sexta-feira, 16 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1602: Arqueologia militar: Vestígios da CCAÇ 2317 (Gandembel / Ponte Balana, 1968/69) (Pepito / AD - Acção para o Desenvolvimento)

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket


Vestígios da passagem da unidade do Idálio Reis por Balana, destacamento afecto a Gandembel (CCAÇ 2317 / BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69).

Foto: © AD - Acção para o Desenvolvimento (2007). Direitos reservados.

Guiné > Gandembel > Ponte Balana > Novembro de 1968 > Passagem de uma coluna logística de Aldeia Formosa para Gandembel. A CCAÇ 2317, a que pertencia o Alf Mil Idálio Reis, e que estava aquartelada em Gandembel, tinha um grupo de combate a defender a Ponte Balana (de Abril de 1968 a Março de 1969). Estas duas posições foram abandonadas pelas NT. A "Gandemdel das morteiradas" era uma canção de caserna muito em voga quando cheguei à Guiné (LG).

Foto: © José manuel Samouco (2006). Direitos reservados.

1. Recebi, a 13 de Março de 2007, a seguinte mensagem do nosso querido amigo Pepito:

Caro Luís Graça:

Seguem 10 fotos do antigo aquartelamento de Gandembel-Balana que tirei há dois dias no sul.

Se todos estarão interessados, o Idálio Reis (1), mais ainda. Ele terá é que redescobrir o aquartelamento, pois o que sobrou foi pouco.


Abraços
Pepito
AD - Acção para o Desenvolvimento
Bissau

2. Estou a aguardar um primeiro comentário do Idálio Reis, a quem reenviei as imagens, para a sua apreciação em primeira mão. Recorde-se que estamos, entretanto, a publicar a história da sacrificada CCAÇ 2317 (2) que construiu em 1968 o aquartelamento de Gandembel e o destacamento da Ponte Balana, duas unidades logo a seguir abandonadas em 1969.

A CCAÇ 2317, de que o nosso camarada Idálio Reis foi Alferes Miliciano, terá sido a mais (ou uma das mais sacrificadas) unidades militares portuguesas no TO da Guiné. Releiam-se as duras palavras do Idálio Reis, no primeiro dos dois textos já publicados:

(...) "Em Cacine apeámos, e a 20 de Março [de 1968] chegávamos a Guileje, e ninguém pressagiava a sinistra e fatídica odisseia que doravante estava reservada à CCAÇ 2317. Ao mandar construir um destacamento fixo, em zona onde o PAIGC detinha um quase inteiro domínio territorial, o estado-maior do comando militar da Província cismou numa táctica militar imprudente, reveladora de uma grosseira insânia, destituída de qualquer preconceito, tanto mais que assentava no propósito de minimizar o poderio militar do adversário.

(...) "E se o desaire [ das NT, em Gandembel/Ponte Balana,] não é de todo gorado, tal deve-se ao preponderante papel desenvolvido pelas tropas paraquedistas, que se cruzaram connosco nesta aventura, pela forma extremamente meritória como o souberam assumir. Foram as verdadeiras tropas de elite, que num momento particularmente conturbado para nós, apearam em Gandembel, e coube-lhes a ousadia de conseguirem suster quase radicalmente as acções do PAIGC.

"Mas, no deve e haver, ficaram a perdurar para sempre, os resultados de uma sentença muito pesada. E estes, sem margem para quaisquer dúvidas, vieram a redundar num rotundo e plangente fracasso, pela quantidade de mortos e estropiados, dos feridos graves, e dos evacuados com maleitas várias, estas doenças que nos vêm chagando no nosso quotidiano.

"Já alguém apontou no nosso blogue, o número de 52 mortos e muitos feridos graves. Torna-se-nos muito difícil atestar este valor, caro Zé Neto, mas do que me foi dado a observar e conhecer, considero que as tropas que estiveram mais ou menos envolvidas com a odisseia de Gandembel, entre mortos e evacuados para Lisboa (feridos e doentes), atingem seguramente a centena de homens, como terei oportunidade de ir focando"(...).

_________

Notas de L.G.:

(1) Ex-Alf Mil da CCAÇ 2317: vd. posts de

19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXIV: Um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317)


18 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXX: Um pesadelo chamado Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317, 1968/69)

(2) Vd. posts de:

20 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1449: Para breve, a história da CCAÇ 2317, que esteve em Gandembel e Ponte Balana (Idálio Reis)

16 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1530: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (1): Aclimatização: Bissau, Olossato e Mansabá

9 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1576: Fotobiografia da CAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (2): os heróis também têm medo

Guiné 63/74 - P1601: Dois anos depois: relembrando os três majores do CAOP 1, assassinados pelo PAIGC em 1970 (António Graça de Abreu)

1. Texto do António Graça de Abreu (ex-alf mil, CAOP 1, Teixeira Pinto; esteve também em Mansoa e Cufar, 1972/74):

Excertos do livro Diário da Guiné, de António Graça de Abreu (1), recente membro da nossa tertúlia (conhecemo-nos ontem pelo telefone, é professor de inglês na Escola Secundária José Saramago, em Mafra, e tradutor de chinês; além disso, ele vai ter a gentileza de me mandar um exemplar autografado do seu livro, o seu 12º livro publicado).



Canchungo, 18 de Agosto de 1972 > A história dos três majores, do alferes e dos dois intérpretes negros assassinados pelo PAIGC (2).


Neste CAOP 1, o alferes Marques ocupa o lugar que outrora foi do alferes Joaquim Mosca, adjunto de Informações, o capitão Borges mais os majores Barroco e P. estão aqui em substituição dos majores Magalhães Osório, oficial de Informações, Pereira da Silva, oficial de Operações e Passos Ramos, chefe do Estado Maior (*).

No dia 20 de Abril de 1970, estes três majores mais o alferes Mosca e dois negros, Aliu Sissé e Patrão, que serviam de intérpretes, foram brutalmente mortos à saída da estrada entre o Pelundo e o Jolmete.

Dando corpo à política do general Spínola da Guiné Melhor e pacificação do chão manjaco, há dois anos atrás a estratégia político-social do CAOP 1 tentou convencer alguns comandantes militares do PAIGC a depor as armas, trazendo-os para o nosso lado e criando condições para a inserção harmoniosa desta gente numa nova Guiné, moderna, de paz e progresso para todos.

Realizaram-se várias reuniões entre os três majores do CAOP 1 e os guerrilheiros, o diálogo parecia começar a dar frutos. O general Spínola participou também num dos encontros e estava disposto a negociar o fim da guerra com o próprio Amílcar Cabral. Ainda à sombra da bandeira portuguesa, avançar-se-ia para uma Guiné com autonomia, uma espécie de soberania partilhada entre negros e brancos. Não era essa - nem é hoje -, a linha política do governo de Lisboa, nem do PAIGC que lutava pela independência total e expulsão dos colonialistas brancos.

No dia 20 de Abril de 1970, os três majores, o alferes e os intérpretes saíram desta casa, sede do CAOP 1, em dois jipes para mais uma reunião secreta com os chefes dos guerrilheiros. Passaram o Pelundo e avançaram desarmados, sem escolta em direcção a uma pequena floresta, no caminho para o Jolmete. Era o lugar combinado, já utilizado em anteriores encontros. Os guerrilheiros estavam lá, à espera dos militares portugueses, desta vez não para negociar mas para os matar. Foram todos cobardemente assassinados com armas brancas e os corpos, esquartejados. Não foram mortos a tiro porque o barulho provocaria o alarme no quartel do Pelundo, tão próximo.

Eram homens de excepção, nossos antecessores neste CAOP 1, neste edifício, nestas salas. Permanecem na memória de todos (**).

_________________

Notas do autor:

(*) Um dos oficiais que, em 1970 após a morte destes majores, os substituiu no nosso CAOP 1, foi o então capitão António Ramalho Eanes. Citado por Otelo Saraiva de Carvalho, Alvorada em Abril, Lisboa, Livraria Bertrand, 1977, pag. 72.

(**) O major de Infantaria Alberto Magalhães Osório repousa no cemitério do Baraçal, Celorico da Beira, o major de Artilharia Joaquim Pereira da Silva descansa no cemitério de Galegos, Penafiel, o major de Artilharia Fernando Passos Ramos jaz na terra fria do cemitério de Paranhos, Porto, o alferes miliciano Joaquim Palmeiro Mosca dorme para sempre no cemitério municipal do Redondo.

No site http://www.blogueforanada.blogspot/, com data de 20.11.2005, o ex-furriel João Varanda da companhia do Pelundo, conta também esta história e conclui:"Deixo-lhes um abraço fraterno e um apelo a todos os combatentes para que visitem estes cemitérios e coloquem nas suas campas um cravo vermelho de Abril" (3).

Sobre os três majores ver o depoimento do general Carlos Fabião, "Milícias Negras", em A Guerra de África I, Lisboa, Círculo de Leitores, 1995, pag. 371. Na mesma obra, idem, ibidem, II, pag. 716, no depoimento do general Almeida Bruno, "Libertar Guidaje", encontra-se uma fotografia dos três majores em frente das instalações do CAOP 1, em Teixeira Pinto, pouco tempo antes de serem mortos.

Ver também o texto "Desaparecidos em Combate" no jornal Expresso/Revista de 24.4.95 e a sentida resposta do general Ricardo Ferreira Durão, no mesmo jornal a 27.5.95.

