Foto nº 2 > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 > Cavando, amassando... fazendo tijolos para a construção da nossa modesta casinha.
Foto nº 3 > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 > “Rambo” Costa - “O guardador”... de tijolos
Foto nº 4 > Guiné > Região de Tombali > Cumbjã > CCAV 8351, "Os Tigres do Cumbijã", 1972/74 > Nem tudo era mau, camaradas: bom whisky a “pataco” (com o selo de garantia: CTIG). Religiosamente guardadas para comemorar o meu centenário (espero estar ainda em boa forma!). Se a publicação das minhas memórias se concretizar, talvez abra uma no dia da sua apresentação (para chamar mais clientes!).
Fotos (e legendas): © Joquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Mensagem de Joaquim Costa, ex- furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, Cumbijã (1972/74)
Date: quarta, 21/04/2021 à(s) 18:59
Subject: Memórias de um Tigre do Cumbijã
Meu caro Luís
Como escrevíamos antigamente para casa, nos míticos aerogramas, espero que esta te vá encontrar com ânimo bastante para venceres mais um obstáculo nesta prova de resistência que é as nossa vidas.
Por vezes, dado este meu ímpeto de colocar um pouco de humor em tudo, acabo por ser inconveniente. Espero que não seja o caso.
Por trás deste humor também há lágrimas…e obstáculos.
Felizmente tenho uma pequena costela de brasileiro pelo que por muitos obstáculos que surjam no caminho penso sempre que a coisa vai dar certo.
Meu caro Luís, o lema do Blogue é o mundo é pequeno mas a tabanca é grande. E assim é!
Já aqui fiz referência ao meu filho Tiago que esteve dois anos na Guiné na construção de uma ponte sobre o rio Geba, pois a sua esposa, enfermeira, fez a especialidade de medicina familiar onde o Luís chegou a ser o seu orientador. O mundo é mesmo pequeno.
Aproveito a oportunidade para te enviar mais um post sobre as minhas memórias de guerra- A primeira visita dos "vizinhos" (ataque ao arame).
Fica na calha para quando tiveres oportunidade(e achares que reúne condições) para ser publicado
Um abraço, Joaquim Costa
Ninguém gosta de receber visitas em sua casa com esta em desalinho e ainda inacabada, contudo, foi o que aconteceu connosco poucos dias depois de nos instalarmos, de armas e bagagens, no Cumbijã.
Para se ter uma ideia do perigo e do escalar do conflito, a proteção do destacamento compreendia duas redes de arame farpado, separadas por alguns metros, com garrafas de cerveja colocadas em todo o perímetro, sobrepostas duas a duas (que tilintavam ao mínimo baloiçar das redes), e no espaço entre as duas redes eram colocados fornilhos (minas e/ou explosivos com vidros e e restos de material de ferro e aço). Tudo o que estava para além do arame farpado, literalmente, era IN.
Poucos dias depois de nos instalarmos no Cumbijã, ao fim da tarde, quando já toda a engenharia, bem como os grupos de proteção tinham regressado a Aldeia Formosa, tivemos a visita de um grupo IN, bastante numeroso, que nos intimidou com uma carga poderosa de morteiro, RPG e rajadas de metralhadora. Para os dois grupos da companhia presentes (os outros dois tinham ido para Aldeia Formosa, merecidamente, já que tinham aqui passado a noite anterior), foi o batismo de confronto direto com o IN.
Ficamos todos muito “chateados” (como diria o Almirante e ex primeiro ministro, que deu nome à minha rua – Pinheiro de Azevedo), pela visita ter lugar numa altura em que a casa ainda não estava acabada e arrumada. Só estava colocada metade da primeira fiada de arame farpado e ainda não tínhamos valas. Pela surpresa, chegámos a temer que conseguissem romper as nossas defesas, pois alguns de nós conseguíamos vê-los a aproximarem-se até muito perto do arame farpado.
Aguentámos, sem baixas, com alguns feridos ligeiros e uma das nossas tendas desfeitas, mas com a reputação em alta perante o IN e os camaradas das outras companhias da região que nos passaram a chamar: “Os Tigres do Cumbijã”.
