III (e última) parte do texto do Leopoldo Amado, historiador guineense e membro da nossa tertúlia (publicado igualmente no blogue Lamparam II, em post de 21 de Fevereiro de 2006):
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Destaque para o último parágrafo deste importante e oportuno texto, cujo leitura e análise se recomendam aos membros da nossa tertúlia:
" (...) Para lá da obrigação que temos de preservar e partilhar os legados da nossa História comum, é natural e compreensível que subsistam – porventura, subsistirão sempre –, perspectivas interpretativas dissonantes, estas últimas, talvez decorrentes dos novos paradigmas que actualmente consubstanciam o devir das ex-colónias (hoje, países independentes que procuram legitimamente um lugar no contexto africano e no concerto das Nações) e de antiga potência administrante (hoje, um país que se pretende moderno, com uma democracia consolidada e que, legitimamente, aspira a um lugar igualmente digno no contexto europeu e no mundo)".
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Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - III (e última) Parte (*)
Reportando-nos agora ao Pindjiguiti enquanto tal, acontecimento ocorrido na sequência da greve dos trabalhadores do cais de Bissau (Pindjiguiti), a 3 de Agosto de 1959, não nos parece nem relevante, nem curial e nem sensato, atiçar uma estéril polémica acerca do número de trabalhadores mortos ou feridos.
Infelizmente, certamente porque nunca atribuí importância acrescida a questão do número de mortes, não fotocopiei e nem guardei as referências (cotas) de um ou dois relatórios circunstâncias feito então pela PSP que cheguei de manusear e ler nos Arquivos da PIDE/DGS, na Torre do Tombo. No entanto, da leitura desse relatório, fiquei com uma vaga ideia de que os números de mortos aí descritos roçam a casa dos vinte e poucos, não atingindo assim os 50 que tradicionalmente a historiografia oficial do PAIGC assinala. Porém, não se podendo negar a ninguém o interesse em apurar exactamente o número de mortos e feridos de Pindjiguiti, em que ficamos então? No quantitativo que nos é sugerido pela historiografia oficial do PAIGC, do brilhante depoimento de Mário Dias ou da suposição numérica que eu próprio introduzi?
Nos trilhos da procura da verdade, abstendo-nos sempre de emitir qualquer juízo de valor, convenhamo-nos de que persistem ainda questões pertinentes e legítimas a colocar, as quais, entre inúmeras outras plausíveis, podíamos assim tentar alinhavar:
(i) Mário Dias apenas refere-se ao quantitativo dos mortos contados localmente, não se referindo ou ignorando os que eventualmente vieram a morrer na sequência dos ferimentos registados?
(ii) Mário Dias refere-se aos mortos contabilizados na sua presença ou ao quantitativo aferido pela versão que lhe teria chegado ao conhecimento?
(iii) O quantitativo de mortos que alude a historiografia do PAIGC será um caso típico de propaganda?
(iv) Mesmo supondo que o relatório a que me refiro (a existente nos Arquivos da PIDE/DGS) situa, de facto, a ordem de grandezas na casa do vinte e poucos mortos, será que o(s) quantitativo(s) ali estampado(s) correspondem na realidade à verdade dos factos?
Como quer que seja, para lá da veracidade ou não desses números e sem iludirmos com a possibilidade imediatista de virmos a depararmo-mos de forma mágica com toda a verdade, importa sobretudo tomar as declarações dos contendores com cautelas redobradas, seja pela via da confrontação de entrevistas e depoimentos realizados ou a realizar (inclusive com o máximo de sobreviventes ainda vivos e testemunhos presenciais possíveis), seja pela via da prova de autenticidade heurística aplicada ao fenómeno, através de uma aturada investigação que privilegie a confrontação cruzada do teor da documentação disponível com o das entrevistas ou de testemunhos presenciais.
Acresce ainda, já o referimos, a necessidade de adoptarmos uma postura de humildade perante as naturais dúvidas metódicas que imensos aspectos e episódio relativos à guerra colonial versus guerra colonial suscitam, em virtude de ser um acontecimento recente que se reporta-se ao campo da chamada História imediata, que, por isso mesmo, ainda não criou, naturalmente, a necessária estandardização historiográfica susceptível de o conferir um maior grau de sistematização e visibilidade, aliás, razão porque nos seus meandros abundam “zonas cinzentas” cujo grau de verosimilhança ou de distorção, têm ou podem ter diversas e prováveis explicações que vão desde a necessidade de incrementar a investigação que melhore o estado actual dos conhecimentos sobre a matéria, simples desconhecimento metódico, motivações de natureza política, segredo e/ou interesse de Estado, razões de índole “propagandística” ou de deliberada falsificação, tout court.
Os poucos exemplos que a seguir daremos, muitos deles conhecidos do grande público, são ilustrativos do quanto se disse. Nos finais de 1970 em que aludia a 2600 baixas nas forças do PAIGC durante os anos de 1969 e 1970, assim repartidas:
1969 (1038)
Mortos......................614
Feridos.....................259
Capturados..............165
Total.......................1038
1970
Mortos......................895
Feridos.....................449
Capturados................86
Desertores...............132
Total.......................1562
Vê-se claramente que estas estatísticas obedeciam a outros desígnios de propaganda ou da guerra, pois de forma nenhuma podem corresponder a verdade dos factos, na medida em que um exército de guerrilha em que o contingente máximo seria de 5 000, tinha perdido, em dois anos de guerra, 2600 combatentes, sem que a luta tivesse diminuído de intensidade, antes pelo contrário. Isto não precisa de comentários.
Tomando em conta os relatórios secretos do Estado-Maior português, as forças do PAIGC sofreram entre 1963 e 1966 as seguintes perdas, «entre outras perdas»:
1963
Mortos......................1 497
Feridos........................240
Capturados.................287
Total........................2 006
1964
Mortos.................1 589
Feridos...................448
Capturados.........1 492
Total.....................3592
1965
Mortos.................1 153
Feridos...................397
Capturados.........1 761
Total.....................3311
1966
Mortos................1 125
Feridos..................256
Capturados...........700
Total....................2081
Como não possuímos dados referentes a 1967 e 1968, iremos considerar, para estes anos, a média dos anos anteriores. Assim, teríamos, para cada um deles:
Mortos ................1 336
Feridos ..................335
Capturados ........1 010
Total.....................2681
O que totalizaria, compreendendo as pretensas perdas em 1969 e 1970, um total de 18. 889 perdas entre os efectivos do PAIGC no decurso dos 8 anos de luta armada. Se considerarmos as ditas «outras perdas», podemos arredondar este número para 20.000.
Mesmo o observador mais distraído ou o menos favorável à causa da libertação por que o PAIGC dizia bater-se, concluirá que estes números são a melhor propaganda. Na realidade, numa guerra como que decorreu na Guiné entre 1963 e 1974, e nas condições concretas da Guiné, um movimento de libertação que tenha sofrido 20.000 perdas e que continuava com sucesso o combate contra forças numérica e materialmente bem superiores, realizaria um feito singular, senão um milagre.
Na altura da publicação desses números de nada serviu uma entrevista do Governador Militar de Bissau à Televisão portuguesa, na qual afirmou: “No caso particular da Guiné, dos seus 550 mil habitantes, um número que não atinge os 80 000 abandonou o território nacional ou encontra-se refugiado no mato».
Ora, sabe-se que, segundo os números apresentados pela ONU na altura, cerca de 60 mil habitantes da Guiné estavam refugiados, só no Senegal. E como 80.000 menos 60000 é igual a 20.000, devemos concluir que, segundo os números oficiais dos balanços portugueses, secretos ou tornados públicos, eles teriam já matado, ferido ou capturado todas as pessoas que, na Guiné, estariam refugiadas na floresta.
Um outro exemplo que ilustra o quanto se disse, prende-se com a espectaculosidade com que os serviços de informação e propaganda do PAIGC (sem dúvida, de longe o melhor e com maior audiência africana e internacional de todos movimentos de libertação das ex-colónias portuguesas) reivindicou em Julho de 1970 o derrube de um helicóptero que transportava uma importante delegação parlamentar portuguesa na Guiné, quando, na verdade, o aparelho não teria resistido a um forte tornado que acabou por vitimar todos os seus ocupantes.
Aliás, bastaria uma varredura comparativa dos Comunicados de Guerra do PAIGC ou os relatórios escuta das emissões radiofundidas do PAIGC (existentes no Arquivo da PIDE/DGS) com os informes militares do Exército Português na Guiné (Intrep’s, Sitrep, Supintrep’s, etc.,) para darmos conta que a propaganda entre os contendores desencadeava frequentemente uma verdadeira atmosfera guerra de comunicados e que tanto de um lado como doutro, porque compreendiam justamente que a propaganda era uma importantíssima dimensão da guerra, faziam tudo para que os mesmos obedecessem a estratégias militares, mas igualmente a desígnios político-diplomáticos, para além da acção psicossocial.
De resto, esses comunicados tinham também um denominador comum: não raras vezes, eram elaborados com base numa torrente de factos cuja verosimilhança mantinha uma relação de base com o real acontecido, mas apenas como ponto de partida para a partir daí ampliar-se ou amputar-se de forma mitigada os desenvolvimentos ipso factu provenientes do teatro das operações, obviamente, com artifícios e/ou subterfúgios que reforçam a propensão de confundir desde o mais neutral, céptico ou atento observador.
Com efeito, à montante do ciclo fechado da guerra colonial versus guerra de libertação, não é mais possível obliterar-se o direito que assiste a todos de qualificar este ou aquele episódio como um embuste político ou militar ou uma monstruosa mentira, apesar de termos de reconhecer que, do ponto de vista estritamente da investigação histórica, ganhar-se-ia qualitativamente muito mais em procurar indagar as fontes disponíveis e tentar compreender e se possível interpretar as pretensas ou as aludidas distorções, oficiais ou oficiosas que sejam, ao invés de sobre elas se tecer juízos de valor que só aparentemente se nos apresentam como axiomas, quando frequentemente ressentem-se de uma assaz descontextualização factual, nas sua imbricadas conexões e bifurcações.
À distância dos anos da guerra, confidenciou-me um ex-elemento dos Serviços de Informação e Propaganda do PAIGC das circunstâncias em que foi mais ou menos redigido o Comunicado de Guerra que reivindicou para o PAIGC o derrube do helicóptero que então vitimou os deputados portugueses que nele viajavam. Com efeito, disse-me ele que quando abordou Amílcar Cabral, indagando-o se apenas devia no Comunicado noticiar a morte na Guiné de uma importante delegação parlamentar portuguesa, este respondeu-o: “Olha, a verdade é que, de facto, nada tivemos que ver com o sucedido, mas estamos em guerra. E em guerra, acontecimentos desses não caem do céu sem que dele tiremos os dividendos possíveis”.
Assim, pois, o PAIGC elaborou o Comunicado a que se deu a maior difusão internacional. Quanto a real dimensão do sucedido, não obstante os desmentidos vários das autoridades militares portuguesas, os mesmo não colheram provimento nos areópagos internacionais da altura, tanto mais que o PAIGC já tinha granjeado enorme prestígio em matéria de organização político-militar e contava já, no seu palmarés, inclusivamente, com o derrube confirmado de algumas importantes aeronaves da FAP (Força Aérea Portuguesa).
Mas voltemos ao Pindjiguiti, afinal, objecto principal do comentário que nos propusemos escrever, e que já vai longe, à propósito do texto de Mário Dias. Em primeiro lugar, ocorre-nos rebater a ideia redutora de que Pindjiguiti teria apenas sido uma mera reivindicação laboral cujos contornos escapou ao controle das autoridades que, em consequência, viram-se na obrigação e na contingência de usar da força. Se por um lado demostramos já que à jusante do processo libertário guineense Pindjiguiti circunscreve-se como um elo importante na cadeia de acontecimentos directa ou indirectamente a ele relacionados, pelo que não é e nem pode ser tomado como um acontecimento isolado, pontual ou circunstancial, por outro, ocorre questionar, como normalmente se faz em situações de tumultos, se na decorrência de Pindjiguiti teria havido, de facto, real necessidade de uso da força das armas por parte das autoridades coloniais? Por outras palavras, será que a resposta das autoridades coloniais teria sido proporcional à gravidade e a suposta violência gerada pelos grevistas?
Porém, se relativamente ao enquadramento histórico de Pindjiguiti nos posicionamos inequivocamente do lado da tese que aponta para a necessidade de sua contextualização histórica, já em relação as circunstâncias guindaram esta mera ou complexa contenda laboral que, estranhamente, apenas se saldou em mortos num dos lados da contenda, em lugar de aqui e acolá conjecturar com base em juízos de valor, preferimos por agora manter uma postura de dúvida metódica e aguardar serenamente que se faça mais luz sobre o estado actual dos conhecimentos sobre a problemática, se assim o podemos chamar, na media em que, muito para além das prováveis ou reais lacunas existentes na historiografia de um e outro lado, é iniludível do nosso lado a convicção segundo a qual Pindjiguiti representou e representa (com paralelismo português talvez similar ao alcance simbólico que engendrou o sequestro do “Santa Maria” por Henrique Galvão), com a toda a sua carga simbólica, um importante factor de consciencialização e um ponto de viragem decisivo no processo libertário da Guiné-Bissau.
Esta interpretação e esta percepção, independentemente da forma como foi depois objecto de tratamento por parte da historiografia oficial do PAIGC, teve-a avant la lettre Amílcar Cabral, com a clarividência e a capacidade peculiares de antever as situações que sempre o caracterizaram.
Quando a XVª Assembleia Geral das Nações Unidas, na sua reunião plenária de 14 de Dezembro de 1960, aprovou a resolução 1514, mediante a qual estabelecia os princípios para a concessão da independência aos territórios sob domínio colonial e proclamava solenemente “a necessidade de eliminar, rápida e incondicionalmente, o colonialismo em todas as suas formas e manifestações”, Amílcar Cabral e os nacionalistas das ex-colónias reunidos à sua volta (primeiro na CEI (Casa dos Estudantes do Império) e depois no Centro de Estudos Africanos e no MAC, convieram em 192 da necessidade de uma acção espectacular com vista a chamar à atenção da comunidade internacional sobre a situação das colónias portuguesas, particularmente os de África.
Nesse sentido, Amílcar Cabral e Mário de Andrade deslocaram-se várias vezes a Londres entre 1959 e 1960, pelo que datam dessa época as primeiras denúncias internacionais do colonialismo português, os quais foram sobretudo feitas pelo escritor e africanista britânico Basil Davidson, secundados também com conferências de imprensa que aqui e acolá Abel Djassi (pseudónimo de Amílcar Cabral) e Mário de Andrade foram dando em Londres e que acabaram por servir de antecâmara a grande conferência de imprensa que os nacionalistas das colónias portuguesas realizaram depois em Dezembro de 1960.
Assim, escolhida a cidade de Londres, por razões óbvias, obtido o apoio de certos círculos hostis ao colonialismo português e redigido em língua inglesa uma brochura que Amílcar Cabral intitulou Facts About Portugal's African Colonies, o caso que agora nos interessa, realizou-se uma concorrida conferência de imprensa apresentada por parte de cada um dos representantes das colónias portuguesas, versando todos eles sobre a situação das mesmas, dando ênfase ao massacres,(pelo PAI: Amílcar Cabral e Aristides Pereira, pelo MPLA: Mário de Andrade, Viriato da Cruz e Américo Boa Vida e pela Goa League: João Cabral) (29).
É nessa brochura da autoria Amílcar Cabral faz no plano internacional a primeira denúncia de Pindjiguiti, de resto, texto esse que apresentou como o primeiro relatório perante o Conselho especial da ONU em Junho de 1962 e a 12 de Dezembro de 1962, desta feita, quando prestou declarações perante a 4ª Comissão da ONU.
Tratava-se, claro está, de conquistar a adesão, desavisada ou não, dos círculos londrinos e da comunidade internacional, pelo que não se difícil aferir-se ou excluir a hipótese de que a descrição desses massacres teriam sido ou não alvos de excessivo empolamento, tanto mais que no intróito do Facts About Portugal's African Colonies Amílcar Cabral foi incisivo ao espelhar os objectivos subjacentes: “ (...) é preciso conhecer e dar a conhecer os objectivos do inimigo para melhor o combater – tarefa que urge realizar não só junto dos militantes directamente engajados, como junto da opinião africana e internacional, ainda mal informada e muitas vezes iludida pela ideologia colonial portuguesa (...)”.
Porém, é importante referir-se que as denúncias internacionais de Pindjiguiti e que – catalisaram em medida considerável a sua interiorização e longevidade no imaginário colectivo guineense – foram posteriores ao “Memorandum” e “Nota ao Governo Português” endereçados por Amílcar Cabral ao Governo português, o que demonstra que desde cedo o PAI optou sempre por enquadrar e mesmo legitimar o seu substracto ideológico, pelo menos em termos de enunciado, identificando-a com os princípios da legalidade internacional, mormente com o postulado das Nações Unidas e dos Direitos Humanos.
No fundo, o objectivo que Amílcar Cabral perseguia perante o silêncio das autoridades coloniais portuguesas era a obtenção da legalidade e atmosfera internacionais propícias ao desencadeamento da guerra, segundo o postulado que ele próprio definiu como “supremo recurso”, e que acabou de certa maneira por se incorporar no Direito Internacional, ou seja, o direito de recurso a todos os meios possíveis, inclusivamente os violentos, para erradicar o colonialismo. Aliás, não foi por acaso que no dia 25 de Junho de 1962, foi atacado a vila de Catió (destruição da jangada de Bedanda e cortes de fios telefónicos e estradas com abatises), marcando-se do lado do PAIGC à passagem a acção armada, pois a luta armada em só começaria no ano seguinte como ataque ao quartel de Tite, a 23 de Janeiro de 1963.
Daí que, para além das denúncias de caracter económico, político ou humanitário, Amílcar Cabral tivesse também apelado no Facts About Portugal's African Colonies “(...)para todas as forças democráticas e progressistas do mundo, para os povos e para os Governos anti-colonialistas, para as organizações sindicais, da juventude, das mulheres e dos estudantes, para as organizações jurídicas internacionais e, em particular, para os Governos dos países africanos e asiáticos, para que um auxílio concreto e imediato seja concedido ao nosso povo em todos os planos, com vista à libertação dos patriotas presos e ao desenvolvimento da nossa luta de libertação nacional. (...)”. Em particular, renovava “ (...) o seu veemente apelo às Nações Unidas para que, em defesa do seu próprio prestígio aos olhos do mundo, se decidam a tomar, sem demora, medidas eficazes para acabar com os crimes dos colonialistas portugueses no nosso país e obrigar o Governo de Salazar a respeitar o direito do nosso povo à autodeterminação e à independência nacional. (...)”.
Ora, para lá do provável ou mesmo real empolamento de Pindjiguiti ou da justeza ou não das formas e conceitos, sempre discutíveis, sobre a forma como Pindjiguiti foi etiquetado (contenda laboral, massacre ou carnificina) ou ainda do quantitativo de mortes que se saldou na decorrência do acontecimento enquanto tal, temos para nós que o que se afigura importante é o reconhecimento da importância e o alcance históricos que o mesmo teve, à jusante e à montante da guerra colonial/guerra de libertação, no contexto do processo libertário do povo guineense.
Aliás, não foi por acaso que depois de Pindjiguiti o PAIGC logrou atingir uma assinalável mobilização que permitiu o desencadeamento da luta armada de libertação. Também, não foi por acaso que no decorrer da guerra colonial/ guerra de libertação, invariavelmente, o PAIGC normalmente assinalava a efeméride com ataques simultâneos a várias localidades, inclusivamente os centros urbanos, sobretudo a partir de 1968.
Não foi igualmente por acaso que em 1962, os vários partidos e movimentos de libertação que pululavam em Dakar e Conakry (mais contra o PAIGC do que contra o colonialismo português) decidiram criar a 3 de Agosto desse mesmo uma frente de luta, a FLING. Por fim, não também por acaso que Spínola, por ironia do destino, mas com objectivos claramente à vista, procedeu, no âmbito da sua política da “Guiné Melhor”, a 3 de Agosto de 1969, a uma espectacular libertação de cerca de uma centena de prisioneiros políticos, dos quais Rafael Barbosa, Ex-Presidente do PAIGC, bem como todos os que se encontravam na colónia penal de Tarrafal em Cabo Verde, e no Forte de Roçadas, em Angola, em pleno deserto de Moçamedes.