___________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de:

27 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1552: Lançamento do livro 'Diário da Guiné, sangue, lama e água pura' (António Graça de Abreu)

12 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1517: Tertúlia: Com o António Graça de Abreu em Teixeira Pinto (Mário Bravo)

6 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1499: A guerra em directo em Cufar: 'Porra, estamos a embrulhar' (António Graça de Abreu)

5 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1498: Novo membro da nossa tertúlia: António Graça de Abreu... Da China com Amor

(2) Vd. post de:

17 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1436: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F.Sousa) (1): Perguntas e respostas

18 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1445: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F.Sousa) (2): O papel da CCAÇ 2586 (Júlio Rocha)

19 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1446: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M. F. Sousa) (3): O depoimento do 1º sargento da CCAÇ 2586, João Godinho

27 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1465: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (4): Os majores foram temerários e corajosos (João Tunes)

6 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1500: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (5): Homenagem ao Ten-Cor J. Pereira da Silva (Galegos, Penafiel)

8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1503: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (6): Fotografia dos três majores (Sousa de Castro)

12 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1519: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (7): Extractos da entrevista de Ramalho Eanes ao 'Expresso'

25 de Fevereiro de 2007 >Guiné 63/74 - P1549: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (8): O contexto político-militar (Leopoldo Amado) - Parte I

6 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1566: Dossiê O Massacre do Chão Manjaco (Afonso M.F. Sousa) (9): O contexto político-militar (Leopoldo Amado) - Parte II

(3) Vd. pst de 26 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXIII: A morte de três majores e de um alferes no chão manjaco (João Varanda)

Guiné 63/74 - P1600: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (38): Missirá, a Fénix renascida

Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969 > O destacamento vai renascer das cinzas, depois do ataque de duas horas do PAIGC, na noite de 19 de Março de 1969.

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.





Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969 > "O Luís Casanova gostava de instantâneos, disparos ao sabor do quotidiano. Ele registou a minha cubata a partir de um local que era o fórum dos dias quentes, a cantina. A minha cubata fora o refúgio do Prof. Armando Cortesão, um dos mais eminentes cartógrafos mundiais. O cientista viveu alguns meses em Missirá, acompanhando na região do rio Gambiel uma plantação extensa de palmeiras de Samatra. Fui várias vezes a Gambiel, e lá terá lugar, na primeira semana de Janeiro de 69, um rencontro com uma força do PAIGC. Dormi até Março na cama do cientista, com um colchão de folhelho" (BS).



Foto e legenda: © Beja Santos (2007). (Com a devida vénia ao Luís Casanova, que foi o fotógrafo, e que era furriel miliciano no Pel Caç Nat 52). Direitos reservados.







Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Cuor > Missirá > 1969 > O esatdo a que ficou reduzida a morança do comandante do Pel Caç Nat 52 , depois do grande ataque ao destacamento em 19 Março de 1969. O Beja Santos perdeu tudo o que tinha, incluindo os seus haveres mais preciosos: os livros, os discos, os escritos, as cartas... Valeu-lhe a solidariedade do pessoal de Bambadinca, sede do comando e da CCS do BCAÇ 2852 (1968/70), e em especial do seu comandante, o tenente-coronel Pimentel Bastos.


Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.




38ª Parte da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (3). Texto enviado em 21 de Fevereiro de 2007.Texto enviado em 27 de Fvereiro de 2007.


Caro Luís, aqui vai a prosa da semana. Fotografias da Missirá calcinada tens tu, até comigo a fingir de construtor civil. Mal tinha acabdo de escrever este texto e descobri o louvor que foi dado ao Mamadu Camará, exactamente pelo conjunto da sua colaboração e onde se alude a um episódio que aqui se relata: Mamadu que nunca conduzira na vida salvou um Unimog de ficar esturricado. Seguem pelo correio os dois livros aqui mencionados e um envelope com correio da Cristina. Recebe um grande abraço do Mário.


Missirá renasce entre a lama e o cimento
por Beja Santos


Lá para o fim de Abril, caía a pique o dia, enquanto Gibrilo Embaló, Dauda Seidi, Uam Sambu, Nhaga Macque e Ieró Baldé amassam com os pés a nova lama que amanhã entrará numa singela forma de madeira, para fazer mais tijolos, no momento em que Cibo Indjai lança capim que reforçará essa lama e dará consistência aos tijolos que amanhã entrarão na dita forma sob a ameaça da época das chuvas que já se anunciou, e quando Quebá Soncó ajudado pelo seu filho Quecuta faz uma aspersão de água para que a massa barrenta se torne mais maleável, sinto-me inebriado e festivo pela epopeia do renascimento de Missirá. A minha casa desapareceu, vivo temporariamente no abrigo do Casanova, incólume às desvastações daquela noite de 19 de Março passado. Inebriado estou, e vou saudar estes operários e caçadores nativos, trolhas, heróis da guerra e da paz.

Sento-me, acendo o candeeiro de petróleo, olho fascinado para a folha A4 e escrevo Um relatório de Abril, um simulacro de poema para falar da gesta em que saímos das cinzas, combatemos e felicitamos o Cuor:

"Escrevo-vos em júbilo vendo as papaias a crescer e quando um sol poente incendeia as cores das novas moranças. Estas casas são, por ora, a lama e cibes engavinhados da bolanha onde os nossos tios mandingas continuam a cultivar a mancarra e a cana. No ar, há uma nostalgia da sumaúma que esvoaça nas crinas de um bissilão, aquela árvore de sangue forte que me dá coragem neste tempo de entusiasmo. Mãos pretas enchem as malhas de cimento, rasgam as portas que abrem para o arame farpado. Cada porta nova fala em nome de 17 moranças calcinadas. Anoiteceu e já não posso ver as enxadas que ribombam nos novos espaços da vida. Há horas em que são soldados, vão longe daqui e vigiam o rio, para que os barcos passem. Há horas em que são agricultores alçados em construtores, perfilando tijolos de adobe, reconstruindo com sorrisos, afastando os medonhos presságios. São seis horas da tarde, há um vento estrangeiro que anuncia uma luz de chumbo que vai acobertar por algum tempo estes criadores de uma tão humilde criação. Explico: até aos joelhos amassa-se a lama, enquanto ao lado se lavra a golpes de catana um cibe, se afaga uma nova parede e, como num prodígio de biologia, a parede sobe onde antes estavam naves chamuscadas. Agora, Sadjo amigo, nosso porta-bandeira, Cuor rima com suor, terra de seda oleaginosa. Escrevo-vos com a espingarda ao lado e um candeeiro de petróleo que desanuvia a sombra e ilumina o arvoredo deste gigante equatorial onde habito. Escrevo-vos para dizer que todos os olhos despontam em fósforo, nesa terra côncava vive-se uma rapsódia de adolescentes e lembro o Abril da minha Pátria.".

A minha mãe leu e ficou indecisa. Mais tarde, quando o Furriel Casanova a foi visitar, questionará:
- Não percebo a guerra que vocês fazem. O meu filho falou-me num soldado que era porta-bandeira. Não é uma loucura andar pela mata com um porta-bandeira?.

A gente de Madina/Belel trouxe canhões sem recuo e balas incendiárias


Voltando atrás lembro-me da conversa que tive com o Queta Baldé acerca dos acontecimentos de 19 de Março. São 9 da manhã, o Queta estava bem em frente a mim, as mãos circulam no ar, ritmam a cadência viva expressa no olhar de quem tudo registou, para nosso gáudio:
-Nosso alfero, não pode imaginar a sorte que teve a gente de Madina. O dia tinha estado muito quente, não havia aragem na noite. Trouxeram canhões sem recuo e balas incendiárias, puseram-se a 500 metros mesmo em cima da estrada, entre o quartel e a fonte de Cancumba, junto ao cemitério mandinga. A primeira roquetada foi sobre a sua casa que explodiu minutos depois, pois o alferes Reis tinha lá metido seis caixas com granadas de bazuca. Foram duas horas de ataque. As balas incendiárias queimaram tudo, o calor era um inferno. Eu fui para a metralhadora, no abrigo do Teixeira das transmissões e ali estive durante as duas horas do ataque. O Campino foi o herói, como o Mamadu Djau, sempre junto ao arame farpado, à procura da saída do fogo do nosso inimigo. O Mamadu Camará que não sabia conduzir foi tirar o Unimog grande que estava parado junto do combustível e andou com o Unimog pela parada. Mas quem mais lutou foi o Cherno que chegara na véspera de Bissau. Vi-o todo molhado de canseira a responder com o morteiro até se acabarem as granadas. Na manhã seguinte, quando fizemos o reconhecimento vimos muito sangue da gente de Madina, eles perderam gente.

De facto, o PAIGC não saiu completamente em glória deste ataque a Missirá. No fim de Março, fui chamado a Bambadinca para conhecer um desertor de Madina que tinha sido trazido pelo chefe de tabanca de Mero. As notícias eram importantes para mim, aquele enorme balanta falou calmamente na sua língua nativa e Nhaga Macque traduziu:

Madina/Belel insistia em armadilhar todos os trilhos que tínhamos descoberto, alterando os itinerários até Mato de Cão, Canturé e Nhabijões; houvera mortes e feridos no ataque de Março e Corca Djaló, o Comandante de Operação, ficara furioso por só ter sabido mais tarde que as munições em Missirá estavam praticamente esgotadas ao fim daquele tremendo ataque; Madina/Belel ia receber reforços para aumentar a pressão sobre Missirá e Finete.

Não valorizei nem desvalorizei estas informações, sendo céptico destas apresentações espontâneas de desertores, sabe-se lá se novos informadores legitimados em Santa Helena ou nos Nhabijões. Mas foi este informador que me fez estar atento aos sinais de presença humana e animal que eu ia encontrando nos nossos trilhos mais batidos, até que um dia descobri que valia a pena patrulhar picadas de outrora. Vim a ter surpresas, como mais tarde aqui se contará.


Chego de Bissau a 21 de Março de 1969



A Missirá onde eu chego na tarde de 21 de Março é um aquartelamento desolador, marcado pelo negro dos incêndios, de pé estão os abrigos de chapa, a cantina, a cozinha e messe, o balneário e as moranças do régulo que escaparam pela distância de todas as outras moranças que desapareceram com o vento assassino que subitamente soprou e se propagou às habitações dos caçadores nativos e suas famílias.