A minha ajuda na defesa do destacamento neste ataque, de má vizinhança, foi nula já que a minha G3 encravou ao primeiro tiro.
Agora que estou ficando velho, mais dado à contemplação (mística dos factos objetivos – como dizia um camarada amigo e já cacimbado, imitando o professor de uma antiga novela brasileira), muita vezes me questiono: será que em algum momento nos diferentes contactos com o IN atingi mortalmente alguém?
Estes pensamentos, que nunca me ocorreram antes, são recorrentes nestes dias de desocupação, perturbando o meu sono que sempre foi o de um homem justo e de bem com o mundo (passe a presunção). Hoje, recordo este incidente com algum alívio, dizendo: tendo em conta o desfecho do ataque (4 feridos ligeiros... e 6 desalojados!), ainda bem que a G3 encravou!
No dia seguinte, ao fazermos o reconhecimento ao local do ataque, eram evidentes os vestígios de que do lado do IN as consequências foram bem mais gravosas.
O que antes para todos nós era “ronco”, ao verificarmos os estragos causados ao IN, hoje, ao escrever estas minhas memórias de guerra, um turbilhão de sentimentos contraditórios me desassossegam.
Ao mesmo tempo que avançava a construção da estrada para Nhacobá e os trabalhos de adaptação do Cumbijã para receber e unir definitivamente toda a família da CCav 8351, ia-se criando, em cada um de nós, a sensação, agridoce que estávamos a construir a nossa modesta casinha, porventura, no sítio menos aconselhável.
Date: quarta, 21/04/2021 à(s) 18:59
Subject: Memórias de um Tigre do Cumbijã
Meu caro Luís
Como escrevíamos antigamente para casa, nos míticos aerogramas, espero que esta te vá encontrar com ânimo bastante para venceres mais um obstáculo nesta prova de resistência que é as nossa vidas.
Por vezes, dado este meu ímpeto de colocar um pouco de humor em tudo, acabo por ser inconveniente. Espero que não seja o caso.
Por trás deste humor também há lágrimas…e obstáculos.
Felizmente tenho uma pequena costela de brasileiro pelo que por muitos obstáculos que surjam no caminho penso sempre que a coisa vai dar certo.
Meu caro Luís, o lema do Blogue é o mundo é pequeno mas a tabanca é grande. E assim é!
Já aqui fiz referência ao meu filho Tiago que esteve dois anos na Guiné na construção de uma ponte sobre o rio Geba, pois a sua esposa, enfermeira, fez a especialidade de medicina familiar onde o Luís chegou a ser o seu orientador. O mundo é mesmo pequeno.
Aproveito a oportunidade para te enviar mais um post sobre as minhas memórias de guerra- A primeira visita dos "vizinhos" (ataque ao arame).
Fica na calha para quando tiveres oportunidade(e achares que reúne condições) para ser publicado
Um abraço, Joaquim Costa
Joaquim Costa, hoje e ontem. Natural de V. N. Famalicão,
vive em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado.
Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex- furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte VIII (*)
A primeira visita… dos “vizinhos”
(ataque ao arame)
Ninguém gosta de receber visitas em sua casa com esta em desalinho e ainda inacabada, contudo, foi o que aconteceu connosco poucos dias depois de nos instalarmos, de armas e bagagens, no Cumbijã.
Para se ter uma ideia do perigo e do escalar do conflito, a proteção do destacamento compreendia duas redes de arame farpado, separadas por alguns metros, com garrafas de cerveja colocadas em todo o perímetro, sobrepostas duas a duas (que tilintavam ao mínimo baloiçar das redes), e no espaço entre as duas redes eram colocados fornilhos (minas e/ou explosivos com vidros e e restos de material de ferro e aço). Tudo o que estava para além do arame farpado, literalmente, era IN.
Poucos dias depois de nos instalarmos no Cumbijã, ao fim da tarde, quando já toda a engenharia, bem como os grupos de proteção tinham regressado a Aldeia Formosa, tivemos a visita de um grupo IN, bastante numeroso, que nos intimidou com uma carga poderosa de morteiro, RPG e rajadas de metralhadora. Para os dois grupos da companhia presentes (os outros dois tinham ido para Aldeia Formosa, merecidamente, já que tinham aqui passado a noite anterior), foi o batismo de confronto direto com o IN.