Para fechar este texto – que inicialmente apenas tinha o propósito de tecer um comentário em torno do texto de Mário Dias –, mas que acabou por se alongar demasiadamente, pois comporta(va) a preocupação de subsidiariamente ir dando vazão ao repto lançado por Luís Graça no sentido de trazer à colação elementos disponíveis dos Arquivos. Como dizia, para fechar este texto, direi apenas que, mesmo não subscrevendo algumas ideias expressas por Mário Dias, as quais não obstante procurei rebater com a devida lisura e respectiva contra-argumentação de que me fui valendo, tanto na minha tese de doutoramento como em outras investigações, afirmo e reitero a importância de que se reveste o texto de Mário Dias, de resto, uma contribuição extraordinária para o actual estado do conhecimento sobre a matéria, na justa medida em que, muito para além da importância narrativa e historiográfica que encerra, voluntária ou involuntariamente, quebra o tabú de abordagem sobre um passado recente (a guerra colonial/guerra de libertação) com o qual, talvez por razões compreensíveis e atinentes a uma lenta e demorada catarse ainda não reconciliou com o mesmo os actores passivos dessa mesma guerra, mas também por se afigurar como mais um testemunho presencial, privilegiado, é certo, a juntar-se a muito poucos existentes (30).
Pese embora as normais diferenças de leitura do événementiel, fundado este último em distintas interpretações que se nos opõe relativamente a interpretação do mesmo sujeito histórico (o que é salutar), e ainda as naturais reservas que me suscitaram o importante testemunho presencial de Mário Dias (tanto mais que parte do mesmo reporta-se a uma situação de retransmissão do que lhe foi transmitido (a chamada e imprescindível Oral History tem dessas armadilhas) e porque também, estranhamente, não se referiu a presença no cais de Pindjiguiti, de soldados africanos Domingos Ramos (seu conhecido) e outros como o Constantino Teixeira, vulgo Tchutchú Axon – futuros comandantes da guerrilha do PAIGC (31), do meu lado não restam dúvidas relativamente a preocupações ou motivações que a ambos move – e nisso estamos conversados! –: alertar para a necessidade de uma cada vez maior necessidade de desmistificação e clarificação das naturais “zonas cinzentas” (as “meias-verdades ou mesmo “inverdades”, certamente existentes) que ainda conspurcam a novíssima abordagem histórica da guerra colonial/guerra de libertação, em ordem à reposição, tanto quanto possível, da(s) verdade(s) histórica(s) a que legitimamente todos aspiram e, a não menos importante constatação, no sentido em que ninguém é detentor de toda a verdade histórica sobre a guerra colonial/guerra de libertação e qualquer que ela(s) seja(m), não pode(m), pelo menos por agora, não pode pretender ser única e nem axiomática, tanto mais que, para lá da obrigação que temos de preservar e partilhar os legados da nossa História comum, é natural e compreensível que subsistam – porventura, subsistirão sempre, perspectivas interpretativas dissonantes, estas últimas, talvez decorrentes dos novos paradigmas que actualmente consubstanciam o devir das ex-colónias (hoje, países independentes que procuram legitimamente um lugar no contexto africano e no concerto das Nações) e de antiga potência administrante (hoje, um país que se pretende moderno, com uma democracia consolidada e que, legitimamente, aspira a um lugar igualmente digno no contexto europeu e no mundo).
Leopoldo Amado
Fevereiro de 2005
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Notas do autor:
(29) Marcelino dos Santos estava no grupo mas não participou
(30) Ocorrem-me presentemente apenas os testemunhos presenciais de Upadai Gomes, ex-marinheiro sobrevivente de Pindjiguiti, entretanto já falecido, e de Carlos Correia, ex-Primeiro-Ministro da Guiné-Bissau, que presenciou os acontecimentos a partir das imediações e cercanias do cais de Pindjiguiti) os quais, salvo o erro, foram publicados, há pelo menos dez ou mais anos, no Jornal “Nô Pintcha”, em jeito de evocação histórica da efeméride (3 de Agosto é feriado nacional na Guiné-Bissau
(31) Entrevista de Rafael Barbosa a Leopoldo Amado.
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(*) Vd posts anteriores:
25 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXVII: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - II Parte
22 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXV: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - I Parte
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
domingo, 26 de fevereiro de 2006
sábado, 25 de fevereiro de 2006
Guiné 63/74 - P570: Coragem, sangue-frio e desprezo pelo perigo em Ponta Coli (Sousa de Castro, CART 3494)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > 1972: Militares da CART 3494, em passeio despreocupado pela tabanca do Xime onde, nessa altura, vivia o nosso amigo José Carlos Mussá Biai (tinha 9 anos) (LG).
© Sousa de Castro (2005)
1. Perguntei há dias ao Sousa de Castro se tinha cópia da história da companhia dele, na sequência da publicação do episódio da emboscada sofrida pelos seus camaradas na Ponta Coli, na estrada (já então alcatroada) Xime-Bambadinca, às 6 da manhã do dia 22 de Abril de 1972, e de resultaram pesadas baixas para as NT: 1 morto (furriel), 7 feridos graves e 12 feridos ligeiros...
2. Resposta do nosso camarada:
Não é a história da Companhia, mas sim do BART 3873 [Bambadinca, 1972/74], publicada por um camarada meu, do Porto. Vou tentar falar com ele a saber se ainda tem mais exemplares.
Aproveito para referir, que em relação à emboscada na Ponta Coli, conforme abaixo descrito, tivemos também um 1º cabo e um soldado louvados e distinguidos com o prémio do Governador (gozo de um mês de férias na Metrópole) pela bravura demonstrada quando foram emboscados. Aqui ficam os louvores atribuídos:
(i) Primeiro cabo da CART 3494 Manuel Amorim do Alto, natural da freguesia de Terroso, concelho da Póvoa de Varzim:
« (...) Na emboscada sofrida pelo seu grupo de combate, apesar de se encontrar na zona de morte e sob a acção do fogo inimigo que caía em seu redor, manejou o seu morteiro, com fogo ajustado e firme, conseguindo assim suster o IN que revelava possuir superioridade numérica e elevada agressividade.
«Revelando invulgares qualidades de coragem, sangue-frio e desprezo pelo perigo, disparou quase todas as granadas que o seu grupo de combate transportava e que teve de procurar ao longo da estrada e junto das viaturas, onde se encontravam, apenas parando o seu fogo quando o IN retirou. Por tudo isto e ainda pela sua conduta sempre exemplar noutros aspectos, merece o 1º cabo Amorim do Alto que a sua acção seja realçada em público louvor.»
(ii) Soldado da CART 3494 Manuel de Sousa Monteiro, natural da freguesia da Batalha, [concelho da Batalha,] distrito de Leiria:
" (...) a emboscada sofrida pelo seu grupo de combate, apesar de nos primeiros momentos ter ficado desacordado por ter batido com a cabeça no asfalto, ao saltar da viatura, ter reagido rapidamente e, empregando a G-3, ter contribuído para rechaçar a primeira tentativa de assalto do IN, que se apresentava com elevado poder de fogo, superioridade numérica e grande agressividade. Seguidamente, empunhou o lança-granadas e, em plena zona de morte, batido pelo fogo IN, disparou todas as granadas que estavam perto de si, com tiro ajustado que obrigou o adversário a desistir dos seus intentos. Revelou invulgares qualidades de coragem, sangue-frio e desprezo pelo perigo, pelo que se tornou merecedor de público louvor.»
Guiné > Região Leste > Sector L1 > Xime > 1972: O Manuel G. Ferreira, soldado condutor auto, dos Fantasmas do Xime (CART 3494), fotografado no cantinho (sempre muito acarinhado pelas NT) dos brasões das companhias que por ali passaram: CCAÇ 1550 (1966/67) (1), CART 1746 (1967/69) (2), CART 2520 (1969/1970), CART 2715 (1970/71), CART 3494 (1972/1973) e, mais tarde, CCAÇ 12 (1973/74) (LG).
© Manuel Ferreira (2005)
Luís, estes são dois extractos retirados das revistas do Exército que existiam naquela época. Bom fim de semana.
Sousa de Castro
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Nota de L.G.
(1) Até agora a referência que temos à companhia mais antiga no Xime é a CCAÇ 1550 que presumo ter feito a sua comissão no período entre 1966/67: vd. post de 1 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - X: Memórias de Fá, Xime, Enxalé, Porto Gole, Bissá, Mansoa
" (...) Em 21 de Fevereiro de 1967, o nosso homem está destacado no Xime, aquartelamento da CCAÇ 1550:
Neste quartel de Xime, onde temos permanecido desde a saída de Fá, está-se em contacto permanente com os indígenas, que vivem à entrada numa tabanca, com enorme população, sendo alguns deles soldados dum pelotão de nativos. Já percorri a mesma, e tive o primeiro contacto com as bajudas(raparigas adolescentes nativas), em companhia de camaradas mais velhos, que pertencem à Companhia de Caçadores nº 1550, cá destacada, e comecei a [papaguear] o crioulo. Como curiosidade tive nos braços um garoto mulato, talvez fruto da passagem dos primeiros militares brancos, por cá, no início da guerra " (...).
(2) Como muito bem lembra o Humberto Reis, eram eles, os velhinhos da CART 1746 que lá estavam lá, no cais do Xime, com um grande lençol branco onde estava escrito "o que custa mais são os primeiros 21 meses"... quando nós - CCAÇ 12 e outros periquitos desembarcámos da LDG, na manhã de 2 de Junho de 1969)Na mesma LDG, vinha a CART 2520 que veio substituir a CART 1746...
© Sousa de Castro (2005)
1. Perguntei há dias ao Sousa de Castro se tinha cópia da história da companhia dele, na sequência da publicação do episódio da emboscada sofrida pelos seus camaradas na Ponta Coli, na estrada (já então alcatroada) Xime-Bambadinca, às 6 da manhã do dia 22 de Abril de 1972, e de resultaram pesadas baixas para as NT: 1 morto (furriel), 7 feridos graves e 12 feridos ligeiros...
2. Resposta do nosso camarada:
Não é a história da Companhia, mas sim do BART 3873 [Bambadinca, 1972/74], publicada por um camarada meu, do Porto. Vou tentar falar com ele a saber se ainda tem mais exemplares.
Aproveito para referir, que em relação à emboscada na Ponta Coli, conforme abaixo descrito, tivemos também um 1º cabo e um soldado louvados e distinguidos com o prémio do Governador (gozo de um mês de férias na Metrópole) pela bravura demonstrada quando foram emboscados. Aqui ficam os louvores atribuídos:
(i) Primeiro cabo da CART 3494 Manuel Amorim do Alto, natural da freguesia de Terroso, concelho da Póvoa de Varzim:
« (...) Na emboscada sofrida pelo seu grupo de combate, apesar de se encontrar na zona de morte e sob a acção do fogo inimigo que caía em seu redor, manejou o seu morteiro, com fogo ajustado e firme, conseguindo assim suster o IN que revelava possuir superioridade numérica e elevada agressividade.
«Revelando invulgares qualidades de coragem, sangue-frio e desprezo pelo perigo, disparou quase todas as granadas que o seu grupo de combate transportava e que teve de procurar ao longo da estrada e junto das viaturas, onde se encontravam, apenas parando o seu fogo quando o IN retirou. Por tudo isto e ainda pela sua conduta sempre exemplar noutros aspectos, merece o 1º cabo Amorim do Alto que a sua acção seja realçada em público louvor.»
(ii) Soldado da CART 3494 Manuel de Sousa Monteiro, natural da freguesia da Batalha, [concelho da Batalha,] distrito de Leiria:
" (...) a emboscada sofrida pelo seu grupo de combate, apesar de nos primeiros momentos ter ficado desacordado por ter batido com a cabeça no asfalto, ao saltar da viatura, ter reagido rapidamente e, empregando a G-3, ter contribuído para rechaçar a primeira tentativa de assalto do IN, que se apresentava com elevado poder de fogo, superioridade numérica e grande agressividade. Seguidamente, empunhou o lança-granadas e, em plena zona de morte, batido pelo fogo IN, disparou todas as granadas que estavam perto de si, com tiro ajustado que obrigou o adversário a desistir dos seus intentos. Revelou invulgares qualidades de coragem, sangue-frio e desprezo pelo perigo, pelo que se tornou merecedor de público louvor.»
Guiné > Região Leste > Sector L1 > Xime > 1972: O Manuel G. Ferreira, soldado condutor auto, dos Fantasmas do Xime (CART 3494), fotografado no cantinho (sempre muito acarinhado pelas NT) dos brasões das companhias que por ali passaram: CCAÇ 1550 (1966/67) (1), CART 1746 (1967/69) (2), CART 2520 (1969/1970), CART 2715 (1970/71), CART 3494 (1972/1973) e, mais tarde, CCAÇ 12 (1973/74) (LG).
© Manuel Ferreira (2005)
Luís, estes são dois extractos retirados das revistas do Exército que existiam naquela época. Bom fim de semana.
Sousa de Castro
___________
Nota de L.G.
(1) Até agora a referência que temos à companhia mais antiga no Xime é a CCAÇ 1550 que presumo ter feito a sua comissão no período entre 1966/67: vd. post de 1 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - X: Memórias de Fá, Xime, Enxalé, Porto Gole, Bissá, Mansoa
" (...) Em 21 de Fevereiro de 1967, o nosso homem está destacado no Xime, aquartelamento da CCAÇ 1550:
Neste quartel de Xime, onde temos permanecido desde a saída de Fá, está-se em contacto permanente com os indígenas, que vivem à entrada numa tabanca, com enorme população, sendo alguns deles soldados dum pelotão de nativos. Já percorri a mesma, e tive o primeiro contacto com as bajudas(raparigas adolescentes nativas), em companhia de camaradas mais velhos, que pertencem à Companhia de Caçadores nº 1550, cá destacada, e comecei a [papaguear] o crioulo. Como curiosidade tive nos braços um garoto mulato, talvez fruto da passagem dos primeiros militares brancos, por cá, no início da guerra " (...).
(2) Como muito bem lembra o Humberto Reis, eram eles, os velhinhos da CART 1746 que lá estavam lá, no cais do Xime, com um grande lençol branco onde estava escrito "o que custa mais são os primeiros 21 meses"... quando nós - CCAÇ 12 e outros periquitos desembarcámos da LDG, na manhã de 2 de Junho de 1969)Na mesma LDG, vinha a CART 2520 que veio substituir a CART 1746...
Guiné 63/74 - P569: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - II Parte
II parte do texto do Leopoldo Amado, historiador guineense e membro da nossa tertúlia (publicado igualmente no blogue Lamparam II, em post de 21 de Fevereiro de 2006):
Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - II Parte (*)
A independência do Gana (1957) e as perspectivas da independência da Guiné Conakry e do Senegal (1958 e 1959) rapidamente transformaram a predisposição latente de luta pela independência dos guineenses num entusiasmo difuso, alimentado pela expectativa imediatista duma iminente libertação pacífica da Guiné, à semelhança do que ocorrera com os territórios africanos vizinhos.
Coincidentemente, e sob o impulso de elementos directamente doutrinados por Amílcar Cabral, registou-se em 1957 uma primeira grande greve dos trabalhadores no cais de Pindjiguiti em Bissau (12), apesar de que é a independência da República da Guiné que iria doravante funcionar como o ponto de partida e o leitmotiv para um amplo movimento para a independência.
Chega-se assim aos inícios da década de 50 do século XX com um nacionalismo guineense já mais amadurecido, pois, nesse período, para além de toda a carga histórica e cultural que comportou a resistência à ocupação colonial, este nacionalismo começou a ser directa ou indirectamente influenciada pela evolução política no Senegal e na Guiné Conakry, apesar de que as organizações surgidas na altura terem um carácter incipiente, reflectindo todos eles um certo idealismo.
O primeiro das organizações políticas a aparecer foi o MING (Movimento Nacional para a Independência da Guiné). Todavia, António E. Duarte Silva (13) atribui a paternidade da fundação do MING, em 1955, a José Francisco Gomes ("Maneta") e Luís da Silva ("Tchalumbé"), não obstante saber-se que o MING tinha por detrás a mão de Amílcar Cabral, não teve propriamente acções conhecidas e nem grande projecção.
Segui-se-lhe o PAI (Partido Africano para a Independência, fundado em 1956 por Amílcar Cabral (e que só se transformaria em 1962 em PAIGC), apesar deste Partido ter sido forçado a experimentar um período de profunda hibernação (1956-1959), dado que o Governador Peixoto Correia, depois de devidamente informado sobre as actividades de Amílcar Cabral, proibiu-o de estabelecer residência na Guiné, transferindo-o compulsivamente para Angola.
Portanto, é nesse hiato em que as actividades do PAI quase desaparecem, que é fundado o MLG (Movimento para Independência da Guiné), um movimento que integra sobretudo os guineenses, nomeadamente os dignatários com que Cabral havia começado a trabalhar desde 1952 e que, entretanto, assumem a liderança desse movimento.
João Rosa, um dos líderes históricos do MLG lembra (segundo o seu auto de interrogatório na PIDE datado de 1962) de ter integrado este movimento a convite de José Francisco Gomes e de ter participado na primeira reunião do MLG em princípios de 1958, na qual estiveram igualmente César Fernandes, Ladislau Lopes, este último mobilizado por Rafael Barbosa, elemento que viria a revelar a grande veia mobilizadora, chegando mesmo a protagonizar em entre 1959 e 1959 uma rotura que praticamente definhou a estrutura residual do MLG em Bissau, apesar de que em jeito de révanche e antecipação ao PAI, sempre ia desenvolvendo uma ou outra acção clandestina com o objectivo de demarcar-se publicamente do PAI, à semelhança do correio que enviou a todas as repartições públicas no dia 8 de Fevereiro de 1960, de um “Comunicado do Movimento de Libertação”, de resto, em tudo semelhante a “Representação” que o Lacerda produziu a pedido de César Mário Fernandes e José Francisco Gomes (assinada por várias pessoas) ao Presidente da República de Portugal em 1955, aquando da visita deste à Guiné.
Eram ainda da nata fundadora do MLG indivíduos tais como Tomás Cabral de Almada, Paulo Lomba Aquino Pereira e José Ferreira de Lacerda, o patriarca do MLG e líder consensual deste movimento, tido desde 1948 como o líder do Partido Socialista (14), que só não participou no acto da fundação do MLG porque à data da sua consumação encontrava-se em Lisboa, no gozo da licença graciosa na qualidade de funcionário administrativo, tanto mais que segundo palavras de Elisée Turpin, "(...) logo após a Segunda Guerra Mundial, uma organização que tinha como cérebro principal o guineense José Ferreira de Lacerda, funcionário público em Bolama, o qual liderava um movimento que de alguma forma tinha influência no Conselho do Governo colonial, chegando quase a ganhar uma eleição para o provimento desse órgão, quando foi abafado e reprimido pelas autoridades coloniais (...)(15)”.
Outra peça documental imprescindível para se compreender e enquadrar as acções do MLG, pelo menos do período que se estende de 1958 ao Pindjiguiti, são os clarividentes autos de interrogatório (16) da PIDE a Isidoro Ramos (ainda vivo). Aí ele é taxativo ao lembrar-se de, em princípios de 1958, ter visto um grupo de indivíduos em frente a Farmácia Lisboa que o abordarem sobre questões relativas a independência, aliás, reunião essa em que também se encontravam Ladislau Justado Lopes (enfermeiro), Epifânio Souto Amado (empregado de farmácia), César Mário Fernandes (empregado do trafego do cais de Pindjiguiti), Rafael Barbosa ( “o Coxo”, ou “Patrício”, olheiro da construção civil), José de Barros (guarda-fios dos CTT).
Nos autos de interrogatório de Isidoro Ramos, este lembra de, uns dias mais tarde, ter sido abordado por Ladislau Justado Lopes que o informou de que iriam formar um Movimento de Libertação e que estavam a ver que pessoas é que podiam ser admitidas, pelo que imediatamente anuiu ao convite no sentido de integrar o Movimento de Libertação, após ter sido informado pelo seu interlocutor de que Fernando Fortes (funcionário da estação postal dos CTT) e Aristides Pereira (telegrafista dos CTT) também faziam parte desse grupo.