Quem me recebe é Bacari Soncó que substitui o régulo, ainda hospitalizado. O Reis, que me substituiu enquanto fui operado, já está em Bambadinca e jura não voltar a Missirá. Quando falo em Queta do alferes Reis, ele lança uma casquinada ainda maior daquela que teve quando falou dos armadilhamentos do fim do ano:
-Nosso alfero era muito divertido. Levava aqueles papéis que cravava nas árvores onde escrevia que tinha ali passado o Alferes Reis e tratava-os por turras paneleiros.

À entrada do quartel verifico que o arame farpado voltou a cair, vão ser mais semanas de tesoura corta-arame e Unimogs carregados de rolos e a força bruta a esticar o arame. Ardeu tudo, até pás e picaretas, os fardamentos, armas, os bens dos soldados e suas famílias. Antes de falar à população pedi para ir ver onde morreu Sadjo Baldé, que eu fora buscar ao Cossé há tão pouco tempo na companhia da mulher. Pelo Queta, descobri mais tarde, fora uma relação horrível já que a mulher amaldiçoara a sua compra, estando prometida a outro homem.

Depois, entrei sozinho na minha cubata fixando o olhar naquelas cinzas onde outrora estava a minha riqueza. Só restavam os ferros da cama onde dormira o Prof. Armando Cortesão. Atrás de mim, Cherno com a voz embargada pede desculpa por não ter podido salvar nada. Rezo a Deus pelo entusiasmo que tenho, pela alegria que sinto, em ter voltado a Missirá com o propósito de a ver renascer. Dirijo-me à população e a todos os soldados agradecendo-lhes o modo como lutaram e prometo-lhes que Missirá vai reaparecer muito em breve, pedindo a todos um esforço incomum nos próximos meses.

Depois do jantar, reúno os três furriéis (Casanova, Pires e Pina, recentemente chegado) conjuntamente com os cabos.
- Vamos continuar a ir todos os dias a Mato de Cão, Madina/Belel não vai ficar tranquila pois continuaremos ofensivos, e este espaço vai sair das cinzas. Haverá uma rígida divisão de tarefas, a população civil contribuirá para a reconstrução das moranças, tenho a promessa de que o cimento e outros materiais de engenharia vão começar a chegar para a semana.


A solidariedade do Pimbas e do BCAÇ 2852


Alguém me entrega uma carta que o Pimbas deixara para mim. Sim, o Pimbas viera de helicóptero na manhã seguinte, trazendo com o Capitão Neves o primeiro reabastecimento de munições. O Queta já me tinha dito:
- Ao fim de duas horas de ataque, quando começámos a ver que os cartuchos iam acabar, um grupo de soldados foi buscar todos os velhos cartuchos e decidimos que se o ataque continuasse os deixávamos entrar e aquelas últimas balas seriam para eles.

O Pimbas estava electrizado com aquela ruína, visitou demoradamente tudo, trouxe um verdadeiro consolo, depois, sentado na nossa messe redigiu uma linda mensagem:
- Não estou preocupado contigo, pois sei que vais levar a carta a Garcia. Não merecias esta chatice, mas a guerra prega-nos estas partidas. De tudo quanto precisares e estiver ao nosso alcance, conta connosco. Recebe um abraço amigo.

Precisávamos de tudo. Quando cambámos o Geba, éramos uma horda de indigentes, havia mais gente a vestir civil que militar, em chanatos, camisas interiores, calções fulas, enfim o tal circo referido pelo homem grande de Bissau. Na CCS, foi-nos oferecido todo o fardamento existente, a começar pela roupa dos falecidos no rio Corubal. Nesse dia não precisei de pilhar nada, deram-me roupa interior e exterior, com uma enorme dignidade alguém trouxe um subscrito com dinheiro e disse-me:
- É uma recolha pobrezinha para ajudares quem tu quiseres.

Aquele dinheiro deu-me muito jeito para comprar desde candeeiros a sabão, artigos de costura e tecidos para as mulheres e crianças. Foram tempos muitíssimo difíceis mas numa carta de 6 de Maio informo para Lisboa:

"Já ninguém anda nú, até os alfaiates de Bambadinca fizeram roupa sem pedir dinheiro. Começa a choviscar mas ja temos empilhados e salvaguardados milhares de blocos. Faltava-nos arroz e deram-nos o que apanharam no Fiofioli durante uma grande operação. Chegaram 500 sacos de cimento, todo o material de aquartelamento, reparámos o que era possível reparar, o resto aparece de raíz".

Nem tudo é gesta ou me deixa feliz: Jolá Indjai vai para Lisboa, julgava-se que era um vírus horrível, descobriu-se que estava tuberculoso. Só o voltarei a ver em Agosto de 1970, uma hora antes de eu embarcar no Carvalho Araújo onde ele me consolou:
- Agradeço o que a sua família fez por mim. O meu maior orgulho, aquilo que direi aos meus filhos é que pude combater a seu lado".

Um dia, já em Abril, descobrirei que me roubaram 1500 escudos, o que restava das minhas economias, as viaturas continuam a empanar, o Rui Gamito veio cá e deu conselhos de engenharia mas contínuamos a trabalhar sozinhos. Todas as noites trabalho com o Pires no inferno dos autos de abate, explicando pormenorizadamente o material perdido, desde camas a capacetes, numa operação interminável. A espingarda do Teixeira que tinha sido roubada por alguém que seguramente deixara a sua naquele intempestivo ataque de abelhas, durante a Anda Cá, desapareceu em auto de abate, numa descrição forjada de ferros calcinados. Continuo a trabalhar no auto da granada de Fatu Conté, expedindo deprecadas para militares ex-militares que irão ser sobressaltados quanto às ocorrências daquela granada incendiária que explodiu no reboque, em Finete, pelas 2h da tarde de 19 de Abril de 1967. Enfim, este é o quotidiano da guerra.

A informação do balanta que se apresentou em Mero pode não ser de todo fidedigna, mas a verdade é que vamos encontrando pegadas no chão enlameado à volta de Mato de Cão, e passando as semanas aumentam os indícios de bostas de vaca. Ninguém dá explicação do que se está a passar, não sei como actuar e onde emboscar os que vêm abastecer-se aos Nhabijões e a Mero. Até que num amanhecer olho para a carta do Cuor, vejo a extensa linha vermelha de uma estrada que no passado permitia vir de Bissau até Porto Gole, daqui ao Enxalé e daqui até Geba e Bafatá e perguntei-me:
- Não será que o meu inimigo está exactamente a fazer aquilo que era impensável, ou seja a usar a estrada com toda a calma e a seguir a picada que julgávamos abandonada até Madina?

Iremos começar a farejar e em fins de Abril descobriremos que a gente de Madina/Belel tinha de facto abandonado os itinerários antigos, agora deslocava-se pela estrada tida por abandonada. Feita a descoberta, iremos pacientemente emboscar. Os frutos surgirão no fim de Maio, exactamente na véspera do ataque a Bambadinca.

E portanto, a vida continua. O Casanova , com um olhar cúmplice, antes de partir para férias disse-me:
- Perdeu todos os seus discos mas guardei-lhe uma ópera cantada pela Maria Callas, a Tosca.

Estou sem dinheiro para comprar gira-discos, leio furiosamente o que levei para Bissau, o que comecei a comprar em Bissau, refazendo a minha bilbioteca. O Barco da Morte, por Agatha Christie, é um policial apaixonante, que ainda hoje releio sem nenhuma perda de surpresa. Uma multimilionária rouba o namorado à sua melhor amiga e vai passar a lua de mel a descer o Nilo. O agrupamento humano que se junta indicia alta tensão: a a antiga amiga da multimilionária aparece inesperadamente em todos os percursos da viagem; arrivistas, ladrões de alta roda, escritores exóticos e um detective lendário, Hercule Poirot, são protagonistas de vários dramas até chegarmos a cinco assassinatos e a um grande desfecho em que o que víamos escrito por Agatha Christie era totalmente o inverso do que realmente se estava a passar. A capa de Cândido da Costa Pinto é hoje um ícone do grafismo glorioso desse tempo.


Platero... e Eu



Li também Platero e Eu, de Juan Ramón Jiménez, a história do burro mais humano da literatura mundial:

"Platero é pequeno, peludo, suave; tão macio, que dir-se-ia todo de algodão, que não tem ossos. Só os espelhos de azeviche dos seus olhos são duros como dois escaravelhos de cristal negro. Come o que eu lhe dou. Gosta das tangerinas, das uvas moscatéis, todas de âmbar, dos figos roxos, com sua cristalina gotita de mel. É terno e mimoso como um menino, como uma menina...; mas forte e seco como de pedra. Quando nele passo, aos domingos, pelas últimas ruelas da aldeia, os camponeses, vestidos de lavado e vagarosos param a olhá-lo: - Tem aço... Tem aço. Aço e prata de luar ao mesmo tempo."

Platero brinca com os meninos, passeia-se pelos campos, deslumbra-se com a chegada da Primavera, é o amigo mais fiel do seu dono, a quem o autor chama O Louco: "Vestido de luto, com a minha barba nazarena, e o meu pequeno chapéu negro devo ter um estranho aspecto cavalgando na macieza cinzenta de Platero. Um burro que brinca enquanto o dono lê clássicos e contempla a lua. Um dono amigo que lhe tira os espinhos quando Platero começa a coxear. Relação fecunda e cúmplice, que atravessa as quatro estaçõess do ano e várias ciclos da vida. Platero relincha quando depois das lenta madrugadas de Inverno chega o tempo de floração. Até que um dia esse bicho humanizado morre aos olhos do veterinário impotente para o fazer regressar à vida: "O seu pêlo eriçado parecia o cabelo traçado das velhas bonecas, que cai numa poeirenta tristeza quando se lhe toca. No curral silencioso, acendendo-se sempre que passava pelo raio de sol do postigo, revoava uma bela borboleta tricolor." A edição de Platero ainda é mais preciosa com os desenhos belíssimos de Bernardo Marques.