Ficamos todos muito “chateados” (como diria o Almirante e ex primeiro ministro, que deu nome à minha rua – Pinheiro de Azevedo), pela visita ter lugar numa altura em que a casa ainda não estava acabada e arrumada. Só estava colocada metade da primeira fiada de arame farpado e ainda não tínhamos valas. Pela surpresa, chegámos a temer que conseguissem romper as nossas defesas, pois alguns de nós conseguíamos vê-los a aproximarem-se até muito perto do arame farpado.
Aguentámos, sem baixas, com alguns feridos ligeiros e uma das nossas tendas desfeitas, mas com a reputação em alta perante o IN e os camaradas das outras companhias da região que nos passaram a chamar: “Os Tigres do Cumbijã”.
A minha ajuda na defesa do destacamento neste ataque, de má vizinhança, foi nula já que a minha G3 encravou ao primeiro tiro.
Agora que estou ficando velho, mais dado à contemplação (mística dos factos objetivos – como dizia um camarada amigo e já cacimbado, imitando o professor de uma antiga novela brasileira), muita vezes me questiono: será que em algum momento nos diferentes contactos com o IN atingi mortalmente alguém?
Estes pensamentos, que nunca me ocorreram antes, são recorrentes nestes dias de desocupação, perturbando o meu sono que sempre foi o de um homem justo e de bem com o mundo (passe a presunção). Hoje, recordo este incidente com algum alívio, dizendo: tendo em conta o desfecho do ataque (4 feridos ligeiros... e 6 desalojados!), ainda bem que a G3 encravou!
No dia seguinte, ao fazermos o reconhecimento ao local do ataque, eram evidentes os vestígios de que do lado do IN as consequências foram bem mais gravosas.
O que antes para todos nós era “ronco”, ao verificarmos os estragos causados ao IN, hoje, ao escrever estas minhas memórias de guerra, um turbilhão de sentimentos contraditórios me desassossegam.
Ao mesmo tempo que avançava a construção da estrada para Nhacobá e os trabalhos de adaptação do Cumbijã para receber e unir definitivamente toda a família da CCav 8351, ia-se criando, em cada um de nós, a sensação, agridoce que estávamos a construir a nossa modesta casinha, porventura, no sítio menos aconselhável.
O “cacimbo” já nos começava a afetar pois que reagíamos com naturalidade à forma como os nossos camaradas de outras companhias, que participavam na proteção da estrada, se despediam de nós, com um semblante de quem está a abandonar um amigo e o deixa à sua sorte no meio de mil perigos. Ao mesmo tempo era visível nas suas caras uma sensação de alívio por saírem daquele buraco a caminho de Aldeia Formosa, uma autêntica fortaleza com todas as comodidades, comparadas com aquele buraco.
E ali ficávamos nós, a comer a nossa ração de combate e a dormir no chão em pequenas tendas, nas condições mais que precárias de conforto e segurança (só com a nossa G3, dois pequenos Morteiros 60 e duas bazucas). Entretanto em Aldeia Formosa tomava-se banho de chuveiro, de água sem saber a gasóleo, jantava-se numa messe a sério, com comida (mais ou menos) a sério, jogava-se king acompanhado com whisky em copos a sério, e dormia-se em lençóis a sério, em camas a sério e em casernas a sério…
Passou a ser habitual, e quase rotineiro, sofrermos, com muita frequência, flagelações de canhão sem recuo. Inicialmente as granadas caiam fora do perímetro do destacadamente, mas aos poucos iam-se aproximando até começarem a cair em cima das nossa cabeças, o que nos deixava intrigados, já que a experiência nos dizia que tal só era possível com informação saída do destacamento da correção do tiro!
Nos patrulhamentos quase diários o objetivo prioritário, e absoluto, era o de encontrar o local de onde eram lançados os ataques utilizando, para além da intuição, a matemática e as leis da física, já que não suportavamos mais sermos incomodados durante o jantar (demasiado frequente, tendo em conta os verdadeiros ataques e os falsos alarmes).
