguns deles muito vistosos, sempre na mira da exploração da mão-de-obra.
Chega entretanto à Guiné Luís Carvalho Viegas, nome incontornável, irão registar-se mudanças, o novo governador vem com várias incumbências, melhorar as condições do funcionalismo, preparar Bissau para ser capital, o que só ocorrerá ao tempo de Vaz Monteiro. Ver-se-á a seu tempo que o gerente do BNU vai arrasar Carvalho Viegas, tratá-lo como dissoluto, um reles distribuidor de prebendas.
É um dos textos mais chocantes que encontrei no Arquivo Histórico do BNU.

Um abraço do
Mário


Hospital Militar e Civil de Bolama 
Fotografia de Francisco Nogueira, retirada do livro “Bijagós, Património Arquitetónico”, Edições Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (49)

Beja Santos

Em 1932, a Associação Comercial de Bolama enviara ao Governo da Colónia, e este ao Ministro das Colónias, um longo ofício a defender a permanência de Bolama como capital.
Instado a pronunciar-se sobre o documento, escreve o gerente da filial de Bissau em 13 de dezembro desse ano:
“Não nos surpreendeu o que a Associação Comercial expôs porque, sentido que a cidade de Bolama, a pouco e pouco, vai perdendo o seu valor prático na colónia, a tudo se agarra para manter a vida de uma terra que há muito vem vivendo artificialmente e que, uma vez transferida a capital da colónia, perde a razão de existir.
E tanto assim é, que ainda há dias tivemos conhecimento pelos jornais de Lisboa que a Associação Comercial de Bolama, a propósito da extinção do lugar de Capitão de Porto de Bolama escreveu ao Exmo. Ministro das Colónias no sentido de ser criado de novo esse lugar ou ser para ali transferida, de Bissau, a Repartição dos Serviços de Marinha da Colónia, com o fundamento de que Bolama era um dos melhores aeroportos de África Ocidental.
Parece que, realmente, o porto de Bolama, como aeroporto, não é mau; mas tem o inconveniente de não irem lá hidroaviões, por circunstâncias estranhas, certamente, há boa vontade da Associação Comercial.
Isso, porém, não a preocupa.
O que a preocupa e pretende dar a Bolama uma vida que não pode ter, sem se importar com os encargos que a sua fantasia pode acarretar ao Estado, como não se importa com os encargos que a modificação da organização dos serviços das Dependências da Guiné possa acarretar ao Banco”.

É um extenso documento em que o gerente de Bissau vai procurando desmontar a argumentação dos comerciantes bolamenses, e tece um quadro bastante cru da atividade da filial de Bolama:
“Tem o seu movimento limitado a operações de empréstimo sob penhores, que não são feitos pelo comércio a alguns descontos de letra da praça, e pouco ou nada mais (…). A praça de Bolama vale tão pouco oficialmente, que não tem condições para sustentar a organização de estabelecimento bancário, por modesta que seja a sua organização”.

1932 é também o ano em que volta a vir à tona as dificuldades da Sociedade Agrícola do Gambiel. Nesta documentação avulsa, o Arquivo Histórico do BNU conserva um acervo de cartas que dá alguma claridade à ascensão e queda de uma das maiores promissoras sociedades agrícolas que se instalara na Guiné nos anos 1920 e 1930.
Logo em 1927, a filial de Bissau refere-se ao empreendimento para Lisboa nos seguintes termos:
“É detentora de uma extensa concessão compreendida entre as regiões de Bambadinca e Geba, na qual se acham instaladas as fábricas de destilação, escritórios, hangares, moradias de pessoal, etc., possuindo também uma edificação na Avenida Central de Bissau. Grande parte dos seus actuais bens pertenciam à Companhia de Fomento Nacional, da qual é sucessor, pela aquisição que fez por compra, em condições vantajosas, de todo o activo e passivo daquela.
Se bem que até há pouco tenha sempre apresentado como principal entrave aos seu desenvolvimento a obtenção de mão-de-obra indispensável, podemos sem receio de contestação afirmar que a principal razão das suas dificuldades residiu sempre na falta de matéria prima para a sua destilação, originada especialmente pelas cheias do rio Geba que lhe destruíram nos últimos anos dezenas de hectares das plantações de cana sacarina.
Relativamente à falta de mão-de-obra, não acreditamos que ela exista na Guiné. Factos diários nos confirmam esta afirmação. Dirigimos há cerca de oito meses a fábrica de cerâmica, e mantemos há anos as obras nos nossos edifícios, dispondo sempre de pessoal indispensável, sem ter necessidade de requisitar às autoridades administrativas. Pagando-se convenientemente e tratando o indígena bem, creiam V. Exas. que os braços não faltam nunca. O ponto difícil da questão é saber se remunerando o indígena com um justo valor do seu esforço haverá muitas empresas que possam com êxito e probabilidade de resultados manter quer as suas indústrias quer os seus trabalhos agrícolas. A Gambiel é das poucas que está em condições de suportar este encargo.
Ainda a este respeito, falando em tempos com o ex-Governador Velez Caroço, com quem variadas vezes trocámos impressões sobre a Gambiel, nos foi afirmado que a falta de mão-de-obra nesta empresa teve sempre origem no deficiente e irregular pagamento feito aos trabalhadores”.