Este mês de Março é de labor, entre demolições e construções. Não há férias e dissuado a Cristina de vir até à Guiné, sabe-se lá com que tortura estamos a pagar esta nossa separação. É um tempo de promessas, um tempo único, irrepetível. O leitor que se acautele pois vamos falar de trivialidades, de peças para o Unimog que não chegam, de falta de arroz, o Carlos Sampaio vai partir para Moçambique, enquanto eu faço de mestre de obras uma parte do meu pelotão vai até à Ponta do Inglês onde há um golpe de mão bem sucedido sem sangue e com a resignação dos capturados. Lá para Junho caio inanimado de exaustão e o David Payne põe-me a caldos e repouso profundo. Mas Missirá já renasceu.

___________

Nota de L.G.:



Guiné 63/74 - P1599: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (11): Paulo Salgado


1. Mensagem do Paulo Salgado:

Camaradas Tertulianos,

Este tema (1) é, e será sempre, recorrente e com interpretações várias, segundo perspectivas culturais, sociológicas e políticas diferentes.

Antes de me pronunciar - uma vez mais - sobre o assunto, fazendo-o com prudência e muita humildade, quero reafirmar que os meus contributos raramente se têm localizado, temporalmente, no período da guerra; intervim mais sobre as minhas vivências durante as estadias na Guiné-Bissau, em 1990-1992 (segunda comissão), vários meses entre 1996 e 2005, e de Setembro de 2005 a Setembro de 2006 (terceira comissão de apenas um ano). São quase seis anos de Guiné. Este tempo todo - irei lá mais vezes? - deu para reflectir.

Mas, graças à minha ida à guerra, tive oportunidade de rever aquele pedaço de território encharcadiço, mas com tanta riqueza e espiritualidade, com tanto carinho para dar, não teria oportunidade de ver as crianças com o seu sorriso, e todos com muita esperança...

Outra nota: neste blogue - que em boa hora foi consituído com a dimensão e natureza que apresenta, e que não é fácil gerir! (honra seja feita ao Luís Graça, em primeiro lugar) - permite-nos fazer a catarse, contar e recontar episódios (alguns vividos por camaradas em conjunto que, porventura, os recordarão de maneira diferente porque os sentiram de diversa forma - já se abordou este tema, também), pensar nos bons e maus momentos, nas emboscadas, nos golpes de mão, etc. Se é assim, esta questão da deserção deve ser trabalhada com rigor, deve ser abordada com muita humildade intelectual, sob pena de, por um lado, entrarmos em ressentimentos, e por outro, cairmos no facilitismo histórico.

Tenho lido atentamente as intervenções e, confesso, sinto que muitas afirmações têm sido feitas com racionalidade notável, outras, mais emocionadas, demonstrando alguma - desulpai a expressão! - sobranceria.

Conto-vos um episódio, que o Moura Marques (2) me recordou, pois tal me escapava no fundo da memória. Recordava-me ele:
- Olha, Salgado, tu, em Santa Margarida, diante do grupo de combate que estava a consituir-se, disseste mais ou menos o seguinte: se algum de vós sente que ir para a guerra não está correcto, então ainda está a tempo de recuar.

Bom, não sei se foi isto que eu disse exactamente, mas o Moura Marques é que mo referiu (e eu tenho por ele um respeito total, uma amizade infinda, pois ele é um homem grande, um camaradão, e cuja amizade se fortaleceu aqui (já falei dele num contributo neste blogue).

Estou, pois, confrontado com uma realidade: eu estava a sugerir a deserção? Eu estava a apontar caminhos duvidosos? Colocava os jovens em situação delicada? Tinha diante de mim (eu já tinha feito 24 anos!) rapazes mais jovens do que eu, porventura alguns analfabetos e uns tantos desconhecendo as causas e as consequências da guerra. Mas, de todo, inteligentes como eu, sagazes, mais ainda.

Para uma afirmação como aquela, estaria certamente, no subconsciente, a minha passagem por Coimbra em 1968-1969, as fugas à guarda montada junto à escadaria monumental, algo que perpassou por mim em tempos de estudante voluntário de direito.

Fica-me, pois esta dúvida: de alguma forma, eu estaria a colaborar numa eventual deserção.
Mais ainda: estarei eu aqui a sentir-me um pouco desertor?

Pessoalmente, eu equacionei essa hipótese. Ir para Paris, onde o meu Pai tinha um amigo (não digo o nome dessa Figura porque já faleceu) seria um caminho que se me colocou, digo-o com toda a franqueza. Mas, confesso-vos que o não fiz por duas razões: a primeira porque não queria enfrentar a situação de não voltar a ver a rever a minha mãe e a minha namorada- aquela era adorada e ficaria triste se tal acontecesse; esta porque de facto foi e é a minha paixão, o meu amor.

A segunda razão parece infantil e contraditória (embora politicamente eu não acreditasse em soluções militares): eu tinha a ideia que estava psicológica e militarmente preparado (tinha andado em Lamego em Operações Especiais) e, tendo muito medo, como mais tarde vim a sentir imensas vezes, algo me dizia que voltaria.

Hoje, como diz o A. Marques Lopes, ficaria novamente com grandes dúvidas.

Quanto a mim, a palavra poderia ser dada aos desertores, se assim entendessem (fossem quais fossem as razões da sua atitude), eles poderiam dar-nos o seu testemunho, poderiam - penso - ajudar-nos, também com a sua humildade, a compreender melhor este fenómeno da deserção e das suas causas (que aliás, como sabeis, aconteceu com muitos jovens frnaceses na Argélia, e com belgas, no Congo).

Dêmos-lhes a palavra, se assim o entenderem. De outro modo, nunca chegaremos a saber o que os moveu. Tenham eles a humildade de nos contar por que razão o fizeram.

Mantenhas

Paulo Salgado
Ex-Alf Mil Cav

CCAV 2712
Olossato e Nhacra (197o/72)
________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

3 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1560: Questões politicamente (in)correctas (25): O ex-fuzileiro naval António Pinto, meu camarada desertor (João Tunes)

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1585: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (1): Carlos Vinhal / Joaquim Mexia Alves

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1586: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (2): Lema Santos

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1587: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (3): Vitor Junqueira / Sousa da Castro

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1588: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (4): Torcato Mendonça / Mário Bravo

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1589: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (5): David Guimarães / António Rosinha

13 de Março de 2007 >Guiné 63/74 - P1591: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (6): Pedro Lauret

14 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1592: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (7): João Bonifácio / Paulo Raposo / J.L. Vacas de Carvalho

14 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1593: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (8): A. Marques Lopes

15 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1596: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (9): Humberto Reis

15 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1597: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (10): Idálio Reis

(2) Vd. post de 2 de Março 2006 > Guiné 63/74 - DCI: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (12): reviver o passado em Olossato

quinta-feira, 15 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1598: Conto(s) do barqueiro do Geba (Luís Graça)



Africanidades > 8 de Março de 2007 > Do Casamança ao Cacheu

Foto: © Jorge Rosmaninho (2007). (Com a devida vénia...). Extraído do seu blogue Africanidades (Vivências, imagens e relatos sobre o grande continente África vista pelos olhos de um branco... que, por sinal, é também um grande português do pós-império)


Jorge: Roubei-te o teu barqueiro, o teu belíssimo homem da piroga no Cacheu, que eu não conheço. Conheci o Geba, o Corubal, o Udunduma, outros rios, a mesma humanidade, a mesma africanidade...

Revisito de tempos a tempos o teu/nosso blogue, o Africanidades, as tuas vivências, imagens e relatos sobre o grande continente África (re)visto, sentido, cheirado, apalpado, (red)escrito, fotografado, amado por um grande português do pós-império, errante, inquieto, solidário, meridional, global...

Olha, em troca, deixo-te aqui um poema, uma lengalenga que um dia ouvi a um barqueiro do Rio Geba. Não sei fula, nem mandinga, nem balanta. Mas - imagino - a língua dos barqueiros não deve diferir muito de rio para rio, do Geba ao Tejo, e até ao rio da nossa aldeia, como diria o Alberto Caeiro/Fernando Pessoa (O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia /Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia)...

Ao Jorge e ao todos os portugueses errantes, de ontem, de hoje e de amanhã. A todos os barqueiros do mundo. A todos os rios sem ponte. A todos os que querem cambar um rio e não têm barqueiro, nem barca, nem ponte, nem margens, nem pontos de cambança ou de referência... Por fim, ao senhor barqueiro de Caronte para que, quando nos levar, de vez, na sua barca, nos leve com cuidado, com jeito, não vá a gente... acordar. (LG).


Conto(s) do barqueiro do Geba
por Luís Graça (1)


Um homem passa o rio,
a nado.
Um homem atravessa a ponte
sobre o rio.
Um homem cai ao rio,
baleado.

Há uma piroga
no tarrafo.
Metralhada.
E flamingos brancos,
tingidos de vermelho.

Um homem pensa na jigajoga
da vida e da morte.
Um homem olha-se ao espelho.
Um homem porfia,
e nem sempre alcança.
Um homem tem uma crise,
de confiança.

Um homem do norte
camba o rio.
A sul.
A vau.
O Geba Estreito.
Que a última coisa a perder
é a esperança.

Um homem desenha uma ponte,
imaginária,
entre dois pontos
de cambança.
Um homem farda-se,
a preceito.
Um homem põe-se a pau,
a caminho do Mato Cão.
O inferno em frente,
o rio serpente,
e Lisboa ali tão longe,
tão azul,
tão gregária.
Lisboa, o cais
de Alcântara,
uma multidão de pontos negros.
Outra ponte,
outro rio.
Saudades a mais.
Um nó na garganta.

Um homem do norte
faz o corte
epistemológico
dos pré-conceitos etnocêntricos.
Quem sou eu, viajante ?
Quem és tu, barqueiro ?