O maior perigo era o da(s) primeira(s) granadas, já que estas chegavam mais rápido que o som provocado pelas saídas das mesmas, apanhando-nos desprevenidos (com consequências dramáticas, como vamos ver mais à frente).
Lá conseguíamos encontrar o local de lançamento das granadas de canhão sem recuo (uma arma muito ágil, fácil de montar, desmontar e de transportar - segundo algumas informações manobrada por cubanos), deixando aí vestígios evidentes da nossa presença…
Não obstante esta descoberta as flagelações continuaram, porém, doutro local, o que nos dava algum descanso até conseguirem corrigir novamente o tiro.
As flagelações constantes de canhão sem recuo e os ataques ao arame, eram de um grande desgaste psicológico já que nem dentro do destacamento havia momentos de total tranquilidade, dando-nos a sensação de vivermos e dormimos com o inimigo e de estarmos constantemente a ser vigiados. Eram constantes os disparos dos vigias durante a noite ao mínimo tilintar de garrafas no arame ou movimentos suspeitos durante a noite (dada a proximidade com a base do PAIGC a maior parte das vezes era imaginação, mas que para os sentinelas eram mesmo “eles” que estavam ao arame)
A estrada ia avançando, com deteção e levantamento de minas e o jogo do rato e do gato com o IN.
Durante a noite ficavam dois grupos a proteger as máquinas evitando a colocação de minas, e rebentavam-nos mais atrás os pontões, atrasando o avanço da obra. Emboscavamo-nos junto dos pontões e passavamos a ter minas na frente de trabalho.
As minas e os ataques à coluna que se deslocava para a frentes de trabalhos, com mais frequência iam causando feridos graves (geralmente minas) e vários feridos ligeiros.
As condições de segurança e habitabilidade no Cumbijã, paulatinamente, lá foram melhorando com o esforço e entusiasmo de todos nós.
A maior empreitada foi construir casernas para toda a companhia, aqui já toda reunida, utilizando o que o português tem de melhor, o “desenrascanço”, a saber:
Os primeiros dias no Cumbijã foram um duro teste às nossas capacidades físicas e psicológicas:
A melhoria das condições do destacamento foi muito importante para elevar o moral das tropas e assim vencer paulatinamente todas as dificuldades que nos eram colocadas pelo IN e pelo isolamento. Contudo, foi este mesmo isolamento que criou entre todos nós um grande espírito de grupo e, também, uma grande sensação de liberdade.
Libertámo-nos das “paranóias” militares como a preocupação com a farda, com a barba, o cabelo, as vénias e continências aos superiores. Estas “paranóias”, embora não ao nível de Bissau (preocupados com o meu bigode - como vamos ver mais à frente) eram comuns em Aldeia Formosa.
O Cumbijã para nós era uma verdadeira Aldeia do Astérix em África:
Nota: Se a visita se tivesse realizado em Maio de 1974, talvez tivessemos recebido os vizinhos mais próximos (de Nhacobá), fazendo-os entrar pela porta de armas (virtual) “deitando abaixo”, entre sorrisos e abraços [??] as lindas” botelhas” da Foto nº 4.
Como foi antes do 25 de Abril de 1974, foram recebidos de “sachola” em punho, fazendo lembrar vizinhos desavindos por demarcação de terrenos no Minho.
(Continua…)
___________
Nota do editor:
(*) Último poste da série > 13 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22100: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte VII: Cumbijã: a nossa modesta casinha, os picadores e a crueldade das minas
E ali ficávamos nós, a comer a nossa ração de combate e a dormir no chão em pequenas tendas, nas condições mais que precárias de conforto e segurança (só com a nossa G3, dois pequenos Morteiros 60 e duas bazucas). Entretanto em Aldeia Formosa tomava-se banho de chuveiro, de água sem saber a gasóleo, jantava-se numa messe a sério, com comida (mais ou menos) a sério, jogava-se king acompanhado com whisky em copos a sério, e dormia-se em lençóis a sério, em camas a sério e em casernas a sério…
Passou a ser habitual, e quase rotineiro, sofrermos, com muita frequência, flagelações de canhão sem recuo. Inicialmente as granadas caiam fora do perímetro do destacadamente, mas aos poucos iam-se aproximando até começarem a cair em cima das nossa cabeças, o que nos deixava intrigados, já que a experiência nos dizia que tal só era possível com informação saída do destacamento da correção do tiro!
