segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Guiné 61/74 - P23938: Notas de leitura (1539): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Dezembro de 2022:

Queridos amigos,
É inequívoco que o coronel Luís Cadete não incorre na prosápia de escrever memórias para as candeias da História, o que ele nos lega é uma diversidade de situações que ajudam a iluminar uma importante região da Guiné em guerra, num período que vai de 1966 a 1968. Creio que é a primeira vez que temos uma água-forte de Mejo e a sua importância no chamado corredor de Guileje onde, igualmente, se irá implantar, no final da governação de Schulz, o octógono de Gandembel; dá-nos o conhecimento das etnias ali conviventes, nesta vasta região onde ele fala de Aldeia Formosa, de Fulacunda, de Buba, das operações de reabastecimento e das singularidades do dia-a-dia. Confessa abertamente que nutria um certo desdém por certas chefias, faz brilhar gente valorosa, heróis anónimos, e sabe prender a nossa atenção em descrições manifestamente dolorosas, como veremos mais adiante, com o incêndio de Contabane, não poupa críticas ao então comandante-chefe, Spínola, pelo abandono daquela posição. Ainda há muito mais para dizer. Teimo que este livro merece muito mais do que a curtíssima edição que lhe destinaram.

Um abraço do
Mário



Muita atenção, há aqui páginas que passarão à posteridade, temos Mejo na literatura! (2)

Mário Beja Santos
Coronel Luís Carlos Loureiro Cadete, ontem e hoje

A
obra intitula-se "Noites de Mejo", o autor assina Luís Cadete, viremos a saber que de seu nome completo é Luís Carlos Loureiro Cadete, foi comandante da CCAÇ 1591, a quem também dedicou o livro, conjuntamente com os seus soldados guineenses. Escreveu estas histórias em 2016 e publicou-as em 2022, edição de autor com produção da Âncora Editora. Deu algum trabalho chegar ao livro, que não está no circuito comercial, o que é profundamente de lamentar, há aqui páginas admiráveis, não faltam tiradas bem urdidas de tragicomédia, revelando ternuras da aculturação, a vida dura num dos pontos mais ásperos que a guerra da Guiné ofereceu aos militares portugueses.

São histórias soltas, como diz o autor, “fruto das minhas recordações e de conversas tidas com camaradas em volta da mesa”, e não será por acaso que se cita Eça de Queiroz: “Sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia”, isto para recordar que nem sempre estamos em Mejo, saltitamos por vários lugares, aliás a estadia em Mejo não chegou aos 9 meses, e vale a pena recordar que muito mais tarde (1988-1991) Luís Cadete desempenhou funções como Adido de Defesa junto das embaixadas de Portugal em Bissau, Dacar e Conacri.

Privilegio algumas das suas descrições, pelo rigor e luminosidade. Um exemplo:
“É Buba uma quase península nas cabeceiras do Rio Grande de Buba, vasta massa de água salgada que ali chega, em sucessivas e intricadas ramificações, vinda do mar.
Sede do comando do Batalhão, tinha anexa uma tabanca com numerosa população que vivia da pesca e de serviços prestados à tropa ali aquartelada.
Militarmente, estava exposta à observação e ao tiro direto do inimigo, facto assombroso que constituía um violentíssimo pontapé nas normais mais elementares da Tática.”


Não esconde juízos implacáveis a comportamentos de seus superiores, como escreve a propósito da visita do General Schulz a Aldeia Formosa, sai do helicóptero e conversa com a figura grada da população civil, o Cherno Rachide Djaló, este apresenta-se imponente na sua elevada estatura, de balandrau e solidéu imaculadamente brancos, o governador pergunta a esta entidade espiritual o que é que o povo da Aldeia Formosa precisa, Rachide Djaló responde em Fula: “Havia aqui, antes da guerra, um posto sanitário e uma maternidade que foram fechados sem o povo perceber qual a causa. Precisamos muito do posto e da maternidade a funcionarem e precisamos também de escola para os meninos. Queremos que nos mandem professores, mas não padres, porque já temos religião. A tropa desta companhia fez um posto médico na tabanca, com camas da tropa, mas não chega; precisamos de médico. É isto que nós precisamos.”

É igualmente preciso a falar da topografia de Mejo e vizinhança:
“Sobe-se para o planalto a partir da bolanha do lado de Mejo, por uma rampa curta, mas íngreme, que dá acesso a uma reta que desemboca diretamente na pista da tabanca e aquartelamento de Guileje.
Daqui desce-se, suavemente para o entroncamento desta estrada com a que vem de Gadamael Porto e segue para a chamada Ponte do Balana, nome do curso superior do rio Cumbijã, a Norte; do topo da pista oposto a Guileje, que se desenvolve num esporão do planalto, desce-se para as numerosas e labirínticas ramificações do rio Cacine de densa vegetação, a Sul; para Norte, coberto de mato denso, estende-se o planalto cortado pelo Cumbijã do qual se sobe, de novo, para outra zona planáltica onde se situam Contabane, Aldeia Formosa (Quebo) e Mampatá.
À esquerda de quem desce para o cruzamento, a cerca de 300 metros, encontra-se uma nascente onde a Companhia de Guileje se abastecia de água e que também dessedentava grupos de terroristas que por ali passavam.”