O homem é o mal escatológico
que atravessa o céu,
de bronze.
O homem é o jagudi
em voos concêntricos.
O homem é a hiena que ri.
O homem é o pássaro-bombardeiro.
O animal alado.
O helicanhão.
O falo de fogo.
O obus catorze.
O RPG Sete.

Um homem é apanhado pelo macaréu
da história.
Como um cão.
Sem glória.
E na bolanha de Finete
descobre que não há ponte
nem salvação,
que há terra e céu,
mas não há elo de ligação.

Um homem perde a memória,
ao afundar-se no tarrafo do Geba.
Um homem chama o barqueiro
da outra margem.
Em vão.
O barqueiro faz contas
à vida
que custa manga de patacão.
E ao progresso que não chega,
ao motor de explosão,
ao motor da Yamaha,
à explosão dos cinco sentidos,
aos Strella,
aos Katiusha,
ao cimento e ao aço,
à liberdade de circulação.

Um homem passa a ponte,
a passo,
a peso pluma.
A ponte armadilhada.
O barqueiro conta um conto
em cada viagem.
O barqueiro de Caronte.
Um peso, irmão.
Um bilhete de ida,
Sem regresso.

Um homem exorta o soldado
a que leve a guerra a peito.
É o capitão,
medalhado,
que nunca irá chegar a oficial general.
O fantasma do capitão-diabo,
vagueando pelo Cuor.
Estatuado,
na capital.

Vou no Bissau,
num barco à vela,
no barco da Gouveia.
Aproveito a maré-cheia
e o cacimbo sobre Ponta Varela.

O milícia, número tal,
vai morrer,
exangue,
como a última estrela
da manhã.
E eu espreito o rio,
da minha torre de Babel.
Um terceiro homem pára.
No semáforo.
Vermelho.
De sangue.
A caminho de Madina/Belel.

__________

Notas do editor do blogue:

(1) Vd. outros poemas do autor, de temática guineense ou africana:


5 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1342: Poema: os meninos da Ilha de Luanda (... pensando nos meninos de Bolama, de Chamarra, de Mansambo ou de Saré Ganá) (Luís Graça)

5 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1047: Alá não passou por aqui (Luís Graça)

1 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P930: O Relim não é um Poema (a propósito da Op Tigre Vadio) (Luís Graça)

10 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau (Luís Graça)

17 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - LIX: Esquecer a Guiné...por uma noite!(Luís Graça)

11 de Julho de 2004 > Blogantologia(s) - XVI: Luanda revis(i)tada (Luís Graça)

Outros textos poéticos disponíveis em:

Blogue-Fora-Nada e... Vão Dois

Guiné 63/74 - P1597: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (10): Idálio Reis

1. Mensagem do Idálio Reis:

Caro Luís e demais companheiros da Tertúlia:

Tentamos fazer com o nosso editor um fraternal grupo que detém uma particularidade comum: o de nos terem coagido a fazer uma guerra, subjacente à prestação de um serviço militar obrigatório. Fomos compulsivamente mobilizados para uma longínqua terra, de que tínhamos conhecimento que por lá morriam ou ficavam estropiados muitos dos nossos contemporâneos.

Mas então, perante a cruel realidade de tais notícias, porque não nos escusámos a tomar parte nessa odisseia?

Mas como? Éramos jovens de 22 - 23 anos, vigiados por uma polícia política com regras de um País fascista, de todo impedidos de sair de Portugal sob qualquer pretexto, o viço da idade a embaçar-nos uma consciência deveras imatura, um forte apego familiar aditado pelo afago das nossas prometidas e amigos, o rincão natal que nos grudava, uma situação financeira que não propiciava qualquer aventura. A fuga à guerra de África estava vedada à grande generalidade da nossa geração. Os factos são bem demonstrativos.

Jamais tive qualque pretensão de fugir à guerra colonial, porque os laços sentimentais que me prendiam a este bocado de terra e aos meus eram demasiado fortes para me ver afastados deles permanentemente. Nada disto está absorvido por um qualquer amor pátrio, porque na verdura da minha idade, conseguia reconhecer que ela me escusava o amparo a que tinha direito.

Fui, porque fortemente esperançado que regressaria ao aconchego dos meus maternos lugares. Fui, e não estou arrependido de assim ter procedido. Mas, se por absurdo, me obrigassem a repetir a façanha, preferiria o ónus da prisão. Sem margem para quaisquer dúvidas.

Mas houve alguns que fugiram? Certo, mas são excepções raras. Aos poucos que o fizeram, nada tenho a apontar, pois quando transpuseram a fronteira, eram conhecedores que jamais poderiam regressar. Depararam-se-lhes facilidades para o fazerem, e felizmente que o 25 de Abril lhes abriu as portas.

Reconheço contudo, que uma substancial parte foi considerada herói. Sempre menosprezei essa aura, porque a dar crédito, aviltava-me. E não o mereci.

Quanto aos que, como no caso em análise (1), se entregaram aos movimentos independentistas, deixando os seus camaradas, merecem o meu repúdio. Saem junto dos seus, e passam para o outro lado da barricada, porque a guerra definia-se somente entre dois contendores. Vão lutar pela parte antagónica, sem minimamente se importarem nos que neles acreditaram.

Eu, que vivi a guerra da Guiné, de uma forma cruenta e dolorosa, nada me move contra o PAIGC. E até tenho uma particular simpatia pela grande figura política de Amílcar Cabral, como pelo enorme guerrilheiro que foi Nino Vieira. E os meus locais da Guiné-Bissau, tenho fé em revê-los, pois o peso acentuado dos anos apela-me a isso de um forma extraordinariamente viva. E esta minha ambição, faz-me sonhar e ... deixa-me feliz.

E este blogue é bem significativo disto mesmo. Como, passadas 4 décadas, conseguimos narrar tão emotivamente esses momentos do desespero e da dor? Porque, fundamentalmente, criou-se um sentido gregário tal que só um acrisolado amor mútuo é capaz de concretizar.

A união faz a força, e o comprometimento que partilhava com o meu companheiro de armas, ninguém o ousasse desfazer. E é numa união similar a esta que aderi com grande entusiasmo à Tertúlia, porque estivemos continuamente do lado que nos competia.

Um cordial abraço para todos.

Idálio Reis
Ex- Alf Mil da CCAÇ 2317, BCAÇ 2835,
( Gandembel e Ponte Balana 1968/69)

____________


Nota de L.G.:

(1) Vd post de
3 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1560: Questões politicamente (in)correctas (25): O ex-fuzileiro naval António Pinto, meu camarada desertor (João Tunes)
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1585: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (1): Carlos Vinhal / Joaquim Mexia Alves
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1586: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (2): Lema Santos
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1587: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (3): Vitor Junqueira / Sousa da Castro
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1588: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (4): Torcato Mendonça / Mário Bravo
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1589: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (5): David Guimarães / António Rosinha
13 de Março de 2007 >Guiné 63/74 - P1591: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (6): Pedro Lauret
14 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1592: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (7): João Bonifácio / Paulo Raposo / J.L. Vacas de Carvalho
14 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1593: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (8): A. Marques Lopes

Guiné 63/74 - P1596: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (9): Humberto Reis

1. Mensagem do Humberto Reis:

Luís:

Ficas desde já autorizado a publicitar, como entenderes, a minha opinião sobre este complicado tema dos desertores, objectores de consciência ou o que lhe queiram chamar (1).

Quando em 1968 cursei no Centro de Instrução de Operações Especiais, em Lamego, o curso de Rangers, constava que os melhores classificados seriam os últimos a ser mobilizados, e no caso de o serem, iriam para melhores locais. Fiz bem o meu papel e no meio de umas dezenas de militares, fiquei classificado em 3º lugar com uma média de 15,23 valores.


Santa ignorância a minha! Então o Estado gastava um pipa de massa a formar militares de elite e depois ia colocar esta gente nos QG e EM ? Só se fosse estúpido ou a minha cunha fosse do tamanho da de um Fur Mil Op Esp. que conheci em 1970 e que estava colocado no SPM no QG em Bissau. Até usava aquele boné redondo (não era a boina) que, julgo, só se usava em ocasiões especiais.


Claro que os 5 primeiros classificados foram os primeiros a ser mobilizados. Infelizmente, sei que o primeiro ficou sem uma perna e o quarto, meu amigo de infância, morreu com uns estilhaços de rocket, ambos lá na Guiné.

Em Fevereiro de 1969 estava a dar no RI 5, Caldas da Raínha, uma recruta ao CSM, quando saiu à ordem o meu nome como mobilizado para o CTIG. Teria de me apresentar no CIM (Campo Militar de Santa Margarida) no dia tal. Perguntei a alguns camaradas o que queria dizer CTIG pois eu não conhecia o termo. Para mim eram Angola, Guiné, Moçambique. Como devem calcular fiquei bastante preocupado.

Reparem que estamos na década de sessenta. Eu, em termos políticos, era - e ainda quase que o sou - um zero à esquerda, como se costuma dizer. Haverá muito boa gente que naquela altura já era desenvolvida politicamente? Eu não era.

Costumo dizer no meu círculo de amigos que fui colaborador do antigo regime. Perguntam-me logo se fui da Pide, ou da Legião. Respondo calmamente que não, mas que não foi preciso a Polícia Militar ir lá a casa procurar-me para me apresentar no dia 24 de Maio de 1969, no cais de Alcântara, para embarcar no Niassa com destino à Guiné. Chamo a isto COLABORAR com o antigo regime, mesmo que mais passivamente.

Não ataco, nem defendo, o que vulgarmente se denomina de desertores. Mas tenho uma opinião muito própria sobre este assunto. Essa é que ninguém me pode tirar por mais direitistas ou esquedistas que sejam. Uma GRANDE PARTE FUGIU POR MEDO E NÃO POR CONVICÇÕES POLÍTICAS.