Aliás, salvo raras excepções, de 1958 a 1961, numa amálgama inextricável, alguns destacados dirigentes do MLG e do PAI, indistintamente, partilharam, voluntária ou involuntariamente o mesmo espaço político (17) coincidindo essa fase com o período em que ainda se acreditava ser possível, a breve trecho, sobretudo da parte do MLG, o início do processo que havia de conduzir a Guiné "dita portuguesa" à independência.
Na verdade, a criação em Bissau, em 1958, do MLG (Movimento de Libertação da Guiné), a par das perseguições das autoridades coloniais, constituiu-se no mais sério problema para os propósitos unitários que Amílcar Cabral postulava na luta contra o colonialismo português na Guiné. O MLG, que desenvolvia acções numa perspectiva política pouco elaborada, cedo hostilizou Amílcar Cabral, a quem alcunhou pejorativamente de "caboverdiano".
Este movimento acusava os caboverdianos de terem ajudado os portugueses na dominação colonial da Guiné e, perante a iminência de independência, pretenderem substituir os colonialistas. A miragem de uma independência prestes a concretizar-se, à semelhança do que ocorreu nas colónias francesas da Guiné "dita francesa" e do Senegal, precipitou nas hostes do MLG a tendência para a organização de um movimento que procurasse congregar no seu seio alguns poucos guineenses ilustres, dando assim primazia a necessidade de sublimação das inquietações mais personalizadas que colectivas, relegando para um plano secundário a preparação para a luta armada e a estruturação do movimento em termos populares.
O ambiente de luta pela independência, levou a que os nacionalistas guineenses e caboverdianos de Bissau se posicionassem a favor do candidato da oposição, Humberto Delgado, nas eleições presidenciais de 1958 que opuserem este a Américo Tomás.
Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - II Parte (*)
A independência do Gana (1957) e as perspectivas da independência da Guiné Conakry e do Senegal (1958 e 1959) rapidamente transformaram a predisposição latente de luta pela independência dos guineenses num entusiasmo difuso, alimentado pela expectativa imediatista duma iminente libertação pacífica da Guiné, à semelhança do que ocorrera com os territórios africanos vizinhos.
Coincidentemente, e sob o impulso de elementos directamente doutrinados por Amílcar Cabral, registou-se em 1957 uma primeira grande greve dos trabalhadores no cais de Pindjiguiti em Bissau (12), apesar de que é a independência da República da Guiné que iria doravante funcionar como o ponto de partida e o leitmotiv para um amplo movimento para a independência.
Chega-se assim aos inícios da década de 50 do século XX com um nacionalismo guineense já mais amadurecido, pois, nesse período, para além de toda a carga histórica e cultural que comportou a resistência à ocupação colonial, este nacionalismo começou a ser directa ou indirectamente influenciada pela evolução política no Senegal e na Guiné Conakry, apesar de que as organizações surgidas na altura terem um carácter incipiente, reflectindo todos eles um certo idealismo.
O primeiro das organizações políticas a aparecer foi o MING (Movimento Nacional para a Independência da Guiné). Todavia, António E. Duarte Silva (13) atribui a paternidade da fundação do MING, em 1955, a José Francisco Gomes ("Maneta") e Luís da Silva ("Tchalumbé"), não obstante saber-se que o MING tinha por detrás a mão de Amílcar Cabral, não teve propriamente acções conhecidas e nem grande projecção.
Segui-se-lhe o PAI (Partido Africano para a Independência, fundado em 1956 por Amílcar Cabral (e que só se transformaria em 1962 em PAIGC), apesar deste Partido ter sido forçado a experimentar um período de profunda hibernação (1956-1959), dado que o Governador Peixoto Correia, depois de devidamente informado sobre as actividades de Amílcar Cabral, proibiu-o de estabelecer residência na Guiné, transferindo-o compulsivamente para Angola.
Portanto, é nesse hiato em que as actividades do PAI quase desaparecem, que é fundado o MLG (Movimento para Independência da Guiné), um movimento que integra sobretudo os guineenses, nomeadamente os dignatários com que Cabral havia começado a trabalhar desde 1952 e que, entretanto, assumem a liderança desse movimento.
João Rosa, um dos líderes históricos do MLG lembra (segundo o seu auto de interrogatório na PIDE datado de 1962) de ter integrado este movimento a convite de José Francisco Gomes e de ter participado na primeira reunião do MLG em princípios de 1958, na qual estiveram igualmente César Fernandes, Ladislau Lopes, este último mobilizado por Rafael Barbosa, elemento que viria a revelar a grande veia mobilizadora, chegando mesmo a protagonizar em entre 1959 e 1959 uma rotura que praticamente definhou a estrutura residual do MLG em Bissau, apesar de que em jeito de révanche e antecipação ao PAI, sempre ia desenvolvendo uma ou outra acção clandestina com o objectivo de demarcar-se publicamente do PAI, à semelhança do correio que enviou a todas as repartições públicas no dia 8 de Fevereiro de 1960, de um “Comunicado do Movimento de Libertação”, de resto, em tudo semelhante a “Representação” que o Lacerda produziu a pedido de César Mário Fernandes e José Francisco Gomes (assinada por várias pessoas) ao Presidente da República de Portugal em 1955, aquando da visita deste à Guiné.
Eram ainda da nata fundadora do MLG indivíduos tais como Tomás Cabral de Almada, Paulo Lomba Aquino Pereira e José Ferreira de Lacerda, o patriarca do MLG e líder consensual deste movimento, tido desde 1948 como o líder do Partido Socialista (14), que só não participou no acto da fundação do MLG porque à data da sua consumação encontrava-se em Lisboa, no gozo da licença graciosa na qualidade de funcionário administrativo, tanto mais que segundo palavras de Elisée Turpin, "(...) logo após a Segunda Guerra Mundial, uma organização que tinha como cérebro principal o guineense José Ferreira de Lacerda, funcionário público em Bolama, o qual liderava um movimento que de alguma forma tinha influência no Conselho do Governo colonial, chegando quase a ganhar uma eleição para o provimento desse órgão, quando foi abafado e reprimido pelas autoridades coloniais (...)(15)”.
Outra peça documental imprescindível para se compreender e enquadrar as acções do MLG, pelo menos do período que se estende de 1958 ao Pindjiguiti, são os clarividentes autos de interrogatório (16) da PIDE a Isidoro Ramos (ainda vivo). Aí ele é taxativo ao lembrar-se de, em princípios de 1958, ter visto um grupo de indivíduos em frente a Farmácia Lisboa que o abordarem sobre questões relativas a independência, aliás, reunião essa em que também se encontravam Ladislau Justado Lopes (enfermeiro), Epifânio Souto Amado (empregado de farmácia), César Mário Fernandes (empregado do trafego do cais de Pindjiguiti), Rafael Barbosa ( “o Coxo”, ou “Patrício”, olheiro da construção civil), José de Barros (guarda-fios dos CTT).
Nos autos de interrogatório de Isidoro Ramos, este lembra de, uns dias mais tarde, ter sido abordado por Ladislau Justado Lopes que o informou de que iriam formar um Movimento de Libertação e que estavam a ver que pessoas é que podiam ser admitidas, pelo que imediatamente anuiu ao convite no sentido de integrar o Movimento de Libertação, após ter sido informado pelo seu interlocutor de que Fernando Fortes (funcionário da estação postal dos CTT) e Aristides Pereira (telegrafista dos CTT) também faziam parte desse grupo.
Aliás, salvo raras excepções, de 1958 a 1961, numa amálgama inextricável, alguns destacados dirigentes do MLG e do PAI, indistintamente, partilharam, voluntária ou involuntariamente o mesmo espaço político (17) coincidindo essa fase com o período em que ainda se acreditava ser possível, a breve trecho, sobretudo da parte do MLG, o início do processo que havia de conduzir a Guiné "dita portuguesa" à independência.
Na verdade, a criação em Bissau, em 1958, do MLG (Movimento de Libertação da Guiné), a par das perseguições das autoridades coloniais, constituiu-se no mais sério problema para os propósitos unitários que Amílcar Cabral postulava na luta contra o colonialismo português na Guiné. O MLG, que desenvolvia acções numa perspectiva política pouco elaborada, cedo hostilizou Amílcar Cabral, a quem alcunhou pejorativamente de "caboverdiano".
Este movimento acusava os caboverdianos de terem ajudado os portugueses na dominação colonial da Guiné e, perante a iminência de independência, pretenderem substituir os colonialistas. A miragem de uma independência prestes a concretizar-se, à semelhança do que ocorreu nas colónias francesas da Guiné "dita francesa" e do Senegal, precipitou nas hostes do MLG a tendência para a organização de um movimento que procurasse congregar no seu seio alguns poucos guineenses ilustres, dando assim primazia a necessidade de sublimação das inquietações mais personalizadas que colectivas, relegando para um plano secundário a preparação para a luta armada e a estruturação do movimento em termos populares.
O ambiente de luta pela independência, levou a que os nacionalistas guineenses e caboverdianos de Bissau se posicionassem a favor do candidato da oposição, Humberto Delgado, nas eleições presidenciais de 1958 que opuserem este a Américo Tomás.
Conta Aristides Pereira que “(...) eu, o Fortes e outros patriotas organizámos as coisas de maneira a dominar a situação e fizemos um trabalho subterrâneo de forma a que chegasse às pessoas o que quiséssemos, por exemplo, as listas de voto de Humberto Delgado. Foi assim que a administração ficou perplexa quando apareceram em todos os círculos votos a favor do mesmo. Mas apesar de haver muito boa vontade da nossa parte, havia também muita falta de experiência. Porém, as nossas acções só começaram a ter alguma expressão prática depois da passagem do Amílcar na Guiné. Antes eram apenas ideias (18)".
Como quer que seja, é dado adquirido que o PAI, enquanto tal, até pelo hiato referido que caracterizou a sua quase inacção entre 1956 e 1959, não teve, pelo menos directamente, uma acção ou influência decisivas nas acções que viriam a desembocar em Pindjiguiti. Diferentemente do PAI, a mesma asserção já não pode aferir-se relativamente ao MLG que teve, de facto, uma assinalável e directa participação directa nos acontecimentos. Efectivamente, activistas do MLG tais como César Mário Fernandes (empregado do tráfego do cais de Pindjiguiti), Paulo Gomes Fernandes e José Francisco Gomes tinham-se há muito empenhado em acções de discreta mobilização e consciencialização política dos trabalhadores portuários em geral e dos marinheiros e estivadores do cais de Pindjiguiti em particular (19).
Com feito, Amílcar Cabral só regressaria a Guiné em Setembro de 1959 (14 a 21 de Setembro), isto é, um mês após Pindjiguiti, mas não antes sem ter feito um verdadeiro périplo aos países africanos recém independentes (Congo Kinshasa, Gana, Libéria, etc.) junto dos quais começou discretamente a procurar apoio político e material para a luta de libertação nacional.
Como quer que seja, é dado adquirido que o PAI, enquanto tal, até pelo hiato referido que caracterizou a sua quase inacção entre 1956 e 1959, não teve, pelo menos directamente, uma acção ou influência decisivas nas acções que viriam a desembocar em Pindjiguiti. Diferentemente do PAI, a mesma asserção já não pode aferir-se relativamente ao MLG que teve, de facto, uma assinalável e directa participação directa nos acontecimentos. Efectivamente, activistas do MLG tais como César Mário Fernandes (empregado do tráfego do cais de Pindjiguiti), Paulo Gomes Fernandes e José Francisco Gomes tinham-se há muito empenhado em acções de discreta mobilização e consciencialização política dos trabalhadores portuários em geral e dos marinheiros e estivadores do cais de Pindjiguiti em particular (19).
Com feito, Amílcar Cabral só regressaria a Guiné em Setembro de 1959 (14 a 21 de Setembro), isto é, um mês após Pindjiguiti, mas não antes sem ter feito um verdadeiro périplo aos países africanos recém independentes (Congo Kinshasa, Gana, Libéria, etc.) junto dos quais começou discretamente a procurar apoio político e material para a luta de libertação nacional.
Assim, a reivindicação a posteriori da paternidade de Pindjiguiti por parte do PAI(GC) só se pode compreender na medida em que o MLG como o PAIGC partilhavam indistintamente o mesmo espaço político, a mesma clientela, chegando mesmo muitos membros do PAI a serem concomitantemente do PAI e vice-versa, de resto, tendência essa que em certa medida se acentua mesmo depois de consumada a rotura, sobretudo a partir do momento em que, a partir de Conakry e Dakar, Amílcar Cabral passou a produzir e a expedir para Bissau inúmeros panfletos que, à cautela, omitiam de propósito quer a sigla do PAI como a do MLG, para apenas se referir ao Movimento de Libertação da Guiné e Cabo-Verde, os quais, de resto, eram clandestinamente distribuídos em Bissau por elementos de filiação dupla (20), particularmente os que, não renegando o MLG, de alguma maneira permaneceram no PAI sob a influência de Rafael Barbosa, mesmo após a cisão.
Curiosamente, a PIDE conseguiu tardiamente reconstituir, através da sua rede informadores em África, todos os passos de Amílcar Cabral neste périplo (itinerário, autoridades contactadas, assuntos versados, etc.), na medida em que tal reconstituição só se concluiu quando Amílcar Cabral tinha já tinha saído de Bissau, onde, numa estada de cerca de uma semana (14 a 21 de Setembro de 1959), informou os correligionários que iria instalar a Sede do exterior do PAI em Conakry, a qual, doravante, se articularia com a Sede do PAI do interior, que acabou clandestinamente por ser instalada pouco depois numa palhota em Bissalanca (21).
Na sua meteórica passagem por Bissau, Amílcar Cabral acordou com os seus principais colaboradores, na altura Aristides Pereira, Luís Cabral, Fernando Fortes, Rafael Barbosa (22) e João da Silva Rosa em como largaria tudo e seguiria para a República da Guiné (Conakry) de onde enviaria directrizes. Efectivamente, a decisão de Amílcar Cabral de escolher um poiso de apoio na Guiné-Conakry foi devidamente sustentada com o exemplo de Pindjiguiti, pois que para ele era a prova iniludível da natureza permanentemente violenta do sistema colonial que, sintomaticamente, tinha maior força nos centros urbanos, donde a razão porque era preciso proceder a uma extensa e meticulosa preparação para a guerra de libertação e a mobilização dos camponeses para responder com violência à violência colonial.
É essa linha de raciocínio esse que presidiu ao envio, a 15 de Novembro de 1960, de um Memorandum a que Salazar nem sequer se dignou responder e que propunha uma série de medidas, “para a liquidação pacifica da dominação colonial "(23), secundando-o também, na mesma lógica, a “Nota Aberta ao Governo Português”, na qual, em jeito de “’ultima tentativa “para a liquidação pacifica da dominação colonial" (24), reitera o teor do Memorandum de Novembro de 1960.
No entanto, em Bissau, consumada que foi a rotura entre o PAI e o MLG, este último Movimento de Libertação quase que desapareceu, vindo todavia a ressurgir-se das cinzas no além fronteiras, a saber, em Dakar, Ziguinchor e Conakry, sobretudo a partir do momento em que um número relativamente considerável de nacionalistas guineenses tiveram que acorrer a essas países recém independentes, seja na qualidade de emigrantes económicos, seja para darem continuidade as acções políticas, ou motivados conjuntamente pelos dois factores, sobretudo após Pindjiguiti e a subsequente grande vaga de repressão que em Abril de 1961 foram efectuadas pela PIDE, seguindo-se-lhe uma outra, igualmente da responsabilidade da PIDE, ocorrida em Fevereiro de 1962 (25). Nestas correntes de emigração, divisam-se motivações que se reportavam a certo sentimento de concorrência em relação ao PAI, mas também era possível descortinar nelas um certo frenesim alimentado pela ideia imediatista da independência.
Foi o caso, por exemplo, dos enfermeiros que fugiram para a Guiné Conakry desde 1959 e que todos a trabalhavam todos no Hospital “Ballay” como, Paulo Dias (que veio posteriormente a ascender ao cargo de Presidente da FLING-COMBATENTE, uma das facções dissidentes da FLING (Frente de Libertação para independência Nacional da Guiné, surgida em Dakar a 3 de Agosto de 1962), João Fernandes (26) e Inácio Silva (27), Fernando Laudelino Gomes (28), sendo este último o locutor principal de um programa emitido semanalmente a partir da rádio Conakry, o qual era basicamente alimentado pelas notícias que basicamente denunciavam as reais ou pretensas atrocidades do colonialismo e que eram alimentadas sobretudo pelas notícias que César Mário Fernandes e Rafael Barbosa enviavam clandestinamente para Laudelino Gomes.
No Senegal, o MLG enraizou-se sobretudo entre os inúmeros refugiados guineenses ali instalados, calculados em cerca de 60.000 pessoas. Dakar acolheu ainda outras organizações tal como a UPG (União Popular para a Libertação da Guiné), a UPCG (União Popular para a Libertação da Guiné) o Rassemblement Democratique Africain de La Guiné (RDAG) que desde 1956 fez propaganda no sul da Guiné, em especial na área de Cacine e a UNGP (União dos Naturais da Guiné-Portuguesa), enquanto que em Conakry o médico e nacionalista angolano-santomense, Hugo Azancot de Menezes, propositadamente expedido para Conakry no quadro do Centro de Estudos Africanos (uma dissidência protagonizada no seio da Casa dos Estudantes do Império essencialmente por Amílcar Cabral, guineense-caboverdiano, Mário de Andrade, angolano e Francisco José Tenreiro, santomense) e do MAC (Movimento Anti-Colonial), passou a enquadrar embrionariamente os guineenses nacionalistas ali emigrados através do Mouvement pour l’indépendance des Territoires sous la domination portugaise.
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Notas do autor:
(12) Os registos desta greve cuja cópia não possuo ou não encontro de momento, mas que cheguei de manusear e ler, encontram-se nos arquivos da PIDE/DGS, na Torre do Tombo. O mesmo se dirá dos registos da PIDE sobre Pindjiguiti.
(13) Duarte, António E., A independência da Guiné-Bissau a descolonização portuguesa, Edições afrontamento, 1977, p. 32
(14) Entrevista de Rafael Barbosa a Leopoldo Amado.
(15) Entrevista de Elisée Turpin a Leopoldo Amado em Bissau.
(16) no seu auto de interrogatório do dia 10.3.1961
(17) Cf. Cabral, Amílcar, Evolução e Perspectivas da Luta, p. 12. Igualmente, nos processos da extinta PIDE, agora abertos à investigação do grande público em Portugal, é possível deduzir a asserção referida.
(18) Entrevista de Aristides Pereira, ex-Secretário-Geral do PAIGC a Leopoldo Amado.
(19) Entrevista de Paulo Gomes Fernandes a Leopoldo Amado.
(20) Eram, por exemplo, os casos de Alfredo Menezes D’ Alva, Epifânio Souto Amado ou um Fernando Fortes, entre tantos outros.
(21) O estabelecimento da sede do PAI em Bissalanca data de 1959, tendo funcionado até Fevereiro de 1962, altura em que foi detectada e tomada de assalto pela PIDE com a ajuda de elementos do Exército português, tendo aí sido presos Rafael Barbosa, Momo Turé, Paulo Pereira de Jesus e outros elementos proeminentes do PAI surpreendidos em pleno sono. Com a sede do PAIGC tomada de assalto pela PIDE e preso Rafael Barbosa, seu principal animador, foi desmantelada a rede clandestina do PAIGC em Bissau. A alguns nacionalistas foram fixadas residência em Chão Bom, Tarrafal, excepto Rafael Barbosa que a troco de "colaboração", foi-lhe fixada a obrigatoriedade de se apresentar todos os dias na sede da PIDE em Bissau. Foi apreendido na sede do PAIGC imenso material de propaganda que incluía inúmeros panfletos, correspondências de Amílcar Cabral, para além de armas.
(22) Rafael Barbosa foi acusado em reunião do MLG de ter escondido Cabral aquando da passagem deste último em Bissau, pois tinha anunciado numa reunião anterior deste Movimento a intenção de Amílcar Cabral em reunir com os dirigentes do MLG. Como à cautela Amílcar Cabral rodeou-se de todos os cuidados e apenas se encontrou com Luís Cabral Rafael Barbosa e Fernando Fortes, o facto reforçou as desconfianças nas hostes do MLG sobre as reais intenções de Amílcar Cabral e do PAI.
