segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21902: Recordações dos tempos de Bissau (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS) (8): Cenas de um carnaval em Bissau

Edifício do STM em Bissau

1. Em mensagem do dia 5 de Fevereiro, o nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), fala-nos do Carnaval de 1970 em Bissau:


RECORDAÇÕES DOS TEMPOS DE BISSAU

PEDAÇOS DA HISTÓRIA DA GUINÉ
 
8 - Cenas de um Carnaval em Bissau

Estávamos em 1970, o Carnaval estava à porta e, apesar da guerra, em Bissau sempre havia algumas comemorações desse período que antecedia, e ainda antecede, a Quaresma.

Em Bissau tudo era diferente e tinha sabor a saudades da santa terrinha, mas havia sempre foliões, dentro dos condicionalismos que se viviam.

No QG, mais propriamente na CCS, havia um jovem sempre bem disposto, sempre com uma graça na ponta da língua, mas afinal de contas teria as suas razões para não se sentir assim tão bem. Constava que teria vindo de Angola, “premiado” com algum castigo, e andaria por ali à espera que os eventuais problemas tivessem solução. Era o Jóia, como era conhecido em todo o lado.

Assim, o Jóia, que era mesmo uma Jóia no trato do dia a dia, nesse dia de Carnaval resolveu vestir-se à Fula, embrulhou-se nuns lençóis, e lá foi até à cidade brincar e confraternizar com os amigos que tinha e eram muitos.

Mas o Jóia, amigo do seu amigo, nunca desperdiçava uma cerveja, de preferência das bazucas, e lá foi correndo todos os pontos de interesse de Bissau, a começar pelo Santos,  logo à saída da porta de armas de Santa Luzia, desde o Império, passando pelo Benfica, desde a Solmar até ao Solar do Dez, ao Portugal e ao Internacional, ao Zé da Amura, ao Bento, até que chegou ao novel Pelicano, cheio que nem um ovo dada a novidade daquele novo estabelecimento de dois pisos e com belas vistas sobre a Avenida Marginal e Ponte Cais de Bissau.

Porém, nessa confusão de gente, o Jóia, terá dado um encosto a um camarada à civil, que não gostou da brincadeira e o terá mimoseado com alguns murros e o Jóia, naquela circunstância não deixou cair a sua honra de combatente pelo que desatou, rapidamente, parte dos lençóis respondendo com as suas mãos à dita pessoa à civil que terá ficado deitado no chão do café.

Entretanto o Jóia terá dado mais umas voltas pela cidade mas regressou ao Quartel General onde já tinha recado para no outro dia se apresentar ao Comandante. Era a vida.

E o Jóia lá foi no outro dia ouvir o Comandante que lhe terá perguntado se sabia quem era a pessoa a quem tinha dado um sova no dia anterior. Claro que o Jóia não sabia,  ao que o Comandante lhe disse que o outro camarada era um Alferes paraquedista. Então aí o Jóia não se calou e terá respondido ao Comandante: 

- Não me diga,  meu Comandante. Se aquele era um Alferes paraquedista, eu vou lá acima e derreto o Batalhão todo.

O Comandante já teria falado com o médico da Companhia e o Jóia foi encaminhada para a Psiquiatria do HM 241. Chegou lá e a primeira coisa que terá feito, foi dar um murro no tampo de vidro da secretária do Médico, vidro esse se partiu em mil bocados.

Resumindo, passados poucos dias, o Jóia tinha regressado à Metrópole e corria por lá a notícia que os processos tinham sido arquivados e o Jóia passado à vida civil ainda durante a Quaresma.

Apesar de tudo, nesse ano o Carnaval foi a salvação do Jóia que andava por ali esquecido.

Carlos Pinheiro

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Nota do editor

Último poste da série de 12 de julho de 2018 > Guiné 63/74 - P18838: Recordações dos tempos de Bissau (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS) (7): Recordações do STM/CTIG

10 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Também precisamos destas pequenas, pícaras, histórias do nosso quotidiano da Guiné no tempo da guerra. Esse "Joia" (alcunha ?) seria um dos diversos (, não direi muitos...) casos humanos com que a tropa teria dificuldade em lidar... Nessa altura, ainda se usava o provérbio "ao touro e ao louco dá-lhe o curro"...