Medo, eu também tive, pois não sou mais nem menos que os outros. Heróis ptré-fabricados não existem, a não ser nos filmes. Só os que tiveram o azar de estar debaixo de fogo, mas ao mesmo tempo a felicidade de estarem vivos para o contar, podem saber o que é a reacção de um ser humano naquelas circunstâncias. Pode dar-lhe para correr direito às balas e escapar, poderá vir a ser um herói, ou ter o azar de se cruzar com uma e vir a ser enfiado numa caixa de madeira (quando as havia, pois nem sempre assim aconteceu).

Cada um fez a sua opção mas ninguém pode obrigar a outra parte a ter a mesma opinião. Para isso já chegou o que tivemos.

Resumando e concluando, não estou de acordo com regimes especiais para NINGUÉM.

Aquele abraço a TODOS os bloguistas e continuemos a contar as nossa estórias para que a história enriqueça.

Humberto Reis

Ex-Fur Mil Op Espec

CCAÇ 2590/CCAÇ 12


(1969/71)

____________
Nota de L.G.:
(1) Vd. posts anteriores:

Guiné 63/74 - P1595: História da CCAÇ 2700 (Dulombi, 1970/72) (Fernando Barata) (3): minas, tornados, emboscadas, flagelações e acção... psicossocial

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
Guiné > Zona Leste > Sector de Galomaro > Dulombi > CCAÇ 2700 (1970/72) > Aspecto do Edifício do Comando após o tornado de 25 de Abril de 1971.



Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket

Guiné > Zona Leste > Sector de Galomaro > Dulombi > CCAÇ 2700 (1970/72) > Seis minas A/P detectadas na região de Padada e recuperadas pelas NT.



Fotos: Fernando Barata (2007). Direitos reservados. Fotos alojadas no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.



III parte do resumo da história da CCAÇ 2700 (Dulombi, Maio de 1970/ Abril de 72), unidade que pertenceu ao BCAÇ 2912, e foi render a CCAÇ 2405 do BCAÇ 2852 (1968/70). O autor do texto é o ex-Alf Mil Fernando Barata, da CCAÇ 2700 (1).


2.4 – Incidentes

A 14 de Dezembro [dce 1970] são detectadas 6 minas antipessoal (A/P) em Padada,enquanto decorria a Operação Diamante Indiano.

Em Fevereiro de 1971, é detectada e neutralizada uma mina A/C, em Padada e accionada uma mina A/P, sem consequências pessoais, já que foi accionada por uma viatura. Foram, também, encontradas 50 munições de PPSH [costureirinha].

A 18 de Fevereiro, a 300 metros do aquartelamento, foi accionada por uma viatura uma mina A/C da qual resultaram 2 mortos, António Vasconcelos Guimarães e José Augusto Dias de Sousa e 3 feridos.

A 25 de Abril, pelas 17 horas, forma-se violento tornado, que na sua plenitude arranca a cobertura de zinco do pavilhão que servia de Secretaria, Quarto dos Oficiais e Quarto dos Sargentos bem como da Caserna. Debaixo desta pesada estrutura ficam o Furriel Moniz e dois soldados, tendo um destes sofrido uma fractura exposta da perna.


Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
Guiné > Zona Leste > Sector de Galomaro > Dulombi > CCAÇ 2700 (1970/72) > Aspecto da caserna após o tornado de 25 de Abril de 1971.

Na noite de 1 de Outubro, quando 2 secções da CCS executavam um patrulhamento nas Duas Fontes, foram emboscadas por um grupo inimigo estimado em 50 homens, causando 5 mortos às nossas tropas. Dois destes, pertenciam à nossa Companhia e estavam destacados no Batalhão [, sedeado em Galomaro]. Eram o Rogério António Soares e o José Guedes Monteiro.

A 5 de Outubro, quando uma coluna se deslocava para Galomaro, uma das viaturas accionou uma mina A/C, causando 1 morto, Luís Vasco Fernandes e 3 feridos.

Não posso precisar no tempo, mas houve um incidente que muito me marcou pela sua brutalidade. Certa noite vem ter ao quarto dos Oficiais um sentinela dizendo que tinha ouvido rebentar uma armadilha provavelmente accionada por qualquer animal, pois ouvia gemidos. Mal o sol raiou uma secção deslocou-se ao local da deflagração dando então com dois gilas (2) feridos, um ligeiramente, mas o segundo com graves ferimentos numa perna. Perante tal cenário interroguei-me como foi possível ter ficado toda a noite a esvair-se em sangue não tendo sucumbido.

Levados para a Enfermaria, aí lhes foram prestados os socorros possíveis, sendo de imediato evacuados para Bissau num helicóptero. Embora um dos nossos milícias, que os interrogava em determinado dialecto, me asseverasse que "eram turras de verdade", eu naquele olhar, para além do sofrimento óbvio, vi também uma certa candura, de não comprometimento. Estaria a ser ingénuo? Na realidade, não faria muito sentido utilizar uma zona de conflito como corredor de passagem. Numa entrevista dada por Pedro Pires ao Jornalista do Diário de Notícias (12/9/2000, pag. 7), aquele referia que a informação que obtinham era "mandada por .... ou pelos célebres djilas, os comerciantes que iam e vinham".

Estaríamos mais ou menos a meio da nossa comissão de serviço, quando vejo chegar ao aquartelamento os dois pelotões que horas antes tinham saído para uma operação que deveria durar 2 dias como quase todas as outras. Logo adivinhei que algo de grave se estaria passar. O grupo de combate tinha sido atacado por enxame de abelhas que deixaram alguns dos militares em estado lastimoso (recordo o estado em que chegou o nosso Capitão!), tendo mesmo dois ou três desmaiado.


2.5 – Flagelações

Sofremos algumas flagelações (nove) ao aquartelamento com uma duração muito curta, nunca excedendo os dois minutos e executadas a longa distância sempre com armas ligeiras (costureirinhas) e ao cair da noite, o que permitia aos grupos debandar, a coberto da escuridão, na expectativa de que não seriam perseguidos.

No dia seguinta à nossa chegada a Dulombi (*), estávamos a sofrer a primeira flagelação (6 de Maio), mantendo-se uma certa pressão durante os primeiros 6 meses de permanência no território. Inexplicavelmente, ou talvez não, estivemos praticamente um ano sem ser flagelados (de Setembro de 70 a Agosto de 71). Contudo foi durante este período que accionámos 1 mina A/C (18 de Fevereiro).
Se nos primeiros tempos houve um certo receio, por de início desconhecermos qual a amplitude que a flagelação iria ter, com o tempo fomo-nos habituando e praticamente já ninguém corria para os abrigos quando se ouvia a costureirinha lá ao longe. Só o Russo saltava para o morteiro de longo alcance, garantindo peremptoriamente que alguma das ameixas com que tinha presenteado o inimigo, teria alcançado o seu objectivo.


Datas das flagelações

1970 > 6 de Maio - 28 de Junho - 3 de Julho - 11 de Julho - 20 de Agosto - 23 de Setembro
1971 > 3 de Agosto - 15 de Outubro - 15 de Novembro



2.6 - Contacto com a população

A população civil de Dulombi rondaria os 250 habitantes. Era abúlica por natureza, na linha da filosofia fatalista característica do povo fula. A agricultura era a sua única actividade produtiva e limitada, de forma incipiente, ao cultivo de mancarra, milho e arroz, produtos que não chegavam para satisfazer as suas necessidades.

Digno de registo na área social terá sido a construção de moradias para cada uma das famílias indígenas, inserida na política de reordenamento da população idealizada por Spínola, a construção duma mesquita e dum posto escolar e respectivo apoio didáctico através de professor recrutado entre um dos elementos da Companhia (o Márinho), assistência sanitária dada pelos nossos enfermeiros e pelo médico do Batalhão, sempre que este se deslocava ao aquartelamento, bem como apoio alimentar através da distribuição regular de arroz pela população.

Sempre que uma coluna militar se deslocava, quer a Galomaro quer a Bafatá, havia o cuidado de proporcionar à população alguns lugares nas viaturas para que pudessem visitar os seus familiares que se encontravam nestas localidades, para fazerem as suas compras (embora o seu poder de compra fosse quase nulo), ou mesmo para darem a simples passeata. Só quando se sabia, à partida, que as viaturas no regresso viriam superlotadas com toda a espécie de géneros, aí essa benesse era banida mas explicada a razão.

Podemos considerar que os militares, após terem terminado os trabalhos de construção do aldeamento, passaram a ser a única entidade empregadora da população feminina, que prestava o serviço de lavagem de roupa.

Tudo isto contribuiu para que entre população e tropa se tivesse construído um ambiente de familiaridade sem incidentes de qualquer espécie.

2.7 - Análise da actividade

É digna de registo a forma sacrificada como todos vivemos, no início da campanha, em abrigos subterrâneos e por vezes alagados na companhia de alguns répteis, sem quaisquer condições de vida. Mesmo assim, conseguiu a nossa Companhia entregar-se de forma denoda à construção do aldeamento para a população ao mesmo tempo que decorria a construção do nosso aquartelamento e sem descurar a actividade operacional. Relembro que a equipa de pedreiros e carpinteiros que ajudaram a levantar tanto o nosso quartel como o aldeamento, foram recrutados entre os operacionais de cada um dos pelotões, do que resultou um emagrecimento em efectivos para a actividade operacional.

Na época das chuvas as estradas eram de difícil transitabilidade o que dificultava os nossos movimentos logísticos.

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
Guiné > Zona Leste > Sector de Galomaro > Dulombi > CCAÇ 2700 (1970/72) > Troço de ligação Dulombi/Galomaro na época das chuvas.