Nos patrulhamentos quase diários o objetivo prioritário, e absoluto, era o de encontrar o local de onde eram lançados os ataques utilizando, para além da intuição, a matemática e as leis da física, já que não suportavamos mais sermos incomodados durante o jantar (demasiado frequente, tendo em conta os verdadeiros ataques e os falsos alarmes).
O maior perigo era o da(s) primeira(s) granadas, já que estas chegavam mais rápido que o som provocado pelas saídas das mesmas, apanhando-nos desprevenidos (com consequências dramáticas, como vamos ver mais à frente).
Lá conseguíamos encontrar o local de lançamento das granadas de canhão sem recuo (uma arma muito ágil, fácil de montar, desmontar e de transportar - segundo algumas informações manobrada por cubanos), deixando aí vestígios evidentes da nossa presença…
Não obstante esta descoberta as flagelações continuaram, porém, doutro local, o que nos dava algum descanso até conseguirem corrigir novamente o tiro.
As flagelações constantes de canhão sem recuo e os ataques ao arame, eram de um grande desgaste psicológico já que nem dentro do destacamento havia momentos de total tranquilidade, dando-nos a sensação de vivermos e dormimos com o inimigo e de estarmos constantemente a ser vigiados. Eram constantes os disparos dos vigias durante a noite ao mínimo tilintar de garrafas no arame ou movimentos suspeitos durante a noite (dada a proximidade com a base do PAIGC a maior parte das vezes era imaginação, mas que para os sentinelas eram mesmo “eles” que estavam ao arame)
A estrada ia avançando, com deteção e levantamento de minas e o jogo do rato e do gato com o IN.
Durante a noite ficavam dois grupos a proteger as máquinas evitando a colocação de minas, e rebentavam-nos mais atrás os pontões, atrasando o avanço da obra. Emboscavamo-nos junto dos pontões e passavamos a ter minas na frente de trabalho.
As minas e os ataques à coluna que se deslocava para a frentes de trabalhos, com mais frequência iam causando feridos graves (geralmente minas) e vários feridos ligeiros.
As condições de segurança e habitabilidade no Cumbijã, paulatinamente, lá foram melhorando com o esforço e entusiasmo de todos nós.
A maior empreitada foi construir casernas para toda a companhia, aqui já toda reunida, utilizando o que o português tem de melhor, o “desenrascanço”, a saber:
- Fazer tijolos utilizando terra com capim e água amassando com os pés;
- Colocar esta argamassa em formas, de tijolo, e pôr a secar:
- Cortar palmeiras para as traves da cobertura:
- “Chagar” a cabeça dos altos comandos do ar condicionado de Bissau que precisavamos de chapas de zinco para a cobertura das futuras casernas
Os primeiros dias no Cumbijã foram um duro teste às nossas capacidades físicas e psicológicas:
- O stress das minas - a qualquer passo que dava-mos corria-mos sérios riscos de pisar uma pessoal ou mesmo anti carro;
- As flagelações constantes de canhão sem recuo - 24 sobre 24 horas em alerta máxima, nunca conseguindo 10 minutos de sono profundo (com os disparos constantes dos sentinelas);
- Os ataques ao arame - criando em nós a sensação de estarmos a viver e a dormir com o inimigo;
- As condições do dia a dia - foi muito tempo a viver em tendas, dormindo no chão e alimentados à base de rações de combate;
- A falta de higiene diária - muitos dias sem tomar banho. A água vinha de Aldeia Formosa em bidões a saber a gasóleo;
- O cansaço - muito patrulhamento e proteção aos trabalhos de engenharia ao qual se juntou a construção, a pulso, das nossas casernas.