Quem eram os psiquiatras que estavam no HM 241 nesse tempo ? O J. Pardete Ferreira (1969/71) citam os nomes do "Castro, [David] Payne e Milimori, na Psiquiatria"... O David Payne, que veio de Bambadinca (BCAÇ 2852, 1968/70), é aqui citado no nosso blogue diversas vezes.

Tem 6 referências, e infelizmente já morreu:

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/David%20Payne%20%28m%C3%A9dico%29

Anónimo disse...

Como já disse e volto a repetir, em Maio-Junho de 69, estive uns 15 dias internado na Psiquiatria, sei que me injectaram Valium 20 e fiquei a maior parte do tempo a dormir. Agora vejo nomes dessa época, Payne, Milimori, Pardete e outros, e eu não sei o nome de nenhum que me acompanhou, tenho ainda os originais das guias de entrada e saída, as assinaturas, mas nada consta do nome dos médicos psiquiatras ou eu nem liguei a isso.

Das únicas coisas que me lembro, era o barulho dos Heli a poisar no HMR241, e lá ia dar uma espreitadela, as macas, os enfermeiros, etc, era uma bagunçada, ainda hoje associo o barulho dos Heli, a um estado mórbido - mortos, feridos, doentes etc.

Não sei se fui bem tratado ou não, mas ainda hoje continuo a engolir diariamente, entre outras, uma pastilha de Valium 10... reduzi de 20 para 10, mas aumentei noutros fármacos.
Mas gostava de saber quem me avaliou e me mandou embora, também tinha de vir, pois o UIGE não esperava mais!

Virgilio Teixeira





Cherno Baldé disse...

Caro amigo José Pinheiro,

Uma estoria muito interessante, mas em vez de vestir-se a Fula e num lençol que pode ser ofensivo aos fulas, o mais correcto seria dizer vestir-se a padre porque na verdade é disso que se trata. A primeira vez que eu vi um padre a celebrar a missa na minha terra conclui que afinal as duas religioes teriam muitas coisas em comum, inclusive a vestimentaria, o jejum entre muitos outros aspectos. E mais tarde, através de leituras cheguei a seguinte conclusao:

Para os Hebreus (Judeus) que voltaram do exilio os sacerdotes (religiosos) deviam sair da linhagem do Levi, o terceiro filho do Jacob com a Leah, irmao mais velho de Judah (Génesis) chamados de levitas, representado por Aarao, irmao de Moisés, de modo que so a estes era permitida presidir a celebraçao do cultos e aproximar-se da arca da aliança.

Com o cristianismo houve uma grande revoluçao e abertura e o sacerdocio (os padres ) passou a ser exercido por pessoas preparadas independente da sua linhagem ja que a religiao tinha sido democratizada incluindo os chamados "gentios".

Com o advento do islamismo ja nao existiam fronteiras e toda agente podia ser sacerdote e vestir-se nessa qualidade com a batina da cabeça aos pés ou seja o tal "lençol a fula" que so era fula na medida em que fazia parte da guerra psicologica dos portugueses contra tudo o que representava a pratica e usos dos mouros (arabes ou arabizados) com os quais guerreavam havia muitos séculos desde Ceuta e Melilla incluindo o desaparecimento traumatico do rei D. Sebastiao.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

Valdemar Silva disse...

Caro Cherno Baldé
Essa de 'à Fula', com a tal vestimenta comprida, seria uma forma de dizer, nunca passando pela cabeça da rapaziada dizer 'vestido à padre'. Mas, não era só na vestimenta, à Fula dizia-se quando se comia à mão, sem ser o frango assado, ou o mais corrente tomar banho à Fula, que era utilizado um pequeno balde para deitar a água pela cabeça abaixo.
Em Nova Lamego, uma bela sugar depo (a tal do encostãozinho) deu-me banho à Fula estando eu dentro dum pequeno alguidar e ela com um púcaro a entornar água pelo meu corpo. Quem me dera...

Abracelos e saúde da boa
Valdemar Queiroz Colubali

Anónimo disse...

Caro Valdemar,

Compreende-se melhor quando alguém que se encontra no Chão fula (Leste) falar de práticas "a fula" porque está no meio deles, mas não tem justificação para quem se encontrava em Bissau, isto porque os fulas não têm exclusividade nesta forma de vestir.

Com o meu comentário, eu quis diferenciar a necessidade do uso da linguagem para se fazer entender do uso preconceituoso das palavras. Não é nada pessoal, o José é uma pessoa muito correcta e as suas narrativas e testemunho sobre Bissau é de grande valor documental e histórico que nós valorizamos muito.