Durante os primeiros 6 meses (até 10 de Novembro 1971), o 4.º Pelotão esteve a reforçar o subsector de Galomaro e durante algum tempo, e de forma rotativa entre pelotões, assegurámos a protecção à aldeia de Cansamba [, entre Galomaro, a noroeste, e Dulomni, a sudeste]. Por tudo isto, o nosso Comandante de Batalhão salientou no seu relatório final "a maneira estóica" como suportámos as adversidades, quer através das frequentes flagelações, quer com o rebentamento das 3 minas a/c que nos causaram 5 mortos, "o que de modo algum quebrou a sua determinação de cumprir a Missão que lhe fora imposta, não afectando o seu moral nem a sua capacidade de resistência e de valor combativo".

Também por parte da Repartição de Operações do Comando Chefe das Forças Armadas a apreciação da nossa actividade operacional nos é favorável, sendo por várias vezes referida pelo Tenente-Coronel Mário Firmino Miguel (**), a "boa e bem orientada actividade geral", salientando a amplitude de algumas operações realizadas "com efectivos perfeitamente ajustados à missão e à região" onde se desenvolveram.

Mas como nem tudo são rosas, também no período entre 12 e 19 de Dezembro de 1971, notaram "precária actividade nocturna". É que o Natal aproximava-se, e nestas alturas o instinto de defesa fica mais apurado. Ou então: "ausência de emboscadas sobre os eixos de aproximação IN". Pergunto, alguém saberia quais eram os eixos de aproximação IN? Entre 15 e 22 de Novembro de 1970, "não foi efectuada qualquer acção de reconhecimento ao Rio Corubal" (3). Para quê, se nós já o conhecíamos tão bem?!

A 7 de Abril de 1971, fez o General Spínola uma visita de inspecção ao nosso aquartelamento. O mesmo discordou da forma como estava construído o torreão de defesa que "não estava de acordo com o torreão-tipo aprovado para todo o território"!. No seu relatório, em relação a Cancolim, referia: "notei um mau ambiente humano talvez derivado da pouca dedicação do Comandante da Companhia" ... "parece ser uma pessoa doente". A que tipo de doença se estaria a referir o General Spínola?

A 23 de Janeiro de 1972 chega a Dulombi a CCAÇ 3491 para nos render. Pouco mais de uma semana passada, a 1 de Fevereiro decorre a Operação Varina Alegre compartilhada por um pelotão da 2700 e outro da nóvel Companhia. Embora fosse uma operação para que os periquitos se ambientassem ao cheiro do capim, recordo as preocupações que dela advieram.

No regresso alguns militares atearam fogo ao capim, resultando uma queimada de tais proporções, que gerou a desorientação entre alguns dos novos elementos. Depois de muitos esforços de reunião, não se consegue detectar um dos alferes, adivinhando-se que o mesmo tivesse morrido carbonizado. Imagine-se o alívio que todos sentimos quando pelo alvorecer do dia seguinte ele, exausto, nos aparece junto ao arame farpado. Foi uma dupla sorte: o ter aparecido e não ter accionado nenhuma das armadilhas colocadas à volta do quartel.

A 10 de Março [e 1972] termina a responsabilidade da nossa Companhia no subsector de Dulombi. Dia 11 de Março a Companhia parte com destino ao Cumeré para aí aguardar transporte aéreo para a Metrópole, o que vem a acontecer a 22 de Março.


Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket
Guiné > Zona Leste > Sector de Galomaro > Dulombi > CCAÇ 2700 (1970/72) > Chegada da CCAÇ 3491, os periquitos.

__________

Notas de F.B.:

(*) Não podemos dizer que o inimigo não estivesse bem informado das nossas movimentações.


(**) Chegou a Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, e mesmo a Ministro da Defesa.

_____________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:
4 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1494: Tertúlia: Apresenta-se o ex-Alf Mil Fernando Barata, CCAÇ 2700 / BCAÇ 2912

22 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1541: História da CCAÇ 2700 (Dulombi, 1970/72) (Fernando Barata) (1): Introdução: a 'nossa Guiné'

26 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1550: História da CCAÇ 2700 (Dulombi, 1970/72) (Fernando Barata) (2): A nossa gente
(2) Gilas (pronuncia-se dgilas): vendedores ambulantes, em geral da etnia futafula, que pecorriam a Guiné, e falavam bem o francês, dadas as ligações aos dois países vizinhos: o Senegal e a Guiné-Conacri.

(3) Sobre o Rio Corubal, a sul e a sudeste de Dulombi: vd. cartas de Contabane e de Padada.

quarta-feira, 14 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > Brasão da CART 2339 (Fá Mandinga e Mansambo, 1968/79)

Foto: © Carlos Marques Santos (2005). Direitos reservados.

Photo Sharing and Video Hosting at Photobucket

Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Mansambo > CART 2339 > 1968 > O terceiro e penúltimo Comandante da Companhia (um Capitão do QP, de artilharia, com o seu metro e oitenta e tal de altura, assinalado com um círculo a amarelo). Atrás de si, o comandante do Batalhão 2852, Tenente-Coronel Pimentel Bastos, também conhecido por Pimbas. Ao todo, a CART 2339 teve seis comandantes, sendo três capitães, um miliciano e dois do QP, um tenente do QP graduado em capitão, e ainda dois alferes milicianos, nos interregnos... (LG)

Foto: © Torcato Mendonça (2006) . Direitos reservados

Início de mais uma série de estórias do Torcato Mendonça que foi Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69. Vamos chamar-lhe estórias de Mansambo, aquartelamento construído heroicamente, de raíz, pelo pessoal da CART 2339 (1).

Começo então pela… Dança dos Capitães. Uso as iniciais dos nomes. O nome completo será enviado ao Luís Graça, no fim de cada estória. Não é medo. Creio que muitos estão vivos e, devido a um texto recente, achei preferível fazer assim. Assunto a resolver quando do envio. Assumo tudo o que escrevo e, uma vez enviado, deixa de ser meu. Ou seja, o Luís Graça publica ou não da forma que entender.

Conto, procurando ser o mais fiel possível, a experiência vivida por mim e pela minha Companhia há 40 anos.

A Companhia Independente de Artilharia 2339, foi formada em Setembro de 1967. A Unidade mobilizadora foi o RAL 3 de Évora. Na mesma data, para não ficar só, teve uma irmã gémea, a CART 2338. Ambas foram para a Guiné e para o Leste. Nós, CART 2339, dependentes de Bambadinca (sede do Sector L1) e de Bafatá (sede do Agrupamento nº 2959), eles para a zona de Nova Lamego (Gabu).

Em Évora, eram comandadas, aquando da formação, por Capitães Milicianos.

O primeiro capitão, miliciano e arquitecto...

O meu comandante teria cerca de trinta anos ou um pouco mais, arquitecto de profissão, casado. Era o Capitão Mil M. de C. Não pretendia ter grande profissionalismo militar. Procurava o convívio aberto, próprio de quem era uma excelente pessoa na vida civil. Sentia-se que, o ser militar não lhe agradava. Também não tinha grande apreço, estou a ser leve, pelo regime. Nem eu. Soube-o, porque nas escolhas dos nomes para a companhia sugeriram, Centuriões ou Pretorianos. Influências dos livros de Jean Laterguy, sobre as guerras na Indochina e Argélia. O Capitão M. de C. disse-me:
- Olhe que isso tem a ver com Roma mas também com Mussolini.

Falava-se com cuidado. O assunto também seria tratado do mesmo modo. Procurou-se outro nome. Surgiu, sabe-se lá como, o nome do Chefe Guerrilheiro Lusitano Viriato. Ficou a Companhia com o nome Os Viriatos. Como diria Bocage, foi pior a emenda que o soneto. Os portugueses que ajudaram Franco tinham esse nome (2).

Um dia o Capitão informou-nos:
- Devido a doença vou ser internado e, pelos exames já feitos, as doenças de pele, que é o meu caso, não se dão bem em climas tropicais...

Foi internado e não mais voltou. Ficamos assim órfãos do 1º Comandante. Pouco tempo depois ficámos sem um aspirante. Uma lesão num pé e tornozelo levou-o ao Hospital Militar Principal. Não mais regressou também.

2ª Comandante: Um tenente com uma comissão em Angola

Veio o 2º Comandante. Era um Tenente, mais tarde graduado em Capitão. Já tinha feito uma comissão em Angola. Após o regresso continuou como militar. Mais tarde, por razão que desconheço, foi mobilizado e enviado para a CART 2339.

Ainda participou connosco na instrução e fez a semana de campo. Estávamos acampados, próximo de Évora em Novembro de 1967 (2), quando das grandes cheias mais sentidas, principalmente na periferia de Lisboa. A imprensa livre de então relatou bem o que se passou. País amordaçado!

O 2º Comandante da 2339, Capitão L., foi connosco para a Guiné. Por lá andou talvez até Agosto de 68. Se consultarmos o Historial da Companhia vemos que os castigos ou punições terminaram com a saída dele. Posteriormente, uma ou outra, sem intervenção directa de ninguém da Companhia.

O nosso Comandante um dia regressou à Metrópole. Veio, segundo creio, frequentar a Academia Militar. Não sei nem me interessa a carreira militar por ele seguida.

Enquanto esteve connosco, quantas operações fez? Duas ou três? Não sei. Não falo mais dele. Gostei do 1º Comandante pois era uma óptima pessoa. Deste não gostei e não me dei bem com ele.

3º Comandante: um tipo alto, com o seu metro e oitenta e tal...

Ficou a Companhia a ser comandada pelo Alferes Cardoso.

Um dia, no início de Outubro de 68, regressava eu de uma operação e, na subida para o aquartelamento de Bambadinca, sentido Rio Geba ou estrada de Bafatá para o aquartelamento, uma viatura negou-se a cumprir a missão e não subiu. Salta militar e o Unimog recua, desgovernado. Percorre curta distância, entra na valeta e pára meio virado.