- Outros imponderáveis - ver as nossa tendas voarem para fora do arame farpado com os nosso parcos haveres, depois de sermos visitados por um enorme tornado, deixando o destacamento num caos.
A melhoria das condições do destacamento foi muito importante para elevar o moral das tropas e assim vencer paulatinamente todas as dificuldades que nos eram colocadas pelo IN e pelo isolamento. Contudo, foi este mesmo isolamento que criou entre todos nós um grande espírito de grupo e, também, uma grande sensação de liberdade.
Libertámo-nos das “paranóias” militares como a preocupação com a farda, com a barba, o cabelo, as vénias e continências aos superiores. Estas “paranóias”, embora não ao nível de Bissau (preocupados com o meu bigode - como vamos ver mais à frente) eram comuns em Aldeia Formosa.
O Cumbijã para nós era uma verdadeira Aldeia do Astérix em África:
- Não havia messe de oficiais e Sargentos;
- Não havia um rancho para oficiais e Sargentos e outro para os soldados. A panela era a mesma para todo o pessoal da companhia;
- Ninguém se preocupava com a farda, com o cabelo com o bigode (bem evidente na fotografia do meu grupo de combate preparado para sair para uma operação no mato)…
- Cada um sabia qual o seu papel naquela organizada “bagunça”, onde todos eram conhecidos pelo seu nome próprio e não pela sua patente.
- Eramos verdadeiramente um grupo de bandalhos, mas nunca no destacamento houve bandalheira. Como diziam os Sargentos de carreira: serviço é serviço, conhaque é conhaque.
Nota: Se a visita se tivesse realizado em Maio de 1974, talvez tivessemos recebido os vizinhos mais próximos (de Nhacobá), fazendo-os entrar pela porta de armas (virtual) “deitando abaixo”, entre sorrisos e abraços [??] as lindas” botelhas” da Foto nº 4.
Como foi antes do 25 de Abril de 1974, foram recebidos de “sachola” em punho, fazendo lembrar vizinhos desavindos por demarcação de terrenos no Minho.
(Continua…)
___________
Nota do editor:
(*) Último poste da série > 13 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22100: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte VII: Cumbijã: a nossa modesta casinha, os picadores e a crueldade das minas
9 comentários:
Joaquim, ainda não respondi à tua mensagem: já me tinhas falado do teu filho Tiago, e das suas "aventuras" pela pátria de Cabral, aquando da construção da ponte de São Vicente... Tens que lhe pedir para nos fazer uam síntese das suas memórias... Sei que eles, a equipa, chegou a etr uma página na Net...
Mas quanto à tua nora, enfermeira, fico lisongeado por saber que ela se recorda de mim e que eu a terei ajudado na orientação de um trabalho de fim de curso. Possivelmente em curso de pós-graduação, na Escola Nacional de Saúde Pública, ou no curao de mestrado em gestão de saúde... è bom sinal quando os alunos (ainda) se lembram de nós... $stou reformado desde o final do ano lectivo de 2016/2017, já lá vão quase 4 anos... E froam 40 de docência no ensino superior... Dá-lhe um chicoração. LG
a
Gostei. Parabéns. Quero beber um gole desse uísque velhinho quando lançares o livro..
Joaquim, é notável a tua descrição dos nossos "trabalhos de Sísífo" na Guiné...Durante aqueles anos, fomos condenados pelos "deuses" (de Lisboa), a transportar a pedra ao até ao cume da montanha. Como Sísífo... Mas antes de lá chegarmos, a pedra voltava a desprender-se e a rolar encosta abaixo... E tudo recomeçava, no dia seguinte...
Toda a guerra da Guiné foi esse "suplício de Sísifo"... Milhares e milhares de desgraçados andaram a cumprir as mesmas rotinas, com sangue, suor e lágrimas... Para quê ? Para nada!...O sacrifício de uma geração inteira, imolada nas bolanas, lalas, florestas-galeria, savanas e rios/ruas da Guiné...
Valeu a pena ?... Não, não vakeu a pena!... E não tínhamos a alma pequena!...