(23) Andrade, Mário, Obras Escolhidas de Amílcar Cabral – A prática revolucionária (Unidade e luta II), Vol. II, Comité Executivo de Luta do PAIGC, Seara Nova, 1977, pp. 27 à 31.
(24) Ibidem, p. 33-34.
(25) Em Maio de 1962, o PAIGC difundiu largamente um comunicado em que reclamava a libertação dos presos em Bissau, Cadique, Bedanda, Cafal, Cufar, Cantone, Catió, Cotumba, Cafine, Cassumba, Fulacunda, Empada, Tite e nas Ilhas de Bubaque, Canhabaque, Sogá, Caravela e Formosa. Era o período em que quer a mobilização do PAIGC como a consequente repressão dos agentes de mobilização (que apareciam armados de pistolas em diversas tabancas) ia no auge.
(26) Estudou com uma bolsa do Mouvement pour l’ independece des Territoires sous la domination portugaise. Regressou da URSS em 1967 e esteve em Dakar cerca de dois meses antes de partir para Bamako (Mali), onde foi assinalado pela PIDE, em 1970, quando ali exercia como médico cirurgião Bamako, Mali.
(27) Em 1970, encontrava-se em Dakar, segundo uma nota da PIDE.
(28) Em 1964, encontrava-se com problemas psíquicos em Dakar, pelo que a sua mãe foi buscá-lo a Dakar e levou-o a Bissau. Já em Bissau, foi preso pela PIDE em 1966 e acusado de ser o locutor principal que emitia notícias de incitação à revolta a partir da rádio Conakry.
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(*) Vd post de 22 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - P558: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - I Parte
Curiosamente, a PIDE conseguiu tardiamente reconstituir, através da sua rede informadores em África, todos os passos de Amílcar Cabral neste périplo (itinerário, autoridades contactadas, assuntos versados, etc.), na medida em que tal reconstituição só se concluiu quando Amílcar Cabral tinha já tinha saído de Bissau, onde, numa estada de cerca de uma semana (14 a 21 de Setembro de 1959), informou os correligionários que iria instalar a Sede do exterior do PAI em Conakry, a qual, doravante, se articularia com a Sede do PAI do interior, que acabou clandestinamente por ser instalada pouco depois numa palhota em Bissalanca (21).
Na sua meteórica passagem por Bissau, Amílcar Cabral acordou com os seus principais colaboradores, na altura Aristides Pereira, Luís Cabral, Fernando Fortes, Rafael Barbosa (22) e João da Silva Rosa em como largaria tudo e seguiria para a República da Guiné (Conakry) de onde enviaria directrizes. Efectivamente, a decisão de Amílcar Cabral de escolher um poiso de apoio na Guiné-Conakry foi devidamente sustentada com o exemplo de Pindjiguiti, pois que para ele era a prova iniludível da natureza permanentemente violenta do sistema colonial que, sintomaticamente, tinha maior força nos centros urbanos, donde a razão porque era preciso proceder a uma extensa e meticulosa preparação para a guerra de libertação e a mobilização dos camponeses para responder com violência à violência colonial.
É essa linha de raciocínio esse que presidiu ao envio, a 15 de Novembro de 1960, de um Memorandum a que Salazar nem sequer se dignou responder e que propunha uma série de medidas, “para a liquidação pacifica da dominação colonial "(23), secundando-o também, na mesma lógica, a “Nota Aberta ao Governo Português”, na qual, em jeito de “’ultima tentativa “para a liquidação pacifica da dominação colonial" (24), reitera o teor do Memorandum de Novembro de 1960.
No entanto, em Bissau, consumada que foi a rotura entre o PAI e o MLG, este último Movimento de Libertação quase que desapareceu, vindo todavia a ressurgir-se das cinzas no além fronteiras, a saber, em Dakar, Ziguinchor e Conakry, sobretudo a partir do momento em que um número relativamente considerável de nacionalistas guineenses tiveram que acorrer a essas países recém independentes, seja na qualidade de emigrantes económicos, seja para darem continuidade as acções políticas, ou motivados conjuntamente pelos dois factores, sobretudo após Pindjiguiti e a subsequente grande vaga de repressão que em Abril de 1961 foram efectuadas pela PIDE, seguindo-se-lhe uma outra, igualmente da responsabilidade da PIDE, ocorrida em Fevereiro de 1962 (25). Nestas correntes de emigração, divisam-se motivações que se reportavam a certo sentimento de concorrência em relação ao PAI, mas também era possível descortinar nelas um certo frenesim alimentado pela ideia imediatista da independência.
Foi o caso, por exemplo, dos enfermeiros que fugiram para a Guiné Conakry desde 1959 e que todos a trabalhavam todos no Hospital “Ballay” como, Paulo Dias (que veio posteriormente a ascender ao cargo de Presidente da FLING-COMBATENTE, uma das facções dissidentes da FLING (Frente de Libertação para independência Nacional da Guiné, surgida em Dakar a 3 de Agosto de 1962), João Fernandes (26) e Inácio Silva (27), Fernando Laudelino Gomes (28), sendo este último o locutor principal de um programa emitido semanalmente a partir da rádio Conakry, o qual era basicamente alimentado pelas notícias que basicamente denunciavam as reais ou pretensas atrocidades do colonialismo e que eram alimentadas sobretudo pelas notícias que César Mário Fernandes e Rafael Barbosa enviavam clandestinamente para Laudelino Gomes.
No Senegal, o MLG enraizou-se sobretudo entre os inúmeros refugiados guineenses ali instalados, calculados em cerca de 60.000 pessoas. Dakar acolheu ainda outras organizações tal como a UPG (União Popular para a Libertação da Guiné), a UPCG (União Popular para a Libertação da Guiné) o Rassemblement Democratique Africain de La Guiné (RDAG) que desde 1956 fez propaganda no sul da Guiné, em especial na área de Cacine e a UNGP (União dos Naturais da Guiné-Portuguesa), enquanto que em Conakry o médico e nacionalista angolano-santomense, Hugo Azancot de Menezes, propositadamente expedido para Conakry no quadro do Centro de Estudos Africanos (uma dissidência protagonizada no seio da Casa dos Estudantes do Império essencialmente por Amílcar Cabral, guineense-caboverdiano, Mário de Andrade, angolano e Francisco José Tenreiro, santomense) e do MAC (Movimento Anti-Colonial), passou a enquadrar embrionariamente os guineenses nacionalistas ali emigrados através do Mouvement pour l’indépendance des Territoires sous la domination portugaise.
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Notas do autor:
(12) Os registos desta greve cuja cópia não possuo ou não encontro de momento, mas que cheguei de manusear e ler, encontram-se nos arquivos da PIDE/DGS, na Torre do Tombo. O mesmo se dirá dos registos da PIDE sobre Pindjiguiti.
(13) Duarte, António E., A independência da Guiné-Bissau a descolonização portuguesa, Edições afrontamento, 1977, p. 32
(14) Entrevista de Rafael Barbosa a Leopoldo Amado.
(15) Entrevista de Elisée Turpin a Leopoldo Amado em Bissau.
(16) no seu auto de interrogatório do dia 10.3.1961
(17) Cf. Cabral, Amílcar, Evolução e Perspectivas da Luta, p. 12. Igualmente, nos processos da extinta PIDE, agora abertos à investigação do grande público em Portugal, é possível deduzir a asserção referida.
(18) Entrevista de Aristides Pereira, ex-Secretário-Geral do PAIGC a Leopoldo Amado.
(19) Entrevista de Paulo Gomes Fernandes a Leopoldo Amado.
(20) Eram, por exemplo, os casos de Alfredo Menezes D’ Alva, Epifânio Souto Amado ou um Fernando Fortes, entre tantos outros.
(21) O estabelecimento da sede do PAI em Bissalanca data de 1959, tendo funcionado até Fevereiro de 1962, altura em que foi detectada e tomada de assalto pela PIDE com a ajuda de elementos do Exército português, tendo aí sido presos Rafael Barbosa, Momo Turé, Paulo Pereira de Jesus e outros elementos proeminentes do PAI surpreendidos em pleno sono. Com a sede do PAIGC tomada de assalto pela PIDE e preso Rafael Barbosa, seu principal animador, foi desmantelada a rede clandestina do PAIGC em Bissau. A alguns nacionalistas foram fixadas residência em Chão Bom, Tarrafal, excepto Rafael Barbosa que a troco de "colaboração", foi-lhe fixada a obrigatoriedade de se apresentar todos os dias na sede da PIDE em Bissau. Foi apreendido na sede do PAIGC imenso material de propaganda que incluía inúmeros panfletos, correspondências de Amílcar Cabral, para além de armas.
(22) Rafael Barbosa foi acusado em reunião do MLG de ter escondido Cabral aquando da passagem deste último em Bissau, pois tinha anunciado numa reunião anterior deste Movimento a intenção de Amílcar Cabral em reunir com os dirigentes do MLG. Como à cautela Amílcar Cabral rodeou-se de todos os cuidados e apenas se encontrou com Luís Cabral Rafael Barbosa e Fernando Fortes, o facto reforçou as desconfianças nas hostes do MLG sobre as reais intenções de Amílcar Cabral e do PAI.
(23) Andrade, Mário, Obras Escolhidas de Amílcar Cabral – A prática revolucionária (Unidade e luta II), Vol. II, Comité Executivo de Luta do PAIGC, Seara Nova, 1977, pp. 27 à 31.
(24) Ibidem, p. 33-34.
(25) Em Maio de 1962, o PAIGC difundiu largamente um comunicado em que reclamava a libertação dos presos em Bissau, Cadique, Bedanda, Cafal, Cufar, Cantone, Catió, Cotumba, Cafine, Cassumba, Fulacunda, Empada, Tite e nas Ilhas de Bubaque, Canhabaque, Sogá, Caravela e Formosa. Era o período em que quer a mobilização do PAIGC como a consequente repressão dos agentes de mobilização (que apareciam armados de pistolas em diversas tabancas) ia no auge.
(26) Estudou com uma bolsa do Mouvement pour l’ independece des Territoires sous la domination portugaise. Regressou da URSS em 1967 e esteve em Dakar cerca de dois meses antes de partir para Bamako (Mali), onde foi assinalado pela PIDE, em 1970, quando ali exercia como médico cirurgião Bamako, Mali.
(27) Em 1970, encontrava-se em Dakar, segundo uma nota da PIDE.
(28) Em 1964, encontrava-se com problemas psíquicos em Dakar, pelo que a sua mãe foi buscá-lo a Dakar e levou-o a Bissau. Já em Bissau, foi preso pela PIDE em 1966 e acusado de ser o locutor principal que emitia notícias de incitação à revolta a partir da rádio Conakry.
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(*) Vd post de 22 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - P558: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - I Parte
Guiné 63/74 - P568: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (Fim): o descanso em Buba
Guiné > Guileje > 1967 > Foto aérea do aquartelamento e tabanca. © José Neto (2005)
Publica-se a 10ª (e última) parte das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e hoje, capitão reformado) (1).
Recorde-se a justificação que ele deu para partilhar connosco as suas memórias de Guileje:
"Depois de muito meditar cheguei à conclusão de que, pelo menos tu, mereces a minha confiança para partillhar contigo uma parte muito significativa das memórias da minha vida militar. São trinta e três páginas retiradas (e ampliadas) das 265 que fui escrevendo ao correr da pena para responder a milhentas perguntas que o meu neto Afonso, um jovem de 17 anos, que pensava que o avô materno andou em África só a matar pretos enquanto que o paterno, médico branco de Angola, matava leões sentado numa esplanada de Nova Lisboa (Huambo). Coisas de família"...
Esta confiança, em mim e na nossa tertúlia, eu tenho que a agradecer ao camarada Zé Neto. Faço votos para que este fim seja apenas um até breve, até ao meu regresso... LG
O descanso em Buba
Ao fim de cerca de onze meses chegou a ordem para rodarmos para uma outra posição onde a nossas tropa pudesse recuperar do tremendo desgaste, reconhecido por vários relatórios médicos apresentados ao comando.
Fomos destinados a companhia de apoio ao comando do nosso Batalhão, em Buba.
A CAÇ 2316, do Capitão Vasconcelos, veio do Mejo ocupar o nosso aquartelamento por fases e do mesmo modo as minhas tropas iam a Gadamael embarcar para Buba.
Eu fui o último a abandonar Guileje, porque, mais uma vez, a entrega do património parecia um negócio de ciganos.
O 1º sargento da CCAÇ 2316, um tal José Jorge de seu nome completo, e um furriel do QP cujo nome esqueci, estavam apostados em fazer-me a vida negra.
Eram de Infantaria, mas parecia que tinham estudado pela cartilha do RAP 2 (1).
Mossa aqui, parafuso a menos ali, dentes de garfo tortos acolá, acabei por sair de Guileje com uma pasta bem recheada de anotações nas Guias de Entrega.
Mossa aqui, parafuso a menos ali, dentes de garfo tortos acolá, acabei por sair de Guilege com uma pasta bem recheada de anotações nas Guias de Entrega.
O tal José Jorge tratava comigo de cima para baixo do alto das suas quatro divisas (eu só tinha três) e dum modo despeitado porque eu não lhe cedi o meu quarto fortificado, a que ele se achava com direito. Tinha alguma razão, mas eu argumentava que foram os meus homens que o reconstruíram e que não faltava espaço nem material para que os dele fizessem outro ao lado.
Nas suas gabarolices não se cansava de proclamar que em breve ia para o curso de oficiais, pois, tal como eu, tinha feito as provas de admissão “escalonamento” e já sabia, por contactos confidenciais com altas fontes, que era o número seis da lista.
O que eu me ri quando, mais tarde, foi publicada a classificação e vi que os seus altos informadores se esqueceram de lhe dizer que a seguir ao primeiro seis ainda havia mais dois algarismos iguais, ou seja, era o número 666 da lista.
Pelo meu lado, a classificação, não sendo brilhante, era animadora. Fiquei no 285º lugar… entre 1048 aprovados, o que dava para prever que daí a três ou quatro anos iria ao Curso de Oficiais.
Guiné > Guileje > CART 1613 > 1968 > Um DO (Dornier) na pista de aviação. © José Neto (2005)
Em fins de Maio, num breve salto de avião, fui juntar-me à minha companhia em Buba.
Para sossego das minhas preocupações, ao chegar, tive a grata notícia de que o Celestino estava em Aldeia Formosa a comandar uma operação. Comandar…
Foi então que o grande comandante que saltava a pé juntos para cima duma mesa (2) se revelou.
Guiné > Guileje > 1968 >Espigueiros do milho na tabanca. © José Neto (2005)
Numa altura em que o quartel de Aldeia Formosa se encontrava com o mínimo de pessoal, apenas para manter a segurança, entrou por ali dentro um nativo a gritar que os turras estavam a atacar o povo de Xitole.
O alferes da CART 1612. ali aquartelada, desconfiou da tramóia, já que não se tinha ouvido fogo para aqueles lados, mas o Celestino tomou conta do caso e ordenou-lhe que arrebanhasse de entre os mecânicos, rádio-telefonistas, cozinheiros, milícias e tudo que encontrasse para ir em socorro do aldeamento.
Montados em dois Unimog lá seguiram e… poucos quilómetros andaram.
Os turras tinham preparado uma forte emboscada e quase dizimaram os desgraçados. Mataram quatro soldados, capturaram (apanhados à mão) um 1º cabo mecânico e sete soldados, destruíram o Unimog da frente e apanharam quase todo o armamento. Por sorte a segunda viatura tinha ficado a meio caminho avariada.
Dos prisioneiros, o mecânico e o condutor auto nem eram daquela guerra pois pertenciam à CCS e estavam em Aldeia Formosa em apoio de serviços e não propriamente de combate. Quando a notícia chegou a Bissau, o General Spínola meteu-se no helicóptero e foi ouvir, com os seus ouvidos, o relato dos poucos sobreviventes.
Foi o bastante para punir o tenente-coronel com dez dias de prisão disciplinar e ordenar-lhe que seguisse com ele para Bissau e dali para a Metrópole.
Todo o Batalhão rejubilou com a notícia, mas… poucos, muito poucos, tiveram a coragem de enfrentar a besta enquanto reinou.
Eu mentia se dissesse que não senti uma satisfação cá muito íntima, porém, ao mesmo tempo, tive pena do senhor porque afinal ele e mais três da mesma patente que o General do monóculo despachou para a Metrópole duma assentada, não passavam de peças anquilosadas duma engrenagem que mandava para o combate desigual que é a guerrilha estes marqueses de parada e gabinete.
O Major Carvalho Pereira, 2º Comandante, assumiu o comando do Batalhão até ao fim da comissão.
A minha companhia estava agora no descanso em Buba, com dois Gr Combate destacados, um Nhala e outro em Cumbijã (onde já estivera no ano anterior).
E aqui termino o extracto de dezoito páginas em letra mais miudinha, das memórias que escrevi em jeito de contar aos meus netos as vicissitudes por que passou o avô.
FIM (*)
_________
Notas do autor
(1) A referência à Cartilha do RAP 2, nossa unidade mobilizadora, vem do facto de que nos entregaram uma arrecadação de material completa, muito bem arrumada, mas com muitos artigos em mau estado disfarçados. Ao receberem o mesmo material de volta, no fim da recruta, os artigos foram passados a pente fino e anotadas deficiências que tinham de ser pagas pelo pessoal. E o negócio continuava com a companhia seguinte, tal como já sucedera com a anterior.
(2) Incrivelmente aquela bola de carne tinha a habilidade de, a pés juntos e sem balanço, saltar do chão para o tampo duma mesa normal. Os alferes, quando queriam divertimento, apostavam uma rodada de whisky em como ele, comandante, nesse dia ia falhar. Nunca falhou nem se deu conta da figura de palhaço que fizera…
(*) Vd posts anteriores:
16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXLIV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (9): a Operação Bola de Fogo
" (...) Resta um pormenor que revela a grandeza dos homens quando confrontados com situações extremas. Aquando do regresso desta última operação os tempos calculados para o trajecto modificaram-se devido à forte concentração de fogo do IN, com as consequências que já descrevi, e o Capitão Corvacho tinha a certeza que, se permanecessem na mata depois do sol-posto, poucos sairiam dali com vida. As viaturas rodavam em marcha lenta porque havia que inspeccionar cada metro da picada. A certa altura veio um grito da frente da coluna:-Mina!" (...)
14 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (8): Gazela com chouriço à moda do Celestino
"O ano de 1968 entrou com uma novidade. O esforço sobre o corredor de Guilege diminuiu de intensidade e a actividade operacional concentrou-se mais para a zona da fronteira, com a prioridade de manter seguro o itinerário Gadamael Porto – Guilege. Estavam para chegar as CAÇ 2316 e 2317 que iam acantonar, em condições precárias, no Mejo e em Guilege com vista a qualquer acção em grande que estava no segredo dos Deuses de Bissau" (...).
11 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXI: Memórias de Guileje (Zé Neto, 1967/68) (7): Francesinho e Cavaco, o belo e o monstro
"Com pouco mais de metro e meio de altura, franzino, quase imberbe, era um poço de força, energia e boa disposição que a todos espantava.Geralmente, quando o pessoal regressava das duras caminhadas pelas matas e bolanhas vinha estafado e atirava-se para cima do catre para descansar. Essa não era a prática do Francesinho. Tomava um duche, ficava como novo e, com a sua concertina algo desafinada, espalhava alegria por toda a tabanca e arredores" (...).
8 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (6): dos Lordes e das bestas
" (...) Ganhou alguma notoriedade o diálogo entre o Celestino (1) e o Capitão Cadete. Numa operação em que as nossas tropas pretendiam desmantelar a fortificação que os turras tinham implantado em Salancaúr, o Celestino comandava comodamente instalado num avião Dornier. A companhia do Capitão Cadete estava, a pouco mais de duzentos metros do objectivo, a ser fustigada por fogo de canhão sem recuo do IN e o Celestino berrava pela rádio: -Avance! Organize o assalto pelo flanco esquerdo!!!
