sábado, 17 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24407: Os nossos seres, saberes e lazeres (577): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (107): Com sangue d’África, com ossos d’Europa: Ribeira Grande à noite, no dia seguinte em excursão com o sr. Adelino, não faltará Xôxô nem a Ponta do Sol (6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Apetece recordar aquela memória de António Pusich intitulada As Ilhas de Cabo Verde no Princípio do Século XIX, publicada nos anos 1950 por Orlando Ribeiro, no que toca à ilha de Santo Antão: "É mui alta e montuosa esta ilha, fertilissima porém, com boas chuvas, e produz muito milho, feijão e outros frutos, com suficiente quantidade de gado de toda a espécie; produz também muito vinho verde para uso dos seus numerosos habitantes, muita e boa urzela, bastante algodão e anil; e nesta ilha se tece a maior parte dos panos de algodão que servem para comércio da costa da Guiné. O clima desta ilha é mui temperado e saudável, e o seu terreno é todo realengo." Nunca suspeitei vir a ser confrontado com este Éden, fiz estadia na Ribeira Grande, e agora vou seguir para outro ermo, com trapiche na vizinhança, mas antes quero mostrar-vos o que de belo encontrei em Xôxô e Ponta do Sol.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (107):
Com sangue d’África, com ossos d’Europa: Ribeira Grande à noite, no dia seguinte em excursão com o sr. Adelino, não faltará Xôxô nem a Ponta do Sol (6)