Em 14 de junho de 1928, escreve-se para Lisboa acerca do mesmo empreendimento agrícola:
“Esteve aqui há cerca de dois meses o Engenheiro Armando Cortesão que veio tratar de conseguir o exclusivo para a instalação que dezasseis máquinas para descaroçamento e prensagem de algodão nos principais centros do interior da colónia, e ainda, ao que nos informou, para estudar a forma de regularizar a situação da Gambiel”.
Mais se informava que o Engenheiro Cortesão se retirara para França, havia vultuosas responsabilidades da Gambiel com a Agência do BNU, dava-se como garantia dos débitos tanques e garrafões com cerca de doze mil litros de aguardente. Na mesma carta se informava que a Gambiel cessara a destilação de aguardente. Em 1931, de novo se informava Lisboa que a Gambiel ainda não liquidara integralmente os juros e outras despesas em atraso. Em janeiro de 1932 voltava-se a informar que a Gambiel entregara a aguardente como caução do seu débito. Temos depois o silêncio, é bem provável que a Gambiel, de que se depositara tantas esperanças como empreendimento agrícola modelo caminhava para a extinção.

No fim de abril de 1933, confirma-se que o Major de Cavalaria Luís António de Carvalho Viegas assumira o cargo de governador, o gerente de Bissau não se exime a dar as suas impressões pessoais:
“Ao senhor Governador, como é da praxe, apresentamos em devido tempo os nossos cumprimentos, tendo trocado com ele algumas impressões gerais.
Deixou-nos a impressão de uma pessoa de inteligência normal, mas bem-intencionado e animado de bons desejos.
Oxalá que tenha a força necessária para transformar a feição indisciplinada da colónia.
Quanto à transferência da capital para Bissau, cremos que não será tão cedo que esta justa aspiração se realizará”.

Era claro o investimento que o BNU fazia na Sociedade Industrial Ultramarina, o gerente de Bissau contacta os seus colegas em Cabo Verde, tanto em S. Vicente como na Praia. Vale a pena ler os seus comentários, fica-se com a dimensão de que o gerente bancário tinha olho para os negócios industriais.
Assim se informa S. Vicente os pormenorizados esclarecimentos sobre a colocação de telha fabricada pela Sociedade Industrial Ultramarina:
“Por este vapor remetemos três grades com telhas, como amostra.
O preço é de 1$00 por telha tomada na fábrica de Bandim – a três quilómetros de Bissau –, podendo ali ser carregada por qualquer palhabote. Pretende esta sociedade que a telha possa ser vendida nos portos dessa colónia ao mesmo preço por que a vende aqui.
Para tanto, o que convém é que os veleiros, fretados por conta da Sociedade ou de estranhos o sejam com frete redondo, para ser gratuito o frete da telha. Nestas condições, convém que venham carregados de sal, cobrindo este carregamento o frete de retorno. Se V. Sras. tiverem oportunidade de conseguir que qualquer dos vossos clientes se interesse por este negócio, agradecemos o favor de o promover”. 
E escreve-se deste modo para a Praia, depois de usar argumentação idêntica a que já se usou para S. Vicente:
“Está a Sociedade estudando o assunto a fim de fazer a operação por conta própria; no entanto, se V. Sras. tiverem de conseguir que qualquer dos vossos clientes se interesse por este negócio, agradecemos o favor de o promover”.