"O Capitão, homem experiente, sabia que era de todo impossível dar mais um passo em direcção ao objectivo, estrategicamente defendido pelos lodaçais e, perante a insistência, gritou pelo microfone: -Venha cá abaixo e enterre o seu focinho na bolanha, seu..." (...)
3 de Fevereiro de 2006> Guiné 63/74 - CDXCVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (5): ecumenismo e festa do fanado
"Uma das boas características do meu pessoal era a de que não gostavam de estar parados nos intervalos das operações. Cada um, nas suas profissões ou aptidões, ia bulindo e foi assim que se reconstruíram e melhoraram abrigos, se implantou uma horta que aproveitava a água, depois de decantada, dos chuveiros das praças e se construiu a obra mais emblemática que deixámos em Guileje: a Capela" (...)
23 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXIII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (4): os azares dos sargentos
"O abrigo subterrâneo que nós, os sargentos, mais utilizávamos situava-se a meia dúzia de passos do coberto da messe, dado que parecia que os turras esperavam que acabássemos de jantar para abrir fogo. O acesso ao amplo salão enterrado era feito através dum pequeno poço para onde saltavam os que não tinham posto de combate definido e dali para o dito salão. A abertura era estreita e, se havia muita afluência, tornava-se necessário esperar vez para entrar, o que não deixava de provocar alguma confusão. Foi numa dessas confusões que levei com um furriel em cima do meu pé esquerdo. Andei mais de um mês com a perna engessada" (...).
21 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (3): Dauda, o Viegas
" (...) Este menino, na altura com onze, doze meses de idade, era filho da Sona, uma jovem de Cacine, comprada pelo alfaiate de Guileje para ser a sua terceira esposa. Tinha o nome de Dauda, mas era tratado por todos nós por Viegas, apelido do pai, capitão que comandara a companhia de Cacine. Ainda hoje, quando revejo as dezenas de fotografias que fiz do garoto, acho que poderíamos anteceder Silva a Viegas" (...).
13 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (2): Ordem de marcha
"Nos primeiros dias de Julho de 1967 recebemos ordem para marchar para Guileje, a fim de rendermos a CCAÇ 1477. Nas conversas do Café Bento, em Bissau, apelidado de 5ª repartição por ser ali que se sabiam todos os acontecimentos ocorridos na Província, o nome de Guileje era citado frequentemente como uma região onde havia porrada da grossa. As contingências da sorte ditaram que a CART 1613 fosse verificar in loco a veracidade das informações veiculadas na dita repartição" (...).
10 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXXVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (1): Prelúdio(s)
"Nas páginas que deixo para trás, respeitantes à Guiné, descrevo a maneira atribulada, para não dizer trapalhona, como o meu Batalhão, e por arrasto a minha Companhia, CART 1613, foi parar àquela Província Ultramarina e os remendos que se seguiram" (...)
Publica-se a 10ª (e última) parte das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e hoje, capitão reformado) (1).
Recorde-se a justificação que ele deu para partilhar connosco as suas memórias de Guileje:
"Depois de muito meditar cheguei à conclusão de que, pelo menos tu, mereces a minha confiança para partillhar contigo uma parte muito significativa das memórias da minha vida militar. São trinta e três páginas retiradas (e ampliadas) das 265 que fui escrevendo ao correr da pena para responder a milhentas perguntas que o meu neto Afonso, um jovem de 17 anos, que pensava que o avô materno andou em África só a matar pretos enquanto que o paterno, médico branco de Angola, matava leões sentado numa esplanada de Nova Lisboa (Huambo). Coisas de família"...
Esta confiança, em mim e na nossa tertúlia, eu tenho que a agradecer ao camarada Zé Neto. Faço votos para que este fim seja apenas um até breve, até ao meu regresso... LG
O descanso em Buba
Ao fim de cerca de onze meses chegou a ordem para rodarmos para uma outra posição onde a nossas tropa pudesse recuperar do tremendo desgaste, reconhecido por vários relatórios médicos apresentados ao comando.
Fomos destinados a companhia de apoio ao comando do nosso Batalhão, em Buba.
A CAÇ 2316, do Capitão Vasconcelos, veio do Mejo ocupar o nosso aquartelamento por fases e do mesmo modo as minhas tropas iam a Gadamael embarcar para Buba.
Eu fui o último a abandonar Guileje, porque, mais uma vez, a entrega do património parecia um negócio de ciganos.
O 1º sargento da CCAÇ 2316, um tal José Jorge de seu nome completo, e um furriel do QP cujo nome esqueci, estavam apostados em fazer-me a vida negra.
Eram de Infantaria, mas parecia que tinham estudado pela cartilha do RAP 2 (1).
Mossa aqui, parafuso a menos ali, dentes de garfo tortos acolá, acabei por sair de Guileje com uma pasta bem recheada de anotações nas Guias de Entrega.
Mossa aqui, parafuso a menos ali, dentes de garfo tortos acolá, acabei por sair de Guilege com uma pasta bem recheada de anotações nas Guias de Entrega.
O tal José Jorge tratava comigo de cima para baixo do alto das suas quatro divisas (eu só tinha três) e dum modo despeitado porque eu não lhe cedi o meu quarto fortificado, a que ele se achava com direito. Tinha alguma razão, mas eu argumentava que foram os meus homens que o reconstruíram e que não faltava espaço nem material para que os dele fizessem outro ao lado.
Nas suas gabarolices não se cansava de proclamar que em breve ia para o curso de oficiais, pois, tal como eu, tinha feito as provas de admissão “escalonamento” e já sabia, por contactos confidenciais com altas fontes, que era o número seis da lista.
O que eu me ri quando, mais tarde, foi publicada a classificação e vi que os seus altos informadores se esqueceram de lhe dizer que a seguir ao primeiro seis ainda havia mais dois algarismos iguais, ou seja, era o número 666 da lista.
Pelo meu lado, a classificação, não sendo brilhante, era animadora. Fiquei no 285º lugar… entre 1048 aprovados, o que dava para prever que daí a três ou quatro anos iria ao Curso de Oficiais.
Guiné > Guileje > CART 1613 > 1968 > Um DO (Dornier) na pista de aviação. © José Neto (2005)
Em fins de Maio, num breve salto de avião, fui juntar-me à minha companhia em Buba.
Para sossego das minhas preocupações, ao chegar, tive a grata notícia de que o Celestino estava em Aldeia Formosa a comandar uma operação. Comandar…
Foi então que o grande comandante que saltava a pé juntos para cima duma mesa (2) se revelou.
Guiné > Guileje > 1968 >Espigueiros do milho na tabanca. © José Neto (2005)
Numa altura em que o quartel de Aldeia Formosa se encontrava com o mínimo de pessoal, apenas para manter a segurança, entrou por ali dentro um nativo a gritar que os turras estavam a atacar o povo de Xitole.
O alferes da CART 1612. ali aquartelada, desconfiou da tramóia, já que não se tinha ouvido fogo para aqueles lados, mas o Celestino tomou conta do caso e ordenou-lhe que arrebanhasse de entre os mecânicos, rádio-telefonistas, cozinheiros, milícias e tudo que encontrasse para ir em socorro do aldeamento.
Montados em dois Unimog lá seguiram e… poucos quilómetros andaram.
Os turras tinham preparado uma forte emboscada e quase dizimaram os desgraçados. Mataram quatro soldados, capturaram (apanhados à mão) um 1º cabo mecânico e sete soldados, destruíram o Unimog da frente e apanharam quase todo o armamento. Por sorte a segunda viatura tinha ficado a meio caminho avariada.
Dos prisioneiros, o mecânico e o condutor auto nem eram daquela guerra pois pertenciam à CCS e estavam em Aldeia Formosa em apoio de serviços e não propriamente de combate. Quando a notícia chegou a Bissau, o General Spínola meteu-se no helicóptero e foi ouvir, com os seus ouvidos, o relato dos poucos sobreviventes.
Foi o bastante para punir o tenente-coronel com dez dias de prisão disciplinar e ordenar-lhe que seguisse com ele para Bissau e dali para a Metrópole.
Todo o Batalhão rejubilou com a notícia, mas… poucos, muito poucos, tiveram a coragem de enfrentar a besta enquanto reinou.
Eu mentia se dissesse que não senti uma satisfação cá muito íntima, porém, ao mesmo tempo, tive pena do senhor porque afinal ele e mais três da mesma patente que o General do monóculo despachou para a Metrópole duma assentada, não passavam de peças anquilosadas duma engrenagem que mandava para o combate desigual que é a guerrilha estes marqueses de parada e gabinete.
O Major Carvalho Pereira, 2º Comandante, assumiu o comando do Batalhão até ao fim da comissão.
A minha companhia estava agora no descanso em Buba, com dois Gr Combate destacados, um Nhala e outro em Cumbijã (onde já estivera no ano anterior).
E aqui termino o extracto de dezoito páginas em letra mais miudinha, das memórias que escrevi em jeito de contar aos meus netos as vicissitudes por que passou o avô.
FIM (*)
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Notas do autor
(1) A referência à Cartilha do RAP 2, nossa unidade mobilizadora, vem do facto de que nos entregaram uma arrecadação de material completa, muito bem arrumada, mas com muitos artigos em mau estado disfarçados. Ao receberem o mesmo material de volta, no fim da recruta, os artigos foram passados a pente fino e anotadas deficiências que tinham de ser pagas pelo pessoal. E o negócio continuava com a companhia seguinte, tal como já sucedera com a anterior.
(2) Incrivelmente aquela bola de carne tinha a habilidade de, a pés juntos e sem balanço, saltar do chão para o tampo duma mesa normal. Os alferes, quando queriam divertimento, apostavam uma rodada de whisky em como ele, comandante, nesse dia ia falhar. Nunca falhou nem se deu conta da figura de palhaço que fizera…
(*) Vd posts anteriores:
16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXLIV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (9): a Operação Bola de Fogo
" (...) Resta um pormenor que revela a grandeza dos homens quando confrontados com situações extremas. Aquando do regresso desta última operação os tempos calculados para o trajecto modificaram-se devido à forte concentração de fogo do IN, com as consequências que já descrevi, e o Capitão Corvacho tinha a certeza que, se permanecessem na mata depois do sol-posto, poucos sairiam dali com vida. As viaturas rodavam em marcha lenta porque havia que inspeccionar cada metro da picada. A certa altura veio um grito da frente da coluna:-Mina!" (...)
14 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIV: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (8): Gazela com chouriço à moda do Celestino
"O ano de 1968 entrou com uma novidade. O esforço sobre o corredor de Guilege diminuiu de intensidade e a actividade operacional concentrou-se mais para a zona da fronteira, com a prioridade de manter seguro o itinerário Gadamael Porto – Guilege. Estavam para chegar as CAÇ 2316 e 2317 que iam acantonar, em condições precárias, no Mejo e em Guilege com vista a qualquer acção em grande que estava no segredo dos Deuses de Bissau" (...).
11 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXI: Memórias de Guileje (Zé Neto, 1967/68) (7): Francesinho e Cavaco, o belo e o monstro
"Com pouco mais de metro e meio de altura, franzino, quase imberbe, era um poço de força, energia e boa disposição que a todos espantava.Geralmente, quando o pessoal regressava das duras caminhadas pelas matas e bolanhas vinha estafado e atirava-se para cima do catre para descansar. Essa não era a prática do Francesinho. Tomava um duche, ficava como novo e, com a sua concertina algo desafinada, espalhava alegria por toda a tabanca e arredores" (...).
8 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (6): dos Lordes e das bestas
" (...) Ganhou alguma notoriedade o diálogo entre o Celestino (1) e o Capitão Cadete. Numa operação em que as nossas tropas pretendiam desmantelar a fortificação que os turras tinham implantado em Salancaúr, o Celestino comandava comodamente instalado num avião Dornier. A companhia do Capitão Cadete estava, a pouco mais de duzentos metros do objectivo, a ser fustigada por fogo de canhão sem recuo do IN e o Celestino berrava pela rádio: -Avance! Organize o assalto pelo flanco esquerdo!!!
"O Capitão, homem experiente, sabia que era de todo impossível dar mais um passo em direcção ao objectivo, estrategicamente defendido pelos lodaçais e, perante a insistência, gritou pelo microfone: -Venha cá abaixo e enterre o seu focinho na bolanha, seu..." (...)
3 de Fevereiro de 2006> Guiné 63/74 - CDXCVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (5): ecumenismo e festa do fanado
"Uma das boas características do meu pessoal era a de que não gostavam de estar parados nos intervalos das operações. Cada um, nas suas profissões ou aptidões, ia bulindo e foi assim que se reconstruíram e melhoraram abrigos, se implantou uma horta que aproveitava a água, depois de decantada, dos chuveiros das praças e se construiu a obra mais emblemática que deixámos em Guileje: a Capela" (...)
23 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXIII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (4): os azares dos sargentos
"O abrigo subterrâneo que nós, os sargentos, mais utilizávamos situava-se a meia dúzia de passos do coberto da messe, dado que parecia que os turras esperavam que acabássemos de jantar para abrir fogo. O acesso ao amplo salão enterrado era feito através dum pequeno poço para onde saltavam os que não tinham posto de combate definido e dali para o dito salão. A abertura era estreita e, se havia muita afluência, tornava-se necessário esperar vez para entrar, o que não deixava de provocar alguma confusão. Foi numa dessas confusões que levei com um furriel em cima do meu pé esquerdo. Andei mais de um mês com a perna engessada" (...).
21 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (3): Dauda, o Viegas
" (...) Este menino, na altura com onze, doze meses de idade, era filho da Sona, uma jovem de Cacine, comprada pelo alfaiate de Guileje para ser a sua terceira esposa. Tinha o nome de Dauda, mas era tratado por todos nós por Viegas, apelido do pai, capitão que comandara a companhia de Cacine. Ainda hoje, quando revejo as dezenas de fotografias que fiz do garoto, acho que poderíamos anteceder Silva a Viegas" (...).
13 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (2): Ordem de marcha
"Nos primeiros dias de Julho de 1967 recebemos ordem para marchar para Guileje, a fim de rendermos a CCAÇ 1477. Nas conversas do Café Bento, em Bissau, apelidado de 5ª repartição por ser ali que se sabiam todos os acontecimentos ocorridos na Província, o nome de Guileje era citado frequentemente como uma região onde havia porrada da grossa. As contingências da sorte ditaram que a CART 1613 fosse verificar in loco a veracidade das informações veiculadas na dita repartição" (...).
10 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXXVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (1): Prelúdio(s)
"Nas páginas que deixo para trás, respeitantes à Guiné, descrevo a maneira atribulada, para não dizer trapalhona, como o meu Batalhão, e por arrasto a minha Companhia, CART 1613, foi parar àquela Província Ultramarina e os remendos que se seguiram" (...)
Guiné 63/74 - P567: BCAV 2867, o Batalhão do Horácio Ramos? (José Martins)
Caro Luís e Fernando:
É reconfortante saber que os filhos dos nossos camaradas tentam saber algo sobre o período de história que os pais viveram, a procura de dados que os esclareça sobre os ÚLTIMOS SOLDADOS DO IMPÉRIO.
Com os dados existentes no mail procurei alguma coisa, que, como dizes, podem
ser uma falsa pista.
Em anexo segue o que consegui nos meus arquivos [dados sobre o Batalhão de Cavalaria 2867, a que pertenciam as CCAV 2482, 2483 e 2484], mas vou continuar à procura de mais elementos.
Ao Fernando sugiro que procure no espólio do pai a caderneta militar. Se a caderneta existir e estiver actualizada, à data da saída do exército, poderá lá encontrar elementos que ajudem nesta pesquisa.
Se não tiver a tal caderneta - um livrinho pequeno com capa preta - poderá obter elementos junto do Arquivo Geral do Exército, que fica na Estrada de Chelas em Lisboa.
Com o nome, data de nascimento e pouco mais, esses serviços costumam fazer milagres. Foi lá que obtive a cópia das notas de assentos do meu avô materno e de um tio paterno, ambos combatentes da I Grande Guerra.
Claro que para isso o melhor é um pedido pessoal e presencial. Quando o Fernando vier a Lisboa tratar de algum assunto da sua empresa de reparações de automóveis e máquinas agrícolas, é destinar um pouco de tempo para este assunto.
Caro Fernando: Não nos conhecemos, mas habituamo-nos a pesquisar, e por isso descobri a localização da Casa Fraquito em Colos - Odemira. O que a Net nos proporciona!
Vamos mantendo o contacto, pois pode ser que a curiosidade presente nos traga mais elementos, não só para o Fernando Martinho, mas também para a nossa tertúlia.
Um forte abraço do camarada e amigo,
José Martins
______________
Este batalhão foi formado no Regimento de Cavalaria 3 em Estremoz e era composto, além da Companhia de Comando e Serviços [CSS], pelas Companhias de Cavalaria 2482, 2483 e 2484.
Estas unidades chegaram à Guiné em Março de 1969 e terminaram a comissão em Dezembro de 1970.
Localização das unidades:
O Batalhão permaneceu em TITE durante toda a sua comissão.
CCAV 2482 – Esteve em TITE desde a chegada até Junho de 1969 indo para FULACUNDA.
CCAV 2483 – Iniciou a comissão em NOVA SINTRA, sendo transferida em Setembro de 1970 para TITE.
CCAV 2484 – Iniciou a comissão em CACHEU e foi transferida para BULA em Agosto de 1969.
Carta de Situação reportada a 3 de Agosto de 1969, no Sector S1 (Sul) (cerca de 5 meses após a chegada):
Indica que, além do Batalhão de Cavalaria e das 3 companhias operacionais, estavam estacionadas mais 1 Companhia de Caçadores, 1 Pelotão de Morteiros, 1 Pelotão de Artilharia de Campanha, 1 Pelotão de Reconhecimento (carros de combate) e 1 Companhia de Milícias. Estava também estacionado na zona, como reserva do Comando- Chefe, 1 Companhia de Comandos.
Carta de Situação reportada a 2 de Agosto de 1970, o Sector S1 (Sul) (cerca de 5 meses antes do regresso):
Indica que, além do batalhão de cavalaria e das 3 companhias operacionais, estavam estacionadas mais 1 Companhia de Cavalaria, 1 Pelotão de Morteiros, 1 Pelotão de Artilharia de Campanha, 1 Pelotão de Reconhecimento (carros de combate) e 4 Companhias de Milícias.
Evolução no Sector S1, entre as duas Cartas de Situação:
É substituída a Companhia de Caçadores por outra de Cavalaria e é reforçada com 3 Companhias de Milícias.
Fonte: © Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 3º Volume – Dispositivo das Nossas Forças - Guiné
É reconfortante saber que os filhos dos nossos camaradas tentam saber algo sobre o período de história que os pais viveram, a procura de dados que os esclareça sobre os ÚLTIMOS SOLDADOS DO IMPÉRIO.
Com os dados existentes no mail procurei alguma coisa, que, como dizes, podem
ser uma falsa pista.
Em anexo segue o que consegui nos meus arquivos [dados sobre o Batalhão de Cavalaria 2867, a que pertenciam as CCAV 2482, 2483 e 2484], mas vou continuar à procura de mais elementos.
Ao Fernando sugiro que procure no espólio do pai a caderneta militar. Se a caderneta existir e estiver actualizada, à data da saída do exército, poderá lá encontrar elementos que ajudem nesta pesquisa.
Se não tiver a tal caderneta - um livrinho pequeno com capa preta - poderá obter elementos junto do Arquivo Geral do Exército, que fica na Estrada de Chelas em Lisboa.
Com o nome, data de nascimento e pouco mais, esses serviços costumam fazer milagres. Foi lá que obtive a cópia das notas de assentos do meu avô materno e de um tio paterno, ambos combatentes da I Grande Guerra.
Claro que para isso o melhor é um pedido pessoal e presencial. Quando o Fernando vier a Lisboa tratar de algum assunto da sua empresa de reparações de automóveis e máquinas agrícolas, é destinar um pouco de tempo para este assunto.
Caro Fernando: Não nos conhecemos, mas habituamo-nos a pesquisar, e por isso descobri a localização da Casa Fraquito em Colos - Odemira. O que a Net nos proporciona!
Vamos mantendo o contacto, pois pode ser que a curiosidade presente nos traga mais elementos, não só para o Fernando Martinho, mas também para a nossa tertúlia.
Um forte abraço do camarada e amigo,
José Martins
______________
BATALHÃO DE CAVALARIA 2867
Este batalhão foi formado no Regimento de Cavalaria 3 em Estremoz e era composto, além da Companhia de Comando e Serviços [CSS], pelas Companhias de Cavalaria 2482, 2483 e 2484.
Estas unidades chegaram à Guiné em Março de 1969 e terminaram a comissão em Dezembro de 1970.
Localização das unidades:
O Batalhão permaneceu em TITE durante toda a sua comissão.
CCAV 2482 – Esteve em TITE desde a chegada até Junho de 1969 indo para FULACUNDA.
CCAV 2483 – Iniciou a comissão em NOVA SINTRA, sendo transferida em Setembro de 1970 para TITE.
CCAV 2484 – Iniciou a comissão em CACHEU e foi transferida para BULA em Agosto de 1969.
Carta de Situação reportada a 3 de Agosto de 1969, no Sector S1 (Sul) (cerca de 5 meses após a chegada):
Indica que, além do Batalhão de Cavalaria e das 3 companhias operacionais, estavam estacionadas mais 1 Companhia de Caçadores, 1 Pelotão de Morteiros, 1 Pelotão de Artilharia de Campanha, 1 Pelotão de Reconhecimento (carros de combate) e 1 Companhia de Milícias. Estava também estacionado na zona, como reserva do Comando- Chefe, 1 Companhia de Comandos.
Carta de Situação reportada a 2 de Agosto de 1970, o Sector S1 (Sul) (cerca de 5 meses antes do regresso):
Indica que, além do batalhão de cavalaria e das 3 companhias operacionais, estavam estacionadas mais 1 Companhia de Cavalaria, 1 Pelotão de Morteiros, 1 Pelotão de Artilharia de Campanha, 1 Pelotão de Reconhecimento (carros de combate) e 4 Companhias de Milícias.
Evolução no Sector S1, entre as duas Cartas de Situação:
É substituída a Companhia de Caçadores por outra de Cavalaria e é reforçada com 3 Companhias de Milícias.
Fonte: © Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 3º Volume – Dispositivo das Nossas Forças - Guiné
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Guiné 63/74 - P566: Sobre a procura do Fernando do rasto da memória do camarada Horácio (João Tunes)
1. Texto do João Tunes (entre muitas outras coisas, foi ex-alf mil transmissões da CCS do BCAÇ 2884, Pelundo, 1969/70; mas acabou, com uma porrada, em Catió, noutra CCS, noutro Batalhão, mas no final saiu pela porta grande, com louvor com distinção...). Aproveito para lhe mandar um alfa bravo.
João: recebi o teu abraço (um); mandei-te dois, de volta, pela tua simpática esposa que tive o privilégio de conhecer esta manhã, na minha tabanca...
Quanto à almoçarada, terá que ser quanto antes... Pelo menos, antes que o futuro novo inquilino do palácio cor de rosa decrete o estado de sítio ou de emergência (os juristas não se entendem sobre a figura jurídica adequada) por causa da gripe pandémica que aí vem... Daqui a seis meses, ou daqui a seis anos, garante(m) a(s) autoridade(s) de saúde: o prazo já não conta... Ou melhor: o problema não é a incerteza sobre quando e como ela, a dita, a pandemia, há-de chegar, terrível e vingadira... Mas talvez sobre o tabu... do estado de sítio ou de emergência... O tabu é que vai atrair as atenções do Zé Povinho. Ele está-se mas tintas para o resto. Ele quer é saber se o novo comandante-chefe das forças armadas, a ser empossado dentro em breve, nos vai pôr a todos de quarentena... Tu, abafa-te, abifa-te... L.G.
Aqui vai, por fim, a prosa do João (inconfundível, incorrigível, inigualável):
Num Batalhão já tão avantajado que o Major General Luís para aqui mobilizou, eu não acredito que ele seja capaz, apesar dos seus inegáveis méritos de comando, de meter compostura na formatura. Duvido até que no toque a reunir ele consiga formar o maralhal na parada devidamente ataviado, barbeado e com os cinturões, armas e demais atavios prontos a dispararar, segundo os regulamentos e a ordem estabelecida, a pensar que, mais uma vez, se vai purgar o patriotismo que nos levou às bolanhas no levantar e arrear da nossa querida bandeira.
Para mais, agora quando findou o Euro 2004 lá se foi o fanatismo com as bandeiras e, nessa guerra, fomos vice-campeões, disso não passando. E talvez aí é que a porca torça o rabo, esta nossa vocação de nos esfalfarmos, esfolarmos, deixando juízo e tripas, darmos o litro, para, afinal, acabarmos vice-campeões. Bolas, cada um de nós, os que estivemos nas três frentes da guerra colonial, somos todos "vices" - na Guiné, só perdemos na final contra o PAIGC; em Moçambique idem com a Frelimo; em Angola, perdemos aos penalties com o MPLA. É sina, será? E esta dúvida, sistémica ou sismada, é um elogio (ao Luís e ao blogue), nada que se pareça a uma proposta de qualquer insurreição, indisciplina e, muito menos, levantamento de rancho (isso seria um absurdo porque rancho ainda não vi que acontecesse, e quem é que levanta o que ainda não tem ou já teve e vai falecendo pela lei da vida?).
Eu digo isto a inventar paródia, se calhar de mau gosto, para com coisas sérias porque estou para aqui, velho tonto e feito merda, a disfarçar uma espécie de intróito a fingir enxugar muita água salgada vinda de dentro dos olhos ao ler o mais sentido e pungente texto jamais publicado neste blogue.
Falo da mensagem do Fernando Martinho à procura do Batalhão, referências e camaradas do seu Pai e nosso camarada Horácio Martinho Ramos, infelizmente já desaparecido no combate contra a vida. Dando-nos esses enigmas para decifrar - período 1968/70, Bissorã, Bafatá, Tite, lema Somos como Somos e os números 2483 e 2484, falando depois em memórias transmitidas de amor à Guiné e uma vontade grande de lá voltar e as pistas encontradas num pai doente entre as tatuagens no braço.
Eu não te vou ajudar, Fernando. Andei por outras bandas e outras Companhias, não as do meu camarada e teu Pai Horácio. Mas, descansa, há-de aparecer por aí, tarda nada, quem com ele tenha feito escaramuças, dando e levando no coco, e com ele se tenha entretido (todos os guerreiros têm o seu repouso) com bajudas lindas de espevitar e chorar por mais.
Mas, nada te ajudando, sempre te digo: se não ajudo à localização da camaradagem e das raízes que, na Guiné, o teu Pai deixou, pelos meros desencontros do acaso (vê lá que fui no mesmo cruzeiro no Niassa para a Guiné com o camarada Luís e ainda não lhe (re)conheço a fronha respeitável e generalíssima no alto da sua vetusta e veneranda figura de Major General e Comandante em Chefe das batalhas deste blogue), digo-te isto e assim termino para não chatear mais: tomara eu que os meus filhos, e um que fosse me bastava, um dia que não muito deve tardar, me fizesse a honra de pós-memória para com o meu penar e amor pela Guiné da mesma ou aproximada forma, tão sentida e tão bonita, como tu procuras as raízes da memória de perda do teu pai, meu, nosso camarada. Não desistas.
E leva daqui um abraço.
João: recebi o teu abraço (um); mandei-te dois, de volta, pela tua simpática esposa que tive o privilégio de conhecer esta manhã, na minha tabanca...
Quanto à almoçarada, terá que ser quanto antes... Pelo menos, antes que o futuro novo inquilino do palácio cor de rosa decrete o estado de sítio ou de emergência (os juristas não se entendem sobre a figura jurídica adequada) por causa da gripe pandémica que aí vem... Daqui a seis meses, ou daqui a seis anos, garante(m) a(s) autoridade(s) de saúde: o prazo já não conta... Ou melhor: o problema não é a incerteza sobre quando e como ela, a dita, a pandemia, há-de chegar, terrível e vingadira... Mas talvez sobre o tabu... do estado de sítio ou de emergência... O tabu é que vai atrair as atenções do Zé Povinho. Ele está-se mas tintas para o resto. Ele quer é saber se o novo comandante-chefe das forças armadas, a ser empossado dentro em breve, nos vai pôr a todos de quarentena... Tu, abafa-te, abifa-te... L.G.
Aqui vai, por fim, a prosa do João (inconfundível, incorrigível, inigualável):
Num Batalhão já tão avantajado que o Major General Luís para aqui mobilizou, eu não acredito que ele seja capaz, apesar dos seus inegáveis méritos de comando, de meter compostura na formatura. Duvido até que no toque a reunir ele consiga formar o maralhal na parada devidamente ataviado, barbeado e com os cinturões, armas e demais atavios prontos a dispararar, segundo os regulamentos e a ordem estabelecida, a pensar que, mais uma vez, se vai purgar o patriotismo que nos levou às bolanhas no levantar e arrear da nossa querida bandeira.
Para mais, agora quando findou o Euro 2004 lá se foi o fanatismo com as bandeiras e, nessa guerra, fomos vice-campeões, disso não passando. E talvez aí é que a porca torça o rabo, esta nossa vocação de nos esfalfarmos, esfolarmos, deixando juízo e tripas, darmos o litro, para, afinal, acabarmos vice-campeões. Bolas, cada um de nós, os que estivemos nas três frentes da guerra colonial, somos todos "vices" - na Guiné, só perdemos na final contra o PAIGC; em Moçambique idem com a Frelimo; em Angola, perdemos aos penalties com o MPLA. É sina, será? E esta dúvida, sistémica ou sismada, é um elogio (ao Luís e ao blogue), nada que se pareça a uma proposta de qualquer insurreição, indisciplina e, muito menos, levantamento de rancho (isso seria um absurdo porque rancho ainda não vi que acontecesse, e quem é que levanta o que ainda não tem ou já teve e vai falecendo pela lei da vida?).
Eu digo isto a inventar paródia, se calhar de mau gosto, para com coisas sérias porque estou para aqui, velho tonto e feito merda, a disfarçar uma espécie de intróito a fingir enxugar muita água salgada vinda de dentro dos olhos ao ler o mais sentido e pungente texto jamais publicado neste blogue.
Falo da mensagem do Fernando Martinho à procura do Batalhão, referências e camaradas do seu Pai e nosso camarada Horácio Martinho Ramos, infelizmente já desaparecido no combate contra a vida. Dando-nos esses enigmas para decifrar - período 1968/70, Bissorã, Bafatá, Tite, lema Somos como Somos e os números 2483 e 2484, falando depois em memórias transmitidas de amor à Guiné e uma vontade grande de lá voltar e as pistas encontradas num pai doente entre as tatuagens no braço.
Eu não te vou ajudar, Fernando. Andei por outras bandas e outras Companhias, não as do meu camarada e teu Pai Horácio. Mas, descansa, há-de aparecer por aí, tarda nada, quem com ele tenha feito escaramuças, dando e levando no coco, e com ele se tenha entretido (todos os guerreiros têm o seu repouso) com bajudas lindas de espevitar e chorar por mais.
Mas, nada te ajudando, sempre te digo: se não ajudo à localização da camaradagem e das raízes que, na Guiné, o teu Pai deixou, pelos meros desencontros do acaso (vê lá que fui no mesmo cruzeiro no Niassa para a Guiné com o camarada Luís e ainda não lhe (re)conheço a fronha respeitável e generalíssima no alto da sua vetusta e veneranda figura de Major General e Comandante em Chefe das batalhas deste blogue), digo-te isto e assim termino para não chatear mais: tomara eu que os meus filhos, e um que fosse me bastava, um dia que não muito deve tardar, me fizesse a honra de pós-memória para com o meu penar e amor pela Guiné da mesma ou aproximada forma, tão sentida e tão bonita, como tu procuras as raízes da memória de perda do teu pai, meu, nosso camarada. Não desistas.
E leva daqui um abraço.
sexta-feira, 24 de fevereiro de 2006
Guiné 63/74 - P565: A morte, às 6 da manhã, em Ponta Coli (Sousa de Castro, CART 3494)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime> 1972: Brasão da CART 3494, pertencente ao BART 3873 (1972/74) © Sousa de Castro (2005)
Texto do Sousa de Castro:
Acabei de ler as últimas do blogue em que o nosso novo tertuliano António Duarte fez uma breve resenha daquilo que foi a sua estadia em Mansambo, na CART 3493, e no Xime, na CCAÇ 12 (1).
Recordou o seu camarada de especialidade em Vendas Novas, o Furriel Miliciano Manuel Bento como sendo o primeiro morto em combate do BART 3873. É verdade.
Posso dizer-vos também que em Junho 1999 num almoço/convívio da CART 3494 a que ele pertenceu, realizado pelos ex-Fur Mil Carda e Godinho (que se calhar o A. Duarte conhece), em Ponte de Sor, prestámos-lhe uma digna homenagem com uma coroa de flores na campa do cemitério local onde está sepultado:
Manuel da Rocha Bento. Fur Mil Art NM 00171671 foi morto em combate na Ponta Coli - Guiné (2) no dia 22 de Abril de 1972.
Rezava assim o relatório: Em 22 de Abril de 1972, às 6h00, um grupo IN emboscou a segurança da Ponta COLI (1 Gr Comb da CART 3494). As NT e a Artilharia do XiME pôs o IN em fuga. Sofremos 1 morto (Furriel), 7 feridos Graves e 12 ligeiros.
Sousa de Castro
(ex-1º cabo de transmissões da CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74)
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Nota de L.G.
(1) Vd posts de:
18 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXI: Um periquito da CCAÇ 12 (António Duarte / Sousa de Castro)
20 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXVIII: Notícias da CART 3493 (Mansambo, 1972) e da CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1973/74) (António Duarte)
(2) Entre o Xime e Amedalai (vd. mapa do Xime)
Guiné 63/74 - P564: Em busca de... À procura de camaradas do meu pai, Horácio Martinho Ramos (conhecido por Papel)
1. Mensagem de Fernando M. Fraquito:
Assunto - Da parte de um falecido combatente
Caro Sr. Luis Graça:
É com as lágrimas nos olhos que estou a escrever estas linhas na esperança de encontrar nem sei bem o quê.
O meu nome é Fernando Martinho, tenho 33 anos e o meu pai, já falecido, foi combatente na Guiné nos anos de 1968/1970. Faleceu em 1996, com 48 anos, vítima de cancro, vulgo doença prolongada.
Foi com enorme prazer e admiração que encontrei este espaço sobre a Guerra Colonial e desde já lhe dou os meus sinceros parabéns pela iniciativa e pelo tempo que parece disponibilizar para manter este espaço actualizado e vivo.
A passagem do meu falecido pai pela Guiné é um facto que me enche de orgulho, admiração e curiosidade, a maneira como ele falava da Guiné fez crescer em mim uma admiração pela terra e pelas gentes.
Infelizmente não tenho muitos dados concretos sobre a unidade do meu pai, tenho muitas fotografias, penso que em Bassorá e Bissau, não sei ao certo.
O meu pai chamava-se Horácio Martinho Ramos e era conhecido pelo Papel, anexim colocado na Guiné.
Tenho tambem uma pequena bandeira, que penso ser da companhia do meu pai, onde ainda se notam as seguintes inscrições:
Ao centro: "Somos como somos"; aos cantos inferiores: 2483 - 2484.
Será que estas inscrições podem levar á identificação da unidade do meu pai? Gostaria que me fornecesse informações sobre essa unidade e os lugares onde esteve.
Poderei, se estiver interessado, fornecer fotografias do espólio de meu pai.
Fico a aguardar contacto.
Com os meus melhores cumprimentos
Fernando M. Fraquito
Casa Fraquito Lda
2. Resposta de L.G.:
Fernando:
Vamos tentar ajudá-lo a descobrir onde esteve o seu querido pai, na época de 1968/70, com a ajuda de mais de uma meia centena de camaradas que estiveram por todos os sítios da Guiné…
O seu pai deve ter estado em Bissorã, e não em Bassorá (que fica no Iraque)… Ele devia pertencer a um batalhão de que faziam parte as companhias de cavalaria 2483 e 2484…
A Companhia de Cavalaria 2484 estava em Jabadá, em 1969, e publicava um jornal chamado Dragões de Jabadá, cujo director era o capitão de cavalaria José Guilherme P. F. Durão.
Mas Jabadá ficava na região de Quínara (Tite) já no sul... E Bissorã fica na região do Oio, no centro norte...
… Vamos continuar a pesquisar, vou pedir aos meus camaradas uma ajudinha… E você, Fernando, veja lá se consegue saber qual era a companhia ou o batalhão do seu pai… Os números que me mandou (2483, 2484) são apenas uma pista, mas podem ser enganadores…
Força! Os meus respeitos pelos seu pai, que era do meu tempo (estive ma Guiné, em Bmbadinca, entre 1969 e 1971).
3. Nova mensagem do Fernando:
Caro Sr. Graça:
Muito obrigado pela rápida resposta e peço desculpa pelo engano no nome Bassorá, o que eu queria mesmo dizer era Bissorã e também Bafatá.
O meu pai falava também muito em Tite.
Não disponho de mais dados concretos, apenas o que já disse, o lema da companhia: "SOMOS COMO SOMOS" e os números 2483 e 2484. O meu pai tinha isto tatuado no braço direito.
Sei também que ele desempenhou o serviço de mecânico de automóveis e viaturas militares, afinal era esta a sua profissão de sempre.
Em meados da comissão teve um acidente, caiu de um Unimog e a roda do Unimog passou-lhe por cima do torax, teve algum tempo hospitalizado em Bissau.
Ao visitar o seu espaço, é com muita saudade que recordo as palavras do meu pai sobre a Guiné e como ele acalentava o desejo de lá voltar um dia. Infelizmente não conseguiu concretizar aquele desejo.
Gostava muito de encontrar alguns dos ex-camaradas do meu pai na Guiné. Assim que possa vou enviar algumas fotografias.
Assunto - Da parte de um falecido combatente
Caro Sr. Luis Graça:
É com as lágrimas nos olhos que estou a escrever estas linhas na esperança de encontrar nem sei bem o quê.
O meu nome é Fernando Martinho, tenho 33 anos e o meu pai, já falecido, foi combatente na Guiné nos anos de 1968/1970. Faleceu em 1996, com 48 anos, vítima de cancro, vulgo doença prolongada.
Foi com enorme prazer e admiração que encontrei este espaço sobre a Guerra Colonial e desde já lhe dou os meus sinceros parabéns pela iniciativa e pelo tempo que parece disponibilizar para manter este espaço actualizado e vivo.
A passagem do meu falecido pai pela Guiné é um facto que me enche de orgulho, admiração e curiosidade, a maneira como ele falava da Guiné fez crescer em mim uma admiração pela terra e pelas gentes.
Infelizmente não tenho muitos dados concretos sobre a unidade do meu pai, tenho muitas fotografias, penso que em Bassorá e Bissau, não sei ao certo.
O meu pai chamava-se Horácio Martinho Ramos e era conhecido pelo Papel, anexim colocado na Guiné.
Tenho tambem uma pequena bandeira, que penso ser da companhia do meu pai, onde ainda se notam as seguintes inscrições:
Ao centro: "Somos como somos"; aos cantos inferiores: 2483 - 2484.
Será que estas inscrições podem levar á identificação da unidade do meu pai? Gostaria que me fornecesse informações sobre essa unidade e os lugares onde esteve.
Poderei, se estiver interessado, fornecer fotografias do espólio de meu pai.
Fico a aguardar contacto.
Com os meus melhores cumprimentos
Fernando M. Fraquito
Casa Fraquito Lda
2. Resposta de L.G.:
Fernando:
Vamos tentar ajudá-lo a descobrir onde esteve o seu querido pai, na época de 1968/70, com a ajuda de mais de uma meia centena de camaradas que estiveram por todos os sítios da Guiné…
O seu pai deve ter estado em Bissorã, e não em Bassorá (que fica no Iraque)… Ele devia pertencer a um batalhão de que faziam parte as companhias de cavalaria 2483 e 2484…
A Companhia de Cavalaria 2484 estava em Jabadá, em 1969, e publicava um jornal chamado Dragões de Jabadá, cujo director era o capitão de cavalaria José Guilherme P. F. Durão.
Mas Jabadá ficava na região de Quínara (Tite) já no sul... E Bissorã fica na região do Oio, no centro norte...