Um alfabravo fraterno. Luís
NO meu tempo (1969/71), as garrafas de uísque em procalana de que me lembro eram as de "Old Parr" e "Ye Monks"...As da tua foto 4 não me eram familiares... Nas garrafas de vidro, com rótulo, vinha um carimno a dizer "(From Scotland) For the Portuguese Armed Forces"... Eram expressamente "engarrafadas" para os bravos da Guiné... As minhas estafei-as lá, não quis esperar pelos 100 anos... LG
Há tijolos e botijolas.
Cuidado, com 60 anos de botijola pode muito bem já estar estragado.
Dizia-mos a um algum periquito totó 'viske de 12 anos? deve estar estragado, não abras por causa do cheiro, deixa aí serve para assar chouriços',
Mais um belo texto.
Foi assim a guerra na Guiné: os soldados faz-tudo, sem serem palhaços, e a ENG no gabinete a fazer renda topográfica.
Abraço
Valdemar Queiroz
Meu caro Valdemar!
É com muita pena minha que não te posso mandar uma foto do hastear e continência à bandeira no Cumbijâ. Pela simples razão que nunca aconteceu. Creio que (sem certezas) que nem bandeira tinha-mos.
Não quer isto dizer desrespeito aos símbolos deste maravilhoso país, que Marcelo bem descreveu no seu discurso no 25 de Abril, e no qual me revejo, simplesmente a situação na altura não estava para cerimónias protocolares,
Um grande abraço e... aparece para ajudares a assar o chouriço com o whisky 60 anos!
Joaquim Costa
Grande companheiro Luis,
O whisky Old Parr vinha em garrafas de vidro, e não de cerâmica. Pelos vistos ainda vem, a avaliar pela imagem que aqui se vê.
No meu tempo (1972-74) e lugar (Angola), o único whisky que nos chegava em botijas de cerâmica era o Monks. O Ballantines vinha em garrafas de vidro, e não me lembro de ver qualquer das outras marcas da fotografia n.º 4 por lá. De vez em quando também nos vendiam uma garrafa de vodka, julgo que produzido na Finlândia ou outro país nórdico.
Eu não era grande consumidor de whisky, mas a primeira coisa que fazia sempre que regressava de uma operação era ir tomar banho com um copo de whisky na mão. Bebia enquanto me ensaboava. O sabão tirava o sarro de vários dias por fora e o whisky tirava o sarro por dentro. Entrava sabão no copo, mas eu não me importava. Com sabão ou sem ele, nessa ocasião o whisky sabia-me pela vida.
Mais uma vez, conseguiste transcrever aquilo que, por mais que queiramos, não nos sai da memória! Só para informação complementar relativa ao "material" que estava enterrado entre arames, era debaixo da minha cama na tenda do Centro Cripto que se encontrava uma bateria de um Hunimog onde, perto dela existiam dois fios elétricos à espera de um momento (que felizmente nunca chegou) de serem encostados, cada um no seu polo...
Parabéns camarada e amigo! Aquele abraço e.... muita saúde!
João Melo
Tenho, para além da curiosidade comum a qualquer combatente, uma apetência muito especial pela leitura das tuas publicações da guerra, porque não tendo passado por aquele sacrifício desumano, senti todo o vosso sofrimento, numa situação de perigo permanente num meio absolutamente inóspito, precisamente no ponto mais avançado, na cratera do vulcão.
Tempos verdadeiros e muitíssimo bem escritos.
Um abraço para ti, Joaquim Costa, para o Luís e para todos os tabanqueiros.
Carvalho de Mampatá.
Ribeiro, tens razão o "Old Parr" era em garrafa de vidro. O "Monks" é que era em cerâmica... Mas a malta bebia o uísque novo, com água de Perrier (, não bebia a Vichy, por "preconceito", Vichy era, para mim, um topónimo infamante, assoaciado à ocupação da França... na II Guerra Mundial).
A tendência era guardar o "uísque velho" para trazer para a Metrópole... Nesta matéria nunca fui "formiguinha"... Não fiz nenhuma "garrafeira", bebia o que tinha a beber... Hoje é raro beber um uísque.
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