Mário Beja Santos

Continuo a coligir ao serão elementos sobre esta sociedade cabo-verdiana depois da abolição da escravatura e até os tempos de hoje. Mal sabia Sá da Bandeira que completada a abolição em 1869, a evolução social da região viveu uma autêntica luta de classes, os senhores da terra, os reinóis, que detinham os privilégios, viram abrirem-se as portas à mobilidade social, emerge uma burguesia, desenvolvem-se os negócios, difunde-se o ensino, por exemplo a Escola Superior da Brava, em 1846, o Seminário Liceu de S. Nicolau, em 1866; os “brancos da terra” pareciam imparáveis. Mas não tanto em todo o arquipélago, especialmente em Santo Antão e S. Nicolau o processo de distribuição das terras foi sujeito a múltiplos condicionalismos, o Estado teve que intervir, dinamizar a fixação de colonos. No Barlavento a terra encontrava-se praticamente sem dono, no Sotavento dominavam os reinóis e até estrangeiros que tinham ascendido ao estatuto de morgados. No virar do século XIX distinguiam-se no espaço social cabo-verdiano os “brancos da terra” e alguns pretos, possuidores das melhores terras, depois uma classe intermédia, com considerável amplitude no Barlavento; e temos por último o campesinato. O retrato só fica verdadeiramente completo na fase contemporânea com a explosão da emigração. Esta emigração não forçada acarreta vários benefícios: regressam com bagagem cultural, constroem, investem, são um polo de dinamização, esbateram-se as distinções raciais (não deixou de haver distinções de hierarquias, como é óbvio) as desigualdades marcam presença, já as vi com nitidez em S. Vicente, muita mão estendida, pareceu-me haver menos pobreza em Santo Antão, mas é perceção de quem por aqui turista escassos dias. Esta noite vou ler o que há de mais importante na bela literatura cabo-verdiana, depois conto.
Em frente à minha casa na Ribeira Grande está a desabrochar penso eu que é uma acácia de uma fenda dentro da rocha, embeveço-me sempre com estas partidas da natureza, então aqui em Santo Antão onde parece que o verde é suficientemente teimoso para querer atapetar o que está à altura dos olhos, quando amanhã andar por Corda, Esponjeira, Lagoa, Cova do Paúl e até Xôxô não será bem assim, há paisagens lunares, ou quase, mas o verde predomina, e guardei também os odores do trabalho do trapiche, o grogue em preparação.
É o que avisto da minha varanda, e ponho-me a pensar como esta sociedade é nova, a população é preponderantemente jovem, interrogo-me porque é que vivem todos uns em cima dos outros, quando desço por estas ruas de dimensões medievais, sombreadas, o que há de mais agradável é cumprimentar toda a gente, até chegar às mercearias, ou descer para tomar café, nunca tinha bebido café de Santo Antão, é muito aromático e tem corpo. Pois bem, alambazei-me com um salmonete, uma bela sopa de abóbora, toca de dar um passeio por esta Ribeira Grande.
Ali perto da igreja, com as portas bem fechadas, soltava-se um coro, dizia-se “glória, glória” sem parar, com vários cambiantes de voz; intrigado, perguntei a um passante o que se passava, era o Sr. Padre a ensaiar o coro, a Quaresma estava à vista, a Ressurreição é momento determinante do cristianismo; entrei por porta lateral e pedi licença para assistir a um ensaio, fui recebido com simpatia, e ali estive um bom tempo a ouvir cantar “glória” sem parar.
Finda a exaltação a Deus renascido, toca de continuar o passeio, havia luz acesa no mercado, ali me deixei ficar atónito, jamais em dias da minha vida vira uma árvore a furar o telhado entre bancas de peixaria, abençoado o construtor que encontrou tão bonita solução, para fazer o encontro entre a natureza do solo terrestre com o mercado daquele peixe que vem do mar próximo, enfim, duas confluências da natureza.
Na minha petulância, ainda me julgo capaz de reter na memória exatamente o que estou a ver, julgo-me ágil, não há que enganar, o que eu estou a ver é Corda, ou Esponjeira, a verdade é que estou hesitante, talvez para o caso não tenha interesse nenhum, o que importa dizer é que o sr. Adelino compareceu à hora certa e o coletivo começou a subir para os céus, já sentia estalos nos ouvidos, ele a mandar olhar para a direita e para a esquerda, a fazer paragens nos miradouros, fiquei surpreendido por haver de um lado uma paisagem lunar e noutra terrenos altamente férteis, talvez Corda, talvez Esponjeira, talvez Lagoa, e dá muito que pensar como lá em baixo a vida se desenvolve, a ilha pode gabar-se de ter boas estradas, embora logo no primeiro dia este exímio condutor, o sr. Adelino, tenha informado que a mais bela paisagem a desfrutar é pela estada velha que se apanha no Porto Novo, estrada do tempo colonial, tem vistas de cortar o fôlego, ficará para a próxima.
Estamos nas alturas, até dá para avistar S. Vicente, é dia de plena luminosidade, sabe-se lá bem porquê aqui do miradouro pensei que estava na ilha de S. Jorge, com aquela descida para as Fajãs e com o canal dos Açores de premeio. Na imagem acima, acredite o leitor que o que registei é a poucas centenas de metros desta deslumbrante descida, Santo Antão é mesmo assim, e agora vamos para o vale do Paúl, os contornos da natureza ainda são mais caprichosos.
É assim mesmo, viemos até ao vale, ouve-se o murmúrio da água a correr, o arvoredo é cerrado, até parece que estamos a amarinhar para as montanhas, e aqui em baixo, enquanto se come frango assado, cercado de bananeiras, mangal, milho, hortas de legumes vários, temos a aspereza das montanhas pela frente, mas sempre com estas cortinas de verdura, até apetece amarinhar por aí acima, não pode ser, o sr. Adelino já olhou para o relógio, vamos voltar para a Ribeira Grande, a itinerância seguinte é Xôxô e Ponta do Sol.
Já não recordo em que dado passo do percurso fixei este recorte da costa, talvez tenha sido quando visitei a praia da Sinagoga, ou no passeio de regresso até Pombas, não importa, deu-me novamente para pensar nos Açores, nesta ligação apertada entre a escarpa e a água, sem transigência alguma para haver praias ou ancoradouros ou enseadas, ali me deixei a contemplar aquele extremo da ilha, pareceu-me o dorso da baleia em repouso. E agora vamos para Xôxô e Ponta do Sol.

(continua)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 10 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24384: Os nossos seres, saberes e lazeres (576): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (106): Com sangue d’África, com ossos d’Europa: chegou a hora de me embrenhar na floresta mágica de Santo Antão (5) (Mário Beja Santos)

Sem comentários: