domingo, 11 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24388: (In)citações (248): "Mais uma conversinha contigo", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)


Mais uma conversinha contigo

adão cruz

A pérfida administração do silêncio é a melhor arma de matar ambições. Vês-me aos encontrões no nevoeiro, sem terra debaixo dos pés, à procura de um ponto de apoio, à procura de um princípio fiável da verdade e nada me dizes. Já reparaste que me escondes sempre a verdade? A verdade senta-se na paleta, mas tu trocas as cores da verdade pelas tintas da fama. Eu sei que todos temos direito ao nosso quarto de hora de fama, ainda que passemos uma vida inteira sem verdade. Gauguin nunca entendera a desordem de Van Gogh e Van Gogh nunca entendera a ordem de Gauguin. No entanto, a procura da verdade fora, provavelmente, a sua vida comum, o seu único acto comum, a consonância da arte que fez da substancialidade da pintura a ressonância dos tempos.

Quanto a mim, o pensar é garantia imediata do caminho da verdade, ainda que não deixe de nos acompanhar a dúvida imensa e incancelável. Quem tem as verdades e certezas das mentes formatadas, dos cabotinos e histriónicos trata a arte como os homens tratam as putas, isto é, utilizam-nas e elas sorriem-lhes, mas não os amam. Dizem eles que o tempo da beleza já passou e que a arte será cada vez mais científica e a ciência cada vez mais artística. Mas não fazem ideia do que dizem. A arte e a ciência, a ciência e a poesia podem fundir-se, é certo, dentro da progressiva cumplicidade entre as Ciências e as Humanidades, mas apenas quando a perversidade dá lugar à música do percurso. Sabemos que o engenho humano já manipula hoje a intimidade da Enciclopédia do Homem e dos muitos milhares de milhões de unidades que a compõem. E tudo isso nos leva a crer que a ciência pode, deve e tem de conviver contigo. Se a neuroplasticidade cerebral é base da compreensão da vida, isso mais nos ajuda a entender que a numerologia da arte é inimiga do sentimento e pode ser o diabo a cortar-te os braços para com eles se persignar. Todo o homem que te ama de verdade morre sempre na incerteza do seu próprio valor.

Na vida dizemos muitos adeuses. A lugares, amigos, relações, a gente que morre e a gente que se despede, a coisas que se acreditam e nos enganam. Só à verdade não é permitido dizer adeus. Será por isso que ma escondes? Consideras divertido esse teu espaço eleito como ideal mítico e atractivo, capaz de nos catapultar até à excelência interpretativa, mas o que nos mostras, a mim pelo menos, é uma cortina de fumo que me esconde o fogo e a espontaneidade da luz. Entre amanheceres e crepúsculos, exiges-me a verticalidade do meio-dia, amargamente impossível neste balancear incessante entre a intensidade do meu sentir, a que não é alheia a tua sensualidade, e a polarização dialéctica e simbólica.

Dentro das alegorias possíveis e de uma espécie de polifonia pictórica, considero-te a música do Universo, a mulher reinventada nas vivências e passagens do tempo, elemento de candor poético na intimidade do quotidiano. Talvez pelo hormonalismo poético da tua imagem feminina, nunca te outorguei o exíguo papel que tantos te atribuem. Mas pago bem caras a aspiração da tua pureza, a procura da tua inocência, a adoração da tua beleza, a ansiedade do teu absoluto, que fazem de mim um náufrago de sonhos preso nos lastros da realidade.

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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24380: (In)citações (247): Já comíamos ostras em Empada, em junho de 1969: abertas em chapa quente com o lume por baixo e passando depois pelo picante e limão... (José Manuel Samouco, ex-fur mil, CCAÇ 2381, 1968/70)

1 comentário:

Eduardo Estrela disse...

"a pérfida administração do silêncio é a melhor arma para matar ambições "

Revoltemo-nos contra os que cOntinuam a cercear a evolução da sensatez e da razoabilidade.
É urgente a arte do respeito e a partilha de valores que permitam deixar de naufragar no mar dos sonhos.
Abraço
Eduardo Estrela