… Vamos continuar a pesquisar, vou pedir aos meus camaradas uma ajudinha… E você, Fernando, veja lá se consegue saber qual era a companhia ou o batalhão do seu pai… Os números que me mandou (2483, 2484) são apenas uma pista, mas podem ser enganadores…
Força! Os meus respeitos pelos seu pai, que era do meu tempo (estive ma Guiné, em Bmbadinca, entre 1969 e 1971).
3. Nova mensagem do Fernando:
Caro Sr. Graça:
Muito obrigado pela rápida resposta e peço desculpa pelo engano no nome Bassorá, o que eu queria mesmo dizer era Bissorã e também Bafatá.
O meu pai falava também muito em Tite.
Não disponho de mais dados concretos, apenas o que já disse, o lema da companhia: "SOMOS COMO SOMOS" e os números 2483 e 2484. O meu pai tinha isto tatuado no braço direito.
Sei também que ele desempenhou o serviço de mecânico de automóveis e viaturas militares, afinal era esta a sua profissão de sempre.
Em meados da comissão teve um acidente, caiu de um Unimog e a roda do Unimog passou-lhe por cima do torax, teve algum tempo hospitalizado em Bissau.
Ao visitar o seu espaço, é com muita saudade que recordo as palavras do meu pai sobre a Guiné e como ele acalentava o desejo de lá voltar um dia. Infelizmente não conseguiu concretizar aquele desejo.
Gostava muito de encontrar alguns dos ex-camaradas do meu pai na Guiné. Assim que possa vou enviar algumas fotografias.
Guiné 63/74 - P563: Exposição de fotogafia e recolha de material escolar em Abrantes (Hugo Moura Ferreira)
Boas...Camarigos (como já li escrito por um de vós ).
Aqui faço constar um evento que está a decorrer em Abrantes, relacionado com a Guiné-Bissau. Pela minha parte, já que passo parte do tempo por aqueles lados, lá irei fazer uma visita. Procurarei colher algo para vos transmitir.
Um abraço.
Hugo Moura Ferreira
______
“Guiné-Bissau – Imagens e Vozes”: exposição na Biblioteca Municipal António Botto
Estará patente na Biblioteca Municipal António Botto, de 3 de Fevereiro a 10 de Março, uma exposição de fotografia, promovida pela Fundação Evangelização e Culturas, intitulada Guiné-Bissau: Imagens e Vozes.
A mostra, destinada ao público em geral, é composta por 20 painéis fotográficos, num total de 45 fotografias a retratar os costumes, tradições e paisagens guineenses. As fotografias são da autoria de:
(i) José Lopes (gestor de empresas e amante de fotografia);
(ii) Sara Ideias (técnica de reinserção de toxicodependentes e voluntária na Guiné-Bissau);
(iii) Catarina Lopes (técnica de cooperação e ex-professora);
(iv) e Filipe Barros (membro da ONGD guineense, Estrutura de Apoio à Produção Popular – EAPP, nascido e residente em Catió).
Partilhando o gosto pela fotografia, cada um procurou registar momentos daquele país.
Esta iniciativa é acompanhada de actividades paralelas, tal como a conferência “Guiné-Bissau e Cabo Verde, que relação? Educação na Guiné-Bissau”, a realizar no dia 23 de Fevereiro, às 19h00, com a presença de Rita Boavida Costa.
(...) A mostra servirá, também, de mote para a recolha de material destinado às escolas daquele país. Assim, o público que visita a exposição, pode fazer-se acompanhar de obras de referência (dicionários e enciclopédias), literatura infanto-juvenil ou manuais escolares, para ajudar na construção de um baú pedagógico para uma escola na Guiné-Bissau.
Para ver no horário de 2ª feira a 6ª feira, das 10h30 às 12h30 e das 14h30 às 19h30.
Aqui faço constar um evento que está a decorrer em Abrantes, relacionado com a Guiné-Bissau. Pela minha parte, já que passo parte do tempo por aqueles lados, lá irei fazer uma visita. Procurarei colher algo para vos transmitir.
Um abraço.
Hugo Moura Ferreira
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“Guiné-Bissau – Imagens e Vozes”: exposição na Biblioteca Municipal António Botto
Estará patente na Biblioteca Municipal António Botto, de 3 de Fevereiro a 10 de Março, uma exposição de fotografia, promovida pela Fundação Evangelização e Culturas, intitulada Guiné-Bissau: Imagens e Vozes.
A mostra, destinada ao público em geral, é composta por 20 painéis fotográficos, num total de 45 fotografias a retratar os costumes, tradições e paisagens guineenses. As fotografias são da autoria de:
(i) José Lopes (gestor de empresas e amante de fotografia);
(ii) Sara Ideias (técnica de reinserção de toxicodependentes e voluntária na Guiné-Bissau);
(iii) Catarina Lopes (técnica de cooperação e ex-professora);
(iv) e Filipe Barros (membro da ONGD guineense, Estrutura de Apoio à Produção Popular – EAPP, nascido e residente em Catió).
Partilhando o gosto pela fotografia, cada um procurou registar momentos daquele país.
Esta iniciativa é acompanhada de actividades paralelas, tal como a conferência “Guiné-Bissau e Cabo Verde, que relação? Educação na Guiné-Bissau”, a realizar no dia 23 de Fevereiro, às 19h00, com a presença de Rita Boavida Costa.
(...) A mostra servirá, também, de mote para a recolha de material destinado às escolas daquele país. Assim, o público que visita a exposição, pode fazer-se acompanhar de obras de referência (dicionários e enciclopédias), literatura infanto-juvenil ou manuais escolares, para ajudar na construção de um baú pedagógico para uma escola na Guiné-Bissau.
Para ver no horário de 2ª feira a 6ª feira, das 10h30 às 12h30 e das 14h30 às 19h30.
Guiné 63/74 - P562: Cartas da metade do céu e da metade do inferno (Luís Graça)
Guiné > Zona Leste > Bafatá > 1969 > Vista aérea da cidade, junto ao rio Geba.
Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
© Humberto Reis (2006)
Amigos e camaradas de tertúlia:
Depois de resolvidos uns pequenos problemas técnicos na minha enxada de trabalho, tenho a alegria (e a honra) de comunicar, em meu nome e do Humberto Reis, que passam, a partir de agora, a estar disponíveis mais umas tantas cartas da nossa querida Guiné… Entenda-se: cartas dos ex-serviços cartográficos do exército, que datam da época em que eramos meninos & moços e em que Portugal ia do Minho a Timor...
A alma deste sonho (maluco, como todos os sonhos) é o Humberto que quer ver a Guiné - leia-se a "província da Guiné" - toda digitalizada: os rios, as lalas, as bolanhas, as savanas, os mangais, os palmeirais, as pontas (ou hortas), as tabancas, as picadas, as florestas, os buracos em vivemos, gozámos, f..., amámos, morremos (alguns do corpo e outros da alma…), cagámos, cagámo-nos de medo, apanhámos bebedeiras de caixão à cova, sofremos, fomos camaradas, fomos heróis e cobardes, homens e gigantes, gritámos abaixo o RMD, contestámos a guerra, lutámos pela pátria, apanhámos paludismo e esquentamentos, passámos fome e sede, mijámos, bebemos o próprio mijo, fomos emboscados, fomos presas e predadores… (As nossas camaradas São, Paula, Zélia e as nossas demais leitoras… que me desculpem a linguagem desabrida, própria da caserna dos machos...).
Como já temos dito, a divulgação destas cartas (com mais de meio século!) não tem quaisquer propósitos comerciais ou outros, de índole lucrativa, mesmos que outros (agências de viagens, empresas organizadoras de viagens em grupo, safaris, desporto-aventura, clubes de caça e pesca, etc.) possam vir a ganhar dinheiro com o nosso trabalho (é o risco de sermos generosos).
Pretende-se apenas prestar um serviço útil a todos os ex-combatentes da guerra da Guiné (1963/74), independentemente do lado em que combateram, e nomeadamente aos membros da nossa tertúlia.
Julgamos que estes mapas (ou cartas, amplamente usadas pelas NT durante a guerra colonal, no planeamento e execução da nossa actividade operacional, cuidadosamente plastificadas) podem ser úteis também a todos os demais amigos do povo guineense e até mesmo aos próprios guineenses (que não conhecem o seu próprio país!...), se bem que as cartas estejam desactualizadas: em mais de meio século, muita água correu pelos rios Cacheu, Mansoa, Geba, Corubal, Grande de Buba, Tombali, Cumbijã, Cacine...
Além de serem um documento de interesse historiográfico, estas cartas têm um enorme valor sentimental para nós, são importantíssimas para a reconstituição da memória dos lugares e a reorganização da memória (individual e colectiva) dos ex-combatentes, portugueses e do PAIGC, que estiveram aquartelados e/ou envolvidos em operações naquele pedaço de terra, que era metade de céu e metade de inferno.
Fica também aqui a nossa homenagem aos nossos valorosos cartógrafos militares portugueses. A cartografia portuguesa deu cartas (no duplo sentido do termo) ao mundo, é bom é dizê-lo. Às vezes (muitas vezes, quase sempre) tenho orgulho de ser (por)tuga. Estas cartas da Guiné são pequenas obras-primas, resultantes do levantamento efectuado aos longo dos anos 50 pela missão geo-hidrográfica da Guiné – Comandante e oficiais do N.H. Mandovi e do N.H. Pedro Nunes. A fotografia aérea é da Aviação Naval. O trabalho de restituição foi feita pelos Serviços Cartográficos do Exército. As fotolitografias e a impressão foram feitas em várias casas, de Lisboa, Porto, V.N. Gaia. A edição é da antiga Junta das Missões Geográficas e Investigações do Ultramar, do antigo Ministério do Ultramar. Digitalização efectuada na Rank Xerox (2005 ou 2006). Eu passei cada um destes pesadíssimos ficheiros (10 ou mais MB) para outros mais leves (da ordem dos 2 MB), procurando manter a qualidade da imagem (que tem alta resolução)...
O mecenas é o maluco do Humberto Reis a quem eu presto mais uma vez a nossa (minha e da tertúlia) gratidão pela sua generosidade e a nossa homenagem ao seu carinho pela Guiné-Bissau, pelos guineenses e pelos ex-combatentes…
Há ainda outras cartas para pôr na nossa página mas ficaram cortadas na digitalização (por ex., Binta e Teixeira Pinto)… Vou ver isto com o Humberto.
Agora divirtam-se, regressando a regiões como:
Bigene, Bissau
Farim, Jumbembem, Pirada, Tite
Guiné 63/74 - P561: Corvacho, um homem com honra (João Tunes)
Post do João Tunes, membro da nossa tertúlia, publicado do seu blogue Água Lisa (5), de hoje, sob o título, altamente sugestivo, "Veneno e contra-veneno", aqui reproduzido com a devida vénia (como mandam as boas regras de respeito pela propriedade intelectual).
É também mais uma homenagem, singela, de um ex-combatente da Guiné, o João, para com outro ex-combantente, o outrora capitão Corvacho, da CART 1613 (Guileje, 1967/68), que agora trava uma outra luta, bem mais mais difícil, desigual e cruel, a luta contra a doença.
1. Ontem mesmo, aconteceu-me o que já não imaginava. Um “retornado” do meu bairro, daqueles que vieram de trambolhão de Moçambique por causa da colonização descolonizada, de que me sobravam no ouvido os falares altos da sua tertúlia com comparsas de azedumes e pragas que normalmente terminam na constatação partilhada de que "este país só de endireita com um ou dois salazares" ou "ainda diziam mal da PIDE...", ao contrário do habitual, estava sozinho lá num canto. E eu no meu.
Numa pausa em que descansei o livro que agora me ocupa, o sujeito resolve, pela primeira vez, meter-me fala: "- Já reparei que o senhor gosta de ler, tome lá, leia isto que é ligeiro" e passa-me uma meia dúzia de folhas dobradas que aceito por delicadeza e que desfolhadas e vistas em diagonal, eram afinal um miserável apanhado daquelas anedotas velhas e relhas com ranço racista sobre Samora e a Frelimo.
Aguentei uns minutos para não destrambelhar, aí o sacana do stress, aguenta, pensando que raio de fel este em que, passadas tantas décadas, ainda bolsa e se quer propagar e aliciar. E perguntando-me se, tendo feito a guerra por eles e para eles, aos colonos depois descolonizados, ainda lhes teria dívidas por saldar. Meti travões a fundo. Limitei-me a mostrar ao sujeito que vi de que se tratava mas que não lhe queria ler a sua cartilha, devolvendo-a com a máxima e possível delicadeza "- Obrigado pela atenção, mas dispenso a leitura, não sou reaça". E o "retornado moçambicano" ficou embasbacado, a olhar-me com ar de não perceber. Ou não querer. Ou nem sequer disso ser capaz.
2. É fácil denegrir. Como em tempos fizeram a Samora. Mas, de Samora, hoje não falo, porque me vem à lembrança as folhas de papel com vinagre do "retornado moçambicano", meu vizinho. Escolho falar de um "militar de Abril" (teve papel decisivo no levantamento na Região Norte e comandou as forças que ocuparam o Forte de Peniche), também muito maltratado, objecto de ódios mais que mil no turbilhão da revolução, sabe-se lá de sanados.
Trata-se de um Oficial de origem transmontana, trazendo no peito a Cruz de Guerra de 3ª Classe, o grau de Cavaleiro da Ordem Militar de Aviz e a Medalha de Prata de Comportamento Exemplar. Chama-se Eurico Corvacho [...]. Fiquei hoje a saber que está muito doente. E li, recompondo-me por continuar a haver homens com honra, dois depoimentos sobre ele que me reconciliam com o tempo e a memória, devolvendo a honra aos honrados - este e mais este.
João Tunes
É também mais uma homenagem, singela, de um ex-combatente da Guiné, o João, para com outro ex-combantente, o outrora capitão Corvacho, da CART 1613 (Guileje, 1967/68), que agora trava uma outra luta, bem mais mais difícil, desigual e cruel, a luta contra a doença.
1. Ontem mesmo, aconteceu-me o que já não imaginava. Um “retornado” do meu bairro, daqueles que vieram de trambolhão de Moçambique por causa da colonização descolonizada, de que me sobravam no ouvido os falares altos da sua tertúlia com comparsas de azedumes e pragas que normalmente terminam na constatação partilhada de que "este país só de endireita com um ou dois salazares" ou "ainda diziam mal da PIDE...", ao contrário do habitual, estava sozinho lá num canto. E eu no meu.
Numa pausa em que descansei o livro que agora me ocupa, o sujeito resolve, pela primeira vez, meter-me fala: "- Já reparei que o senhor gosta de ler, tome lá, leia isto que é ligeiro" e passa-me uma meia dúzia de folhas dobradas que aceito por delicadeza e que desfolhadas e vistas em diagonal, eram afinal um miserável apanhado daquelas anedotas velhas e relhas com ranço racista sobre Samora e a Frelimo.
Aguentei uns minutos para não destrambelhar, aí o sacana do stress, aguenta, pensando que raio de fel este em que, passadas tantas décadas, ainda bolsa e se quer propagar e aliciar. E perguntando-me se, tendo feito a guerra por eles e para eles, aos colonos depois descolonizados, ainda lhes teria dívidas por saldar. Meti travões a fundo. Limitei-me a mostrar ao sujeito que vi de que se tratava mas que não lhe queria ler a sua cartilha, devolvendo-a com a máxima e possível delicadeza "- Obrigado pela atenção, mas dispenso a leitura, não sou reaça". E o "retornado moçambicano" ficou embasbacado, a olhar-me com ar de não perceber. Ou não querer. Ou nem sequer disso ser capaz.
2. É fácil denegrir. Como em tempos fizeram a Samora. Mas, de Samora, hoje não falo, porque me vem à lembrança as folhas de papel com vinagre do "retornado moçambicano", meu vizinho. Escolho falar de um "militar de Abril" (teve papel decisivo no levantamento na Região Norte e comandou as forças que ocuparam o Forte de Peniche), também muito maltratado, objecto de ódios mais que mil no turbilhão da revolução, sabe-se lá de sanados.
Trata-se de um Oficial de origem transmontana, trazendo no peito a Cruz de Guerra de 3ª Classe, o grau de Cavaleiro da Ordem Militar de Aviz e a Medalha de Prata de Comportamento Exemplar. Chama-se Eurico Corvacho [...]. Fiquei hoje a saber que está muito doente. E li, recompondo-me por continuar a haver homens com honra, dois depoimentos sobre ele que me reconciliam com o tempo e a memória, devolvendo a honra aos honrados - este e mais este.
João Tunes
quinta-feira, 23 de fevereiro de 2006
Guiné 63/74 - P560: Corvacho, um capitão de Abril (A.Marques Lopes)
Caros camaradas:
O meu grande apreço e sensibilização pelas palavras do camarada José Neto para com o "seu capitão" Eurico Corvacho.
Ele foi o militar do MFA, então major, a quem Otelo Saraiva de Carvalho, no dia 16 de Abril de 1974, deu a missão de dirigir o Agrupamento Norte, "November" (CICA1, CICA2, CIOE, RI10, RI14, RAP2, RAP3...) para a revolução. E às 03H30 do dia 25 de Abril o QG da, então, Região Militar do Porto foi tomado. Foram também forças do Agrupamento Norte que cercaram o forte de Peniche.
O alferes Eurico Corvacho, um transmontano de Torre de Moncorvo, foi para Angola em Junho de 1961, onde esteve até Setembro de 1965, e aí sendo promovido a tenente e capitão. Foi para a Guiné em Novembro de 1966, até Setembro de 1968. De Setembro de 1970 a Outubro de 1972 esteve novamente em Angola. Daí regressado, foi colocado no QG da Região Militar do Porto como comandante da CCS e do Esquadrão de Polícia Militar, onde foi o primeiro a dinamizar uma nova classe de defesa pessoal, o soshinkai, de cuja associação chegou a ser presidente.
Em Janeiro de 1974 foi graduado no posto de Major e, após o 25 de Abril, foi nomeado Chefe do Estado-Maior da Região Militar do Porto, tendo sido graduado em coronel em Dezembro de 1974. Assumiu o Comando Interino dessa Região Militar em Abril de 1975, altura em que foi graduado em brigadeiro. Foi desgraduado destas funções em Setembro de 1975, durante as convulsões preparatórias do 25 de Novembro. Passou à reserva a 24 de Janeiro de 1981 e à reforma em Janeiro de 1992.
É condecorado com a Cruz de Guerra de 3ª Classe, com o grau de Cavaleiro da Ordem Militar de Aviz e com a Medalha de Prata de Comportamento Exemplar.
Dou estes dados para complementar a "fotografia" tão fielmente tirada pelo José Neto. E ele sempre mostrou aquilo que este nosso camarada viu nele. Eurico Corvacho foi sempre um homem coerente, frontal nas suas opiniões, com um humanismo e uma honestidade a toda a prova e um combatente empenhado pelos ideais do 25 de Abril. Por isso, é verdade, foi um homem controverso para todos os que não apreciavam a sua coerência e honestidade.
Acrescento a minha simpatia e admiração por esta figura, infelizmente, agora, com saúde débil.
Abraços
A. Marques Lopes
Comentário de L.G.:
O meu obrigado (meu, mas também nosso, da nossa tertúlia), ao Zé Neto e ao A. Marques Lopes, pelo depoimento sobre uma extraordinário e discreto camarada da Guiné que honrou as melhores tradições das forças armadas portugueses e foi um exemplo de verticalidade moral, competência profissional e honestidade intelectual. Se ele nos puder ler (ou se alguém puder transmitir-lhe os nossos desejos), aqui vão as nossas melhores saudações e votos de coragem para enfrentrar mais esta dura batalha contra a doença... É bom que ele saiba que há camaradas que com ele privaram e que muito o admiram e estimam.
Guiné 63/74 - P559: O meu capitão, o capitão Corvacho da CART 1613 (1966/68) (Zé Neto)
Guiné > Guileje > CART 1613 (1967/68)> 1967 > Regresso ao quartel de uma operação, com o Cap Corvalho à frente, seguido pelo Costa da Bazuca. © José Neto (2005)
Capitão de Artilharia Eurico de Deus Corvacho
Nota prévia: O texto que segue é, apenas e só, destinado à difusão no Blogue-fora-nada. O autor.