Veio gente e gera-se o burburinho do costume. A situação estava controlada. No meio das tropas surge um Capitão, camuflado novo, voz forte e ordem pronta vinda do alto do seu metro e oitenta e muito. Não sabia quem ele era e achei que devia pertencer a outro filme. Dirigi-me a ele, pus-me em sentido e disparei:
- Meu capitão, sou o comandante da coluna, tenho a situação controlada e se precisar de ajuda trato disso.- A resposta veio rápida:
- Sei quem você é, já me falaram de si e esperava-o. As ordens dou-as eu. Sou o seu comandante de Companhia.

Melhor apresentação não podia ter acontecido. Se com o 2º Capitão tinha corrido mal, com o 3º prometia!

Aí estava o terceiro comandante da 2339, Capitão do Quadro Permanente (QP), quase a passar a major e a iniciar a sua terceira comissão, a primeira na Guiné, o seu nome era M. S. A apresentação não foi pacífica mas o relacionamento foi bom. Meses depois, quando o Capitão M. S. comandava a Bataria de Artilharia em Bissau, ajudou alguns militares da sua ex-companhia que continuava com a base em Mansambo.

Foi curta a passagem do 3º Comandante. A Companhia, em Outubro de 68 atravessava um período menos bom. As condições do aquartelamento em tempo de chuvas eram péssimas e a parte militar também não ia bem. O desastre da fonte (4), dois mortos e vários feridos graves, estava bem presente. Cedo o Capitão disso se apercebeu. Tentou e em parte conseguiu, melhorar as condições de vida da companhia.

Operacionalmente, cedo se apercebeu também, haverem muitas diferenças entre os dois teatros de operações – Angola/Guiné. Creio ter feito só uma operação. Bem falava dos seus feitos em Angola. A operação que fez foi ao Burontoni. Azar do Capitão. Correu mal, demasiado mal e foi abortada. Adoeceu, pouco tempo depois, com um problema doloroso e veio até Bambadinca. Assim se finou a passagem do 3º Comandante da 2339. Convenhamos que perder tanto capitão é obra.

O 4º, o último e o verdadeiro comandante da companhia

Passado algum tempo, finalmente, aparece o verdadeiro Comandante da nossa Companhia.

Recebemos, em Dezembro de 68, a visita do nosso antigo Comandante, acompanhado de um outro Capitão. Viemos a saber ser o Capitão L.H. do QP, também na sua 3ª comissão. Era mais novo, vinte e oito anos creio eu, mais baixo na estatura, mais alto na operacionalidade e não só. Um verdadeiro profissional, mesmo com alguma mazela provocada pelas duas comissões anteriores. Era o Comandante que uma Companhia com o perfil da nossa necessitava. Comandou a 2339 em cerca de metade da comissão.

A ele se deveu o elevar da moral, da auto-estima, operacionalidade e um novo ritmo na construção do aquartelamento. Melhoraram os aspectos sanitários, de saúde, alimentação. Logicamente tivemos, a partir daí, uma melhor qualidade de vida. Mesmo assim, foi-nos difícil manter aquele ritmo de operacionalidade, apoio à construção de Manssambo, autodefesas e não só.

Apesar de um melhor comando, não foi fácil. No final da comissão deixou-me saudades. Certamente aos outros militares também. Tinha menos tempo de comissão e ficou em Bissau.

O último comandante fui eu, o sexto se contarmos com o Alf Cardoso. Já a terminar a comissão, o Cardoso veio para o Hospital em Bissau. O estômago atraiçoou-o. Felizmente esperava-nos à chegada em Lisboa.

Se bem me lembro, quarenta anos depois, os acontecimentos ora relatados passaram-se assim. Claro que havia muito mais a relatar. Talvez não tenha interesse. Fica para outras estórias.
___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 30 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDI: Mansambo, um sítio que não vinha no mapa (3): Memórias da CART 2339 (Luís Graça / Carlos Marques dos Santos)

(2) Vd. Fundação Mário Soares > Arquivo & Biblioteca > Guerra Civil de Espanha 1936/39

(3) Na noite de 25 para 26 de Novembro de 1967 registou-se, na região de Lisboa, precipitação intensa e concentrada, tendo atingido, na estação de São Julião do Tojal, no concelho de Loures, 111 mm em apenas 5 horas (entre as 19h e as 24 h do dia 25). As estações da região de Lisboa registaram, nesta data, cerca de um quinto do total da precipitação anual. A dimensão da tragédia foi ocultada pelo regime de Salazar, através da censura: cerca de 500 pessoas perderam a vida, e cerca de 1100 ficaram desalojadas ou viram as suas casas serem seriamente danificadas, muitos quilómetros de estradas ficaram destruídos... Estimaram-se os prejuízos em mais de milhões de dólares, preços da época. Fonte: Geologia Ambiental > Cheias > Casos de Estudo > As Cheias de Novembro de 1967 em Lisboa

(4) Sobre a fonte de Mansambo e as suas tragédias, vd. posts de:

5 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1248: Monteiro: apanhado à unha na fonte de Mansambo em 1968, retido pelo IN em Conacri, libertado em 1970 (Torcato Mendonça)

2 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXV: Do Porto a Bissau (12): A fonte de Mansambo (Albano Costa)

14 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCVIII: A emboscada na fonte de Mansambo (19 de Setembro de 1968) (Carlos Marques dos Santos)

Guiné 63/74 - P1593: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (8): A. Marques Lopes


1. Post do A. Marques Lopes > Ir ou desertar

Caro Luís:

Pensei, primeiramente, não entrar nesta discussão da aceitação, ou não, de desertores na nossa tertúlia (1). Mas entro porque me parece que estamos a falar calmos e serenos, cada um com as suas ideias, o que é natural e bom que seja. E eu penso assim:

(i) Os 2.179 mortos na Guiné (centenas dos quais nem de caixão regressaram), os oficialmente reconhecidos como tal (houve mais...), não foram para lá simbolicamente nem eram filhos de reis - sabemos, aliás, que a maioria dos nossos reis da altura nem sequer por uma questão simbólica quiseram enviar os seus filhos.

Todos eles, e nós que regressámos em cima de duas pernas - ou numa só ou em cima de dois cotos - e pudémos abraçar os nossos queridos com os dois braços - ou com um só ou com dois cotos - e conseguimos rever a nossa terra - ou cheirá-la apenas, porque nos tiraram os olhos -, todos nós e todos esses mortos fomos para lá por imposição de serviço. Houve quem terá ido galhardamente para cumprir um dever sagrado, mas a grande maioria foi com o coração apertado de receios e afogado nas lágrimas dos pais e das mulheres, todos obrigados ou para cumprir um dever profissional. O meu grande respeito e consideração por todos.

Os casos que se falam de aproveitamento oportunista da guerra, da guerra no ar condicionado, não podem ser generalizados, meu caro amigo David Guimarães (2), e fazer esquecer os sacrifícios próprios e os dos familiares dos militares profissionais que também deram o litro na guerra. Todos sabemos do Pedro Lauret e do Lema Santos. Os meus respeitos também por eles.

Creio que é todo este panorama que nos faz estar aqui unidos nesta tertúlia, num só sentido de troca de vivências, na recordação de factos com um fundo comum, na recordação de amigos, de dificuldades partilhadas.

(ii) E isto é política, a discussão da vida naquela nossa cidade distante. Mas, mesmo quando lá estávamos, apercebo-me que a maioria de nós já punha em dúvida ou não estava já de acordo com a vivência nela. Já púnhamos em causa a justeza e os objectivos de quem governava a cidade (3) . Começámos a reflectir politicamente, e houve quem decidisse tomar os caminhos que as suas reflexões lhe indicavam. Desertaram, como já tinham desertado outros antes de partir, bastantes mais, porque já tinham antecipadamente reflectido sobre a falta de justeza e maus objectivos dos governantes.

Houve também os que desertaram por medo. E quem, operacional, não teve medo na Guiné? Não posso por em causa os desertores. Até porque, confesso, essa ideia também passou pela minha cabeça quando estava deitado numa cama do HMP. Só que havia outra opção, mais dolorosa e mais arriscada, sem dúvida, e que era continuar lá junto de todos, partilhar e influenciar a vida de todos, falar com todos sobre a falta de justeza da guerra e dos seus objectivos, criando condições para a aceitação da mudança. Foi o que pensei, eu e muitos outros. Generalizando, agora, todos tivémos uma ideia comum: acabar e voltar vivos.

(iii) E a questão fulcral desta discussão: penso que não faz sentido a presença de desertores neste blogue. Não por serem desertores e escorraçá-los por isso, mas unicamente porque acho que não podem minimamente contribuir nesta troca de experiências que só nós vivemos. Não poderão dizer-me: é verdade porque eu também conheci os fulas, os mandingas, os balantas... lembro-me bem porque eu também estive lá... ou também passei por isso... ou não foi bem assim... ou o Pilão, ah!...
Todos nos percebemos porque vivemos uma experiência comum.

Abraços
A. Marques Lopes
Ex-Alf Mil At Inf (Hoje Cor DFA, reformado)
CART 1690 (Geba) / CCAÇ 3 (Barro)
1967/69
_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

3 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1560: Questões politicamente (in)correctas (25): O ex-fuzileiro naval António Pinto, meu camarada desertor (João Tunes)

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1585: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (1): Carlos Vinhal / Joaquim Mexia Alves

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1586: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (2): Lema Santos

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1587: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (3): Vitor Junqueira / Sousa da Castro

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1588: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (4): Torcato Mendonça / Mário Bravo

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1589: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (5): David Guimarães / António Rosinha

13 de Março de 2007 >
Guiné 63/74 - P1591: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (6): Pedro Lauret

14 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1592: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (7): João Bonifácio / Paulo Raposo / J.L. Vacas de Carvalho

(2) Vd. posts de:

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1589: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (5): David Guimarães / António Rosinha

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1590: O sacrifício dos oficiais do quadro permanente (Pedro Lauret)

(3) Recorde-se a etimologia da palavra Metrópole: do grego metropolis, que significava cidade-mãe, metrópole, cidade natal > metra (matriz, útero, ventre) + polis (cidade).