E assim chegamos a 1934, pede-se a colaboração do BNU para a I Exposição Colonial Portuguesa, Lisboa fizera um conjunto de perguntas para apurar a viabilidade de incluir um pavilhão referente à Guiné, era preciso fazer um inventário das indústrias existentes e empreendimentos agrícolas. Convenhamos que a resposta terá sido recebida em Lisboa como muito desalentadora:
“Não foram nesta colónia criadas indústrias, sendo certo, porém, que com o dinheiro levantado no Banco por meio de descontos ou empréstimos caucionados, uns e outros feitos a firmas comerciais e a título comercial, se montaram na Guiné as indústrias de cerâmica, gelo e eletricidade, fábricas de óleo de palma e transportes de cabotagem.
A fábrica de cerâmica de Pereira Neves & Cª e as flotilhas dessa firma e da Sociedade Portuense, Lda., foram administradas directamente pelo Banco, depois dessas firmas terem liquidado contas com esta agência, entregando-nos os seus haveres e valores que mais tarde passaram para a Sociedade Industrial Ultramarina. São factos posteriores a 1925.
Quanto a auxílio prestado pelo Banco directamente à agricultura, também verdadeiramente o não há. Algumas firmas comerciais desviaram um pouco da sua actividade e dinheiro para a agricultura, mas as operações de crédito efectuadas realizaram-se a título meramente comercial.
De resto, na Guiné não há, praticamente, agricultura europeia com exploração organizada e metódica, como em outras colónias do Império.
Todas as tentativas agrícolas da colónia com essa preocupação – Companhia Estrela de Farim, Sociedade Agrícola de Fá, Sociedade Agrícola do Gambiel, Lda., Empresa Insular da Guiné e Companhia Algodoeira da Guiné Portuguesa – foram ou têm sido apenas sorvedores de dinheiro dos accionistas, e a única que ainda se mantém é a Sociedade Agrícola do Gambiel que explora exclusivamente culturas anuais – cana sacarina –, como outras pequenas agriculturas disseminadas pela colónia.
As firmas atrás indicadas, de que hoje só existe o nome, realizaram com esta agência apenas operações de utilizações de créditos mandados abrir em nossos livros”.

A Guiné, dito com total frontalidade, tinha muito pouco a mostrar na I Exposição Colonial Portuguesa, que se realizou no Porto, nesse ano, a Guiné deu brado, enviou o régulo Mamadu Sissé, um herói das campanhas de pacificação, a belíssima Rosinha, que ganhou o certame das vampes coloniais, e as Bijagós de peito ao léu e a ondular as saias de ráfia provocaram uma grande consternação às senhoras de bons costumes, que apresentaram queixa ao coordenador da exposição, Capitão Henrique Galvão.

Bafatá, a ponte sobre o rio Geba, 
Imagem do Arquivo Histórico do BNU, com a devida vénia.

(Continua)
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Notas do editor

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Último poste da série de 27 DE AGOSTO DE 2018 > Guiné 61/74 - P18958: Notas de leitura (1095): Nó Cego, por Carlos Vale Ferraz; Porto Editora, 2018 (4) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Como não apreciar o trabalho dispensado por BS neste espaço LG & camaradas?

Para mim, bem entendido estas crónicas são super interessantes, quando me lembro da ingenuidade com que "colons" da minha geração acreditavamos nos "espertos"estudantes do império nos impingiam que o Salazar escondia as riquezas das colónias, para refrear ambições independentistas.

Muitos acreditavamos mesmo que o velho era matreiro para isso.

Mas mais surprendido fiquei, quando na Guiné verifiquei que os estudantes do império do PAIGC andaram pelo mundo inteiro a espalhar essa ideia, entre "novos amigos".

Aqui e nas outras crónicas dos desconhecidos do Geba, constatamos a pobreza das "riquezas naturais" da pequena Guiné Bissau em que uma das mais comuns produções é a cana de açúcar e a sua destilação para aguardente (grog tão apreciado pelos caboverdeanos e por quem não era mossulmano)e algum arroz e mancarra.

Ou seja, produtos que para qualquer explorador colonial a sério, tipo Cecil Rodes, ou qualquer súbdito da rainha Victória, ou do seu primo o Leopoldo, seria trabalho apenas para aquecer ao sol tropical.

Nas crónicas nunca se fala em prospecções de petróleo, de ouro, diamantes, cobre...etc.

Eu que nunca quis saber de polítiquíce para nada, até ao 25 de Abril, polítiquice para quê, com tanta coisa para fazer, comecei na Guiné a compreender melhor as coisas.

Fartei-me de rir, (para não chorar) quando em 1980, vi rodar por pontos bem reconditos da Guiné, enormes máquinas de propecção soviéticas a fazer enormes perfurações para extrair água de 8 a 10 metros de profundidadepara a tabanca mais próxima dar à roda.

Ficava bem cara aquela água.

A mim o velho de Santa Comba, "nunca me enganou".

Outros é que me enganaram.

Mais ou menos já tinha contado isto tudo, mas BS provoca estas coisas.