As suas memórias, inevitavelmente, também se orientam para aqueles episódios burlescos que mais ou menos quem esteve no mato provou, caso do aparecimento repentino da cobra, a bravura anónima de um bazuqueiro, o desespero de se chegar ao quartel e se descobrir que falta uma secção, o caricato de certas reuniões com o corpo do Estado-Maior, com as suas ninharias e inequívoca falta de conhecimento do terreno, a chegada de um oficial do quadro permanente que vinha confortado com gira-discos e canções da moda, os desastres do fornecimento, em que se pedia x de uma quantidade de carne de vaca e apareceram 50 quilos de queijo flamengo, as teimosias do régulo Sambel Baldé, de Mampatá Bacirgo que não tinha problemas de passar a fronteira e punir quem lhe vinha beliscar a vida no regulado. Histórias muito bem contadas que deliciarão não só os antigos combatentes.

Mas vê-se que o autor tende prescrever águas-fortes de locais por onde passou, e dá-nos informações cuidadas, extremamente úteis para quem vier a fazer a historiografia de todos estes locais por onde a guerra grassou e como cada um se posicionou:
“[Quebo] Região eminentemente Fula há vários séculos, nela pontificava o velho régulo Baró Baldé cujo irmão, Leonel, era professor primário, lecionando na residência a expensas suas. Era também sede do chefe espiritual da nação Fula, o famoso e muito respeitado Cherno Rachide Djaló, homem entendido nas coisas do Corão. Quanto mais não fosse, só por isto, Quebo era terra importante, até do ponto de vista estratégico, na guerra que se travava na Guiné.
Naquela vasta e importante região que se estendia, a Sul do rio Corubal, entre os limites ocidentais do regulado de Mampatá e a fronteira com a República da Guiné, vivia-se, nessa altura, em paz. Dizia-se, lá pelos QG de Bissau, e não só, que essa se situação se devia à presença de tão prestigiada figura, mesmo além-fronteiras, como era o Cherno Rachide Djaló. Dizia-se que atuar na citada região seria prejudicial à estratégia do PAIGC. Ou seja, o Cherno era um dos elementos da estratégia do comandante-chefe para a região. Daí, quiçá, os fracos meios atribuídos. De resto, os quadrilheiros do PAIGC só atuavam, ocasionalmente, no regulado de Cumbijã, mais próximo do rio do mesmo nome, a Sul.

Mas nem todos acreditavam naquela interpretação, e com razão como se viu em finais de 1968, durante o consulado do general Spínola. E os primeiros a não acreditarem naquela interpretação eram os régulos, nomeadamente o de Contabane.
E tinham razão para tal.
Como muito bem sabiam as altas-chefias, porquanto as informações fluíam dos régulos e do Cherno para o comando de Companhia e deste para os escalões superiores, há muito que os terroristas, ao mais alto nível político-militar, rondavam a zona para lá da fronteira, reconhecendo o terreno em busca do melhor sítio para se instalarem.”


O autor, quando necessário, não deixa de referir o horror e os padecimento da guerra, caso daquele furriel B, dotado de espírito de missão que fora apanhado em cheio pela deflagração das granadas e projetado de costas alguns metros de distância: “A calote craniana saltara-lhe da cabeça, deixando entrever a massa encefálica; no trono eviscerado, apenas o coração teimava em pulsar pendurado da aorta; dos braços, apenas os úmeros, descarnados, recordavam terem existido ali os membros superiores, enquanto as artérias femorais, meio desbridadas, esguichavam qual repuxo num filme de terror.”


O capitão Nuno Rubim, nosso confrade, comandante de Companhia em Guileje, 1966
Aldeia Formosa em tempos de guerra, com a pista de aviação ao fundo. Com a devida vénia a José da Mota Vieira
Cherno Rachide, Aldeia Formosa, 1973, festa Fula da matança do carneiro, fotografia do nosso estimado confrade Vasco da Gama, ele está perto dessa grande figura espiritual

(continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 26 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23917: Notas de leitura (1536): "Noites de Mejo", por Luís Cadete, comandante da CCAÇ 1591; edição de autor, com produção da Âncora Editora, 2022 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 30 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23930: Notas de leitura (1538): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (10) (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Valdemar Silva disse...

Cherno Rachide Djaló para o General Schulz :

" ....precisamos escola para os meninos. Queremos que nos mandem professores, mas não padres, porque já temos religião. ...."

Bom Ano e saúde da boa
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Não sei do Nuno Rubim há muito. Gostava de ter (boas) notícias dele. Além disso, gigas e gigas de dados sobre a Guiné (mas também a I Grande Guerra no sul de Angola), que um dia manifestou interesse em partilhar com a Tabanca Grande...

Gostava que o cor Cadete integrasse a nossa Tabanca Grande, de pleno direito. Um bom ano novo para ele e os camaradas de Mejo, José Brás e companhia... LG

Cherno Baldé disse...

Caro Valdemar,

Escolas sim, padres não, pois como interpretou o Amadú Bailo Djaló no seu livro "...nós precisavamos de conhecimento sim, mas não de religião, pois já tínhamos a nossa".

Por conhecimentos eu deduzo que ele queria dizer a ciência, a engenharia tecnologica que permitia a supremacia ocidental sobre os outros povos graças aos meios bélicos. E tinham razão porque o mundo sempre foi gerido pela violência e pelo domínio de meios militares e não pela razão e por uma suposta democracia.

Abraços,

Cherno Baldé