Mais uma vez, picardias a parte, não há "banho a fula" nem "comer a fula" conquanto em África estas práticas são generalizadas a nível de todos os povos e comunidades sem excepção.

Abraços,

Cherno Baldé

Carlos Pinheiro disse...

Caro amigo Cherno Baldé
Começo por lhe agradecer os seus comentários bastante elucidativos e oportunos apesar de tantos anos passados.
O termo "à Fula" que se usava não tinha qualquer má intenção até porque, independentemente da chamada psico social, nós em Bissau, que é o que eu conheci, dávama-nos bem com todas as etnias e com quem tinhamos o melhor relacionamento. Eu falo assim á vontade porque no meu serviço tinhamos motoristas, ou condutores como se dizia na tropa, de várias etnias, com quem conviviamos diariamente e com quem tinhamos as melhores relações.
A aplicação daquele termo foi só para dar a entender que o Joia se tinha embrulhado em lençóis e foi para a cidade brincar ao Carnaval.
No final de contas aquele nosso amigo, apesar do percalço no Pelicano, acabou por ter sorte e acabou a sua comissão que já ia bastante longa.
Um grande abraço e votos de muita saúde que é o que nós hoje mais precisamos nesta altura por causa da pandemia que continua a abalar o mundo.
Carlos Pinheiro

Valdemar Silva disse...

Caro amigo Cherno Baldé
Está certo.
Mas o 'à fula' era por ser como eles ou seja como eles naquela região, e parece que se generalizou. Não sei se no chão manjaco se utilizavam os mesmos termos.
Por cá, principalmente nos Parques de Campismo, dizia-se o tomar banho 'à fula' provavelmente pela rapaziada que tinha estado na Guiné.

Abraço
Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

Caro Valdemar,

Eu entendo, mas acho que so podia ser uma brincadeira de mau gosto referindo-se aos outros de uma forma depreciativa e com ares de alguma superioridade bacoca. E se formos a ver, com alguma lucidez e rigor cientifico, esta forma de utilizar a agua é muito mais racional e ecologica e bastante mais respeitadora do ambiente e dos recursos que Deus nos disponibilizou para usarmos com moderaçao, uma palavra e um conceito de que os paises "desenvolvidos" falam muito mas respeitam muito pouco, na pratica.

- Sera que nesse mesmo periodo, para nao falar de tempos anteriores, em Portugal a utilizaçao de chuveiros ja era uma pratica generalizada em todo o pais, incluindo as suas Beiras, Tras-os-Montes, Alentejos e Algarves? Nao acredito, mas é como diz o provérbio "Ninguém diz que o seu pai é feio".

Abraços,

Cherno Baldé

Valdemar Silva disse...

Cherno Baldé
ah!ah!ah! nem vale a pena falarmos nisso.
Por cá só se tomava banho quando se ia ao médico, até parece que era pecado.
Recordo-me quando entrei para a tropa haver um tipo que não tomava banho, sem sabermos se por vergonha ou por não estar habituado vai de levar uma valente mangueirada vestido para começar a limpar a poeirada da farda de instrução e depois lá se foi despindo e apanhou o gosto.
Quanto ao resto, qualquer hábito está relacionado com o meio ambiente em que se vive: logicamente é mais natural a poupança da água nas áreas de desertos, que noutros locais com abundância de água de rios, lagos e até do mar.
O desrespeito pela bens da natureza surge com a cobiça duns homens querer ter mais que outros.

Abraço
Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

Caro Valdemar,

Hahahakkk, agora é a minha vez de dar uma gargalhada despropositada pois já passa 00 horas e toda a gente em casa a dormir, mas não consegui conter-me.

Valdemar, quer isto dizer que o titulo do livro do nosso amigo Juvenal Amado - A tropa vai fazer de ti um homem - é valido para a grande maioria dos soldados portugueses ?

O mesmo que dizer - A tropa vai fazer de ti um homem que toma banho.

Estando a estudar em Lisboa e precisando encontrar um sitio decente para morar pedi a uma amiga portuguesa para servir-me de para-choque e fazer o anúncio num jornal local. Lembro-me que um dos proponentes, quando lhe disse que era da GBissau, disse-me que conhecia o pais e suas gentes e que se quisesse ficar em sua casa deveria saber de antemão que não deveria tomar banho mais de uma vez por, porque os guineenses abusavam nos banhos. Não fiquei, claro.

Abraço,

Cherno AB