Creio que é esta a primeira vez que alguém traz ao blogue uma figura concreta dum comandante da campanha da Guiné. Não se trata dum vulgar panegírico, que seria natural nas palavras do seu primeiro-sargento, mas sim duma homenagem devida ao Homem que transformou e comandou a CART 1613/BART 1896, desde 25 de Dezembro de 1966 até duas semanas depois de 9 de Setembro de 1968.
Inicialmente, na orgânica do Batalhão, o Cap Corvacho era o oficial mais antigo no seu posto e desempenhava as funções Oficial de Pessoal e Reabastecimento.
Na nossa primeira noite de Natal, com pouco mais de um mês de Guiné, em São João, um soldado nosso matou, a tiros de G3, o comandante da companhia.
No dia 25 de Dezembro vieram dois helis com oficiais que indagaram, investigaram, fotografaram e regressaram a Bissau sem o Cap Corvacho, que ficou a comandar, interinamente, a companhia.
Eu já tinha lidado com ele em Brá, pois foi o oficial instrutor dum processo disciplinar que exigi ao comandante, na iminência de ser punido por uma infracção de trânsito - excesso de velocidade da viatura que me transportava - apenas em face da participação dum furriel da PM e dum sistema de detecção de velocidade discutível.
O Cap Corvacho (que tinha o curso de Polícia Militar) levou as suas averiguações até ao mínimo pormenor e concluiu – e assim o exarou no final do processo – que a minha ordem ao condutor (não dada, mas assumida) de ultrapassar uma camioneta do BEng [Batalhão de Engenharia] que travou ao ver a patrulha da PM, foi a adequada para evitar a possível colisão, e o excesso de velocidade assinalado pelo aparelho, 12 Km/hora (62-50) em nenhum momento pôs em perigo a circulação na faixa contrária.
Estas conclusões não foram do agrado do comandante. Atirou o processo para as mãos do Capitão e ordenou-lhe que reformulasse os autos porque me queria punir.
O Corvacho voltou a pôr o processo em cima da secretária do comandante e disse-lhe que a única solução era ele nomear um oficial (teria de ser o 2º comandante) para lhe instaurar, a ele Capitão, outro processo, este por desobediência, porque se negava, terminantemente, a alterar uma vírgula que fosse no que ali estava escrito.
Guiné > Guileje > CART 1613 (1967/68)> 1967 > Retrato de família...
© José Neto (2005)
Este gesto valeu-lhe a inscrição na lista dos coirões mal-amados do comandante, onde já figuravam, desde fins de Maio, a 2ª Companmhia de Instrução do RAP 2 (mais tarde CART 1613) no seu todo, o seu falecido comandante e este vosso modesto escriba.
O primeiro acto de comando do Capitão Corvacho foi mandar formar a companhia. A sua breve alocução resumiu-se a:
- Estou aqui para vos comandar até à chegada do novo comandante que há-de vir da Metrópole. Enquanto esta situação se mantiver vou exigir-vos o máximo e dar-vos todo o meu apoio. A minha primeira exigência fica já aqui: O que se passou esta noite foi uma tragédia que, contada e recontada, pode vir a sofrer deturpações que em nada favorecem a companhia. Por isso não vos peço que esqueçam, mas sim que não alimentem as coscuvilhices de Bissau e acho que a melhor resposta que podemos dar aos curiosos é: Isso é um assunto interno da companhia, ponto final.
Mandou destroçar e convocou os oficiais e sargentos para uma reunião. Disse-nos que queria o pessoal o mais ocupado possível. Que fossem à lenha, que fossem jogar a bola, que fossem banhar-se na praia, e que o resto do programa de treino operacional era para cumprir no duro.
Depois chamou-me à parte e fomos dar uma volta para conhecer o quartel – eu tinha chegado ali na véspera, pois tinha ficado em Brá a tratar da papelada e pedi para ir passar o Natal com os “meus rapazes” – e a nossa conversa andou à volta da situação algo calamitosa em que se encontrava o sector da alimentação com os desvarios que o Furriel vaguemestre tinha apontado na reunião.
Ficou assente que eu não ia regressar a Bissau no dia 27, como estava previsto, e ficava em São João a fazer um balanço e pôr um pouco de ordem no sector administrativo enquanto ele ia tentar tirar a pele ao pessoal até fazer deles uns combatentes de verdade.
Guiné > Guileje > CART 1613 (1967/68)> 1967 > Um secretaria improvisada no mato... © José Neto (2005)
Em princípios de Janeiro de 1967, a CART 1613 que regressou a Brá para ficar como companhia de intervenção à ordem do comando-chefe, era outra.
Entretanto chegou a Bissau o oficial nomeado para comandar a companhia, o Capitão de Artilharia Lobo da Costa, e gerou-se um pandemónio dos diabos.
Eu nunca tinha visto, nem achava possível, uma manifestação de soldados. Mas o que é certo é que, por organização espontânea, a “minha tropa” foi postar-se frente ao gabinete do comando do batalhão a gritar:
- O nosso comandante / é o capitão Corvacho.
Com a voz embargada pela comoção o Capitão Corvacho disse-lhes:
- Vocês não sabem o que me estão a pedir… mas fico na companhia. Vou trocar as funções com o vosso novo comandante. Ponham- se a andar.
Toda a companhia, desde o Básico ao Alferes mais antigo, compreendeu aquela decisão do Homem que trocava o sossego da Messa e da Gestetner (máquinas dactilográficas e policopiadoras) pela terrível G3.
Seguiu-se um período de cerca de quatro meses de “vai e volta”. A companhia, aquartelada em Brá, era mandada para os mais diferentes pontos do território, andava por lá dez, quinze dias, e voltava estoirada, mas com um sentimento de dever cumprido cuja expressão máxima era o uso, em qualquer dos uniformes, do Lenço Verde que nos tinha calhado em sorte ainda em Viana do Castelo (todas as companhias do batalhão tinham o seu, de cores diferentes).
Foi numa dessas operações, na área de Pelundo/Jolmete, zona de responsabilidade dum Batalhão de Cavalaria sediado em Teixeira Pinto, que a CART 1613 mais se notabilizou, tendo o comandante do BCAV atribuído ao Cap Corvacho um extenso louvor que deu origem à condecoração com a Medalha de Cruz de Guerra de 2ª Classe.
Ironicamente, saliento que o "meu Capitão” tinha a postura característica do anti-herói que o cinema nos impinge e afinal a Pátria consagrou-o como Herói.
E para adensar a narrativa acrescento que o Cap Corvacho estava, nessa altura, em litígio com as chefias militares, porque no dia em que completou oito anos de serviço como oficial, requereu, ao abrigo do EOE (Estatuto do Oficial do Exército), a sua passagem ao escalão de Complemento (milicianos) desligando-se assim da actividade militar.
Com “torneados e floreados” foi-lhe indeferida a pretensão. Só eu e poucos graduados tínhamos conhecimento desta faceta.
Este revés provocou-lhe uma imensa raiva interior, mas em nada buliu na sua condição de militar e o pessoal continuou a seguir o seu capitão até às profundezas do inferno se tal fosse necessário e a cantar, quase como hino, “Eles comem tudo/Eles comem tudo/Eles comem tudo/E não deixam nada - a canção Os Vampiros do Zeca Afonso, proibida no Chiado e arredores, mas difundida em alto som em Guilege, onde “morámos e combatemos” cerca de um ano.
Podia terminar aqui a minha narrativa.
Porém, falta esclarecer o motivo porque, no princípio, eu escrevo os limites temporais do seu comando entre 25 de Dezembro de 1966 e 9 de Setembro de 1968 e mais duas semanas.
O dia 9 de Setembro de 1968 foi o do embarque de regresso da CART 1613. Nessa altura nós ainda andávamos às voltas com a liquidação das três cargas de materiais à nossa responsabilidade. Uma deixada em Colibuia para entregar a quem aparecesse; outra entregue aos nossos substitutos de Guilege, cheia de “falta isto, falta aquilo”; e a última a de Buba e destacamentos de Nhala e Chamarra. Até das Mauser entregues à população em auto defesa éramos responsáveis sem nunca as termos visto.
Perante a situação de eu ir ficar sozinho com 124 (cento e vinte e quatro) autos de ruína, extravio, etc. em curso, e alguns a elaborar, pois o reles 1º sargento das cargas, na Bolola, tinha o prazer sádico de ir descobrir mais uma ficha que não estava a zero e chapar-ma na cara, em face disto, dizia, o Capitão Corvacho resolver adoecer e faltar ao embarque.
Usando a sua influência junto dos seus conhecidos (por sorte o chefe do Serviço de Material tinha sido seu condiscípulo na Academia Militar) em dez ou onze dias coleccionamos os carimbos, vistos e despachos para, posteriormente, ficar tudo a zero, com algum ressabiamento do “reles da Bolola”.
Duas semanas depois o Niassa voltou e levou o “meu Capitão”.
Eu fiquei até meados de Outubro, dependente do fecho de contas do CA (Conselho Administrativo) do BART 1896 nas quais a minha (conta da CART 1613) estava incluída.
Este, embora descrito a traços largos e descoloridos, foi o Capitão de Artilharia Eurico de Deus Corvacho, ainda hoje o meu Capitão. O seu envolvimento no 25 de Abril de 1974 e período subsequente (1), considerado, por muitos, algo controverso, para mim foi absolutamente coerente, não obstante o meu modo de ver possa não coincidir com o meu modo de ser.
Nos dias que correm o meu Capitão emprega a sua enorme coragem na luta contra uma doença grave.
No passado dia 4 de Junho de 2005, amparado pelo nosso grande amigo Dr. Joaquim de Oliveira Martins, o ex-Alferes Médico do Batalhão que preferia estar connosco em Guilege em vez da ainda calma Buba, não deixou de ir almoçar a Braga com os seus homens. Vi muitos ex-soldados a disfarçar os soluços ao verem a dificuldade de locomoção do Homem que, nos seus imaginários, era o primeiro a avançar lá longe nas matas da Guiné.
José Afonso da Silva Neto
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Nota de L.G.:
(1) Foi brigadeiro graduado em 1975, tendo estado à frente da região Militar do Norte.
Capitão de Artilharia Eurico de Deus Corvacho
Nota prévia: O texto que segue é, apenas e só, destinado à difusão no Blogue-fora-nada. O autor.
Creio que é esta a primeira vez que alguém traz ao blogue uma figura concreta dum comandante da campanha da Guiné. Não se trata dum vulgar panegírico, que seria natural nas palavras do seu primeiro-sargento, mas sim duma homenagem devida ao Homem que transformou e comandou a CART 1613/BART 1896, desde 25 de Dezembro de 1966 até duas semanas depois de 9 de Setembro de 1968.
Inicialmente, na orgânica do Batalhão, o Cap Corvacho era o oficial mais antigo no seu posto e desempenhava as funções Oficial de Pessoal e Reabastecimento.
Na nossa primeira noite de Natal, com pouco mais de um mês de Guiné, em São João, um soldado nosso matou, a tiros de G3, o comandante da companhia.
No dia 25 de Dezembro vieram dois helis com oficiais que indagaram, investigaram, fotografaram e regressaram a Bissau sem o Cap Corvacho, que ficou a comandar, interinamente, a companhia.
Eu já tinha lidado com ele em Brá, pois foi o oficial instrutor dum processo disciplinar que exigi ao comandante, na iminência de ser punido por uma infracção de trânsito - excesso de velocidade da viatura que me transportava - apenas em face da participação dum furriel da PM e dum sistema de detecção de velocidade discutível.
O Cap Corvacho (que tinha o curso de Polícia Militar) levou as suas averiguações até ao mínimo pormenor e concluiu – e assim o exarou no final do processo – que a minha ordem ao condutor (não dada, mas assumida) de ultrapassar uma camioneta do BEng [Batalhão de Engenharia] que travou ao ver a patrulha da PM, foi a adequada para evitar a possível colisão, e o excesso de velocidade assinalado pelo aparelho, 12 Km/hora (62-50) em nenhum momento pôs em perigo a circulação na faixa contrária.
Estas conclusões não foram do agrado do comandante. Atirou o processo para as mãos do Capitão e ordenou-lhe que reformulasse os autos porque me queria punir.
O Corvacho voltou a pôr o processo em cima da secretária do comandante e disse-lhe que a única solução era ele nomear um oficial (teria de ser o 2º comandante) para lhe instaurar, a ele Capitão, outro processo, este por desobediência, porque se negava, terminantemente, a alterar uma vírgula que fosse no que ali estava escrito.
Guiné > Guileje > CART 1613 (1967/68)> 1967 > Retrato de família...
© José Neto (2005)
Este gesto valeu-lhe a inscrição na lista dos coirões mal-amados do comandante, onde já figuravam, desde fins de Maio, a 2ª Companmhia de Instrução do RAP 2 (mais tarde CART 1613) no seu todo, o seu falecido comandante e este vosso modesto escriba.
O primeiro acto de comando do Capitão Corvacho foi mandar formar a companhia. A sua breve alocução resumiu-se a:
- Estou aqui para vos comandar até à chegada do novo comandante que há-de vir da Metrópole. Enquanto esta situação se mantiver vou exigir-vos o máximo e dar-vos todo o meu apoio. A minha primeira exigência fica já aqui: O que se passou esta noite foi uma tragédia que, contada e recontada, pode vir a sofrer deturpações que em nada favorecem a companhia. Por isso não vos peço que esqueçam, mas sim que não alimentem as coscuvilhices de Bissau e acho que a melhor resposta que podemos dar aos curiosos é: Isso é um assunto interno da companhia, ponto final.
Mandou destroçar e convocou os oficiais e sargentos para uma reunião. Disse-nos que queria o pessoal o mais ocupado possível. Que fossem à lenha, que fossem jogar a bola, que fossem banhar-se na praia, e que o resto do programa de treino operacional era para cumprir no duro.
Depois chamou-me à parte e fomos dar uma volta para conhecer o quartel – eu tinha chegado ali na véspera, pois tinha ficado em Brá a tratar da papelada e pedi para ir passar o Natal com os “meus rapazes” – e a nossa conversa andou à volta da situação algo calamitosa em que se encontrava o sector da alimentação com os desvarios que o Furriel vaguemestre tinha apontado na reunião.
Ficou assente que eu não ia regressar a Bissau no dia 27, como estava previsto, e ficava em São João a fazer um balanço e pôr um pouco de ordem no sector administrativo enquanto ele ia tentar tirar a pele ao pessoal até fazer deles uns combatentes de verdade.
Guiné > Guileje > CART 1613 (1967/68)> 1967 > Um secretaria improvisada no mato... © José Neto (2005)
Em princípios de Janeiro de 1967, a CART 1613 que regressou a Brá para ficar como companhia de intervenção à ordem do comando-chefe, era outra.
Entretanto chegou a Bissau o oficial nomeado para comandar a companhia, o Capitão de Artilharia Lobo da Costa, e gerou-se um pandemónio dos diabos.
Eu nunca tinha visto, nem achava possível, uma manifestação de soldados. Mas o que é certo é que, por organização espontânea, a “minha tropa” foi postar-se frente ao gabinete do comando do batalhão a gritar:
- O nosso comandante / é o capitão Corvacho.
Com a voz embargada pela comoção o Capitão Corvacho disse-lhes:
- Vocês não sabem o que me estão a pedir… mas fico na companhia. Vou trocar as funções com o vosso novo comandante. Ponham- se a andar.
Toda a companhia, desde o Básico ao Alferes mais antigo, compreendeu aquela decisão do Homem que trocava o sossego da Messa e da Gestetner (máquinas dactilográficas e policopiadoras) pela terrível G3.
Seguiu-se um período de cerca de quatro meses de “vai e volta”. A companhia, aquartelada em Brá, era mandada para os mais diferentes pontos do território, andava por lá dez, quinze dias, e voltava estoirada, mas com um sentimento de dever cumprido cuja expressão máxima era o uso, em qualquer dos uniformes, do Lenço Verde que nos tinha calhado em sorte ainda em Viana do Castelo (todas as companhias do batalhão tinham o seu, de cores diferentes).
Foi numa dessas operações, na área de Pelundo/Jolmete, zona de responsabilidade dum Batalhão de Cavalaria sediado em Teixeira Pinto, que a CART 1613 mais se notabilizou, tendo o comandante do BCAV atribuído ao Cap Corvacho um extenso louvor que deu origem à condecoração com a Medalha de Cruz de Guerra de 2ª Classe.
Ironicamente, saliento que o "meu Capitão” tinha a postura característica do anti-herói que o cinema nos impinge e afinal a Pátria consagrou-o como Herói.
E para adensar a narrativa acrescento que o Cap Corvacho estava, nessa altura, em litígio com as chefias militares, porque no dia em que completou oito anos de serviço como oficial, requereu, ao abrigo do EOE (Estatuto do Oficial do Exército), a sua passagem ao escalão de Complemento (milicianos) desligando-se assim da actividade militar.
Com “torneados e floreados” foi-lhe indeferida a pretensão. Só eu e poucos graduados tínhamos conhecimento desta faceta.
Este revés provocou-lhe uma imensa raiva interior, mas em nada buliu na sua condição de militar e o pessoal continuou a seguir o seu capitão até às profundezas do inferno se tal fosse necessário e a cantar, quase como hino, “Eles comem tudo/Eles comem tudo/Eles comem tudo/E não deixam nada - a canção Os Vampiros do Zeca Afonso, proibida no Chiado e arredores, mas difundida em alto som em Guilege, onde “morámos e combatemos” cerca de um ano.
Podia terminar aqui a minha narrativa.
Porém, falta esclarecer o motivo porque, no princípio, eu escrevo os limites temporais do seu comando entre 25 de Dezembro de 1966 e 9 de Setembro de 1968 e mais duas semanas.
O dia 9 de Setembro de 1968 foi o do embarque de regresso da CART 1613. Nessa altura nós ainda andávamos às voltas com a liquidação das três cargas de materiais à nossa responsabilidade. Uma deixada em Colibuia para entregar a quem aparecesse; outra entregue aos nossos substitutos de Guilege, cheia de “falta isto, falta aquilo”; e a última a de Buba e destacamentos de Nhala e Chamarra. Até das Mauser entregues à população em auto defesa éramos responsáveis sem nunca as termos visto.
Perante a situação de eu ir ficar sozinho com 124 (cento e vinte e quatro) autos de ruína, extravio, etc. em curso, e alguns a elaborar, pois o reles 1º sargento das cargas, na Bolola, tinha o prazer sádico de ir descobrir mais uma ficha que não estava a zero e chapar-ma na cara, em face disto, dizia, o Capitão Corvacho resolver adoecer e faltar ao embarque.
Usando a sua influência junto dos seus conhecidos (por sorte o chefe do Serviço de Material tinha sido seu condiscípulo na Academia Militar) em dez ou onze dias coleccionamos os carimbos, vistos e despachos para, posteriormente, ficar tudo a zero, com algum ressabiamento do “reles da Bolola”.
Duas semanas depois o Niassa voltou e levou o “meu Capitão”.
Eu fiquei até meados de Outubro, dependente do fecho de contas do CA (Conselho Administrativo) do BART 1896 nas quais a minha (conta da CART 1613) estava incluída.
Este, embora descrito a traços largos e descoloridos, foi o Capitão de Artilharia Eurico de Deus Corvacho, ainda hoje o meu Capitão. O seu envolvimento no 25 de Abril de 1974 e período subsequente (1), considerado, por muitos, algo controverso, para mim foi absolutamente coerente, não obstante o meu modo de ver possa não coincidir com o meu modo de ser.
Nos dias que correm o meu Capitão emprega a sua enorme coragem na luta contra uma doença grave.
No passado dia 4 de Junho de 2005, amparado pelo nosso grande amigo Dr. Joaquim de Oliveira Martins, o ex-Alferes Médico do Batalhão que preferia estar connosco em Guilege em vez da ainda calma Buba, não deixou de ir almoçar a Braga com os seus homens. Vi muitos ex-soldados a disfarçar os soluços ao verem a dificuldade de locomoção do Homem que, nos seus imaginários, era o primeiro a avançar lá longe nas matas da Guiné.
José Afonso da Silva Neto
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Nota de L.G.:
(1) Foi brigadeiro graduado em 1975, tendo estado à frente da região Militar do Norte.
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