quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

Guiné 63/74 - P1541: História da CCAÇ 2700 (Dulombi, 1970/72) (Fernando Barata) (1): Introdução: a 'nossa Guiné'

Guiné > Subsector de Galomaro > Dulombi > CCAÇ 2700 (1970/72) > Cratera provocada pelo rebentamento de uma mina. A viatura que se encontra no buraco não é a que sofreu o acidente.

Em 10 de Agosto de 1970, a fim de patrulhar a região do Jifim [vd. cara de Padada], realiza-se a operação Ligeiros Quadros. Próximo daquele local é accionada uma mina a/c, resultando a morte do 1.º Cabo António Carrasqueira e 4 milícias. Foi o primeiro momento negro vivido pela nossa Companhia e particularmente pelo 2.º Pelotão, do qual o Carrasqueira fazia parte, militar muito estimado por todos os camaradas (FB).
Guiné > Zona Leste > Subsector de Galomaro > Vista aérea de Dulombi

Fotos: Fernando Barata (2007). Direitos reservados.


Damos início à publicação de um resumo da história da CCAÇ 2700 (Dulombi, Maio de 1970/ Abril de 72), unidade que pertenceu ao BCAÇ 2912, e foi render a CCAÇ 2405 do BCAÇ 2852 (1968/70), a que pertenceram os baixinhos de Dulombi, os nossos tertulianos Paulo Raposo, Jorge Rijo, Victor David e Rui Felício, os quatro alferes milicianos (1). O autor do texto é o Fernando Barata, ex-Alf Mil da CCAÇ 2700, e que nos faz, ele próprio a sua apresentação (2):

Fernando Barata nasceu a 10 de Dezembro de 1948, em Canas de Senhorim (Canas a Concelho!!!). Pai de 2 filhas, reside em Coimbra, cidade onde se radicou pouco tempo após o regresso do Ultramar. É licenciado em Relações Internacionais pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e trabalha no Gabinete de Relações Externas e Iniciativas Transfronteiriças da Comissão de Coordenação da Região Centro.


Dedicatória

A António Vasconcelos Guimarães.
A José Augusto Dias de Sousa.
A José Guedes Monteiro.
A Luís Vasco Fernandes.
A Rogério António Soares.
E, especialmente, a António Jacinto da Conceição Carrasqueira [, morto em 10 de Agostro de 1970, na região de Jifim]. Onde quer que estejas, sem que vais gostar de ler este pequeno trabalho


Agradecimentos


Este opúsculo pretende, tão somente, relatar alguns dos principais factos vividos no seio da Companhia de Caçadores n.º 2700, entre 1970 e 1972, na então província ultramarina da Guiné e particularmente naquele pequeno rincão que dava pelo nome de Dulombi.

Procurarei fazer uma descrição dos acontecimentos focada na minha experiência pessoal e tendo como apoio os documentos que se encontram depositados no Arquivo Histórico Militar, na pasta referente ao Batalhão de Caçadores n.º 2912.

Quero agradecer ao nosso companheiro de armas, hoje Major Carlos Correia, por todos os esforços desenvolvidos e pelas portas que conseguiu abrir para que esses maços de informação (o Herman diria resmas) me chegassem à mão num espaço de tempo tão curto (desde que ele se interessou pelo assunto, porque até aí, um meu primeiro requerimento já andava esquecido por alguma secretária). Para ti Correia, o meu sincero obrigado.

Queria também agradecer àquele que para nós será sempre, e com todo o respeito, o nosso Capitão, Senhor Tenente-Coronel Carlos Alberto Maurício Gomes, porque para além do que institucionalmente lhe competia - ser Comandante da Companhia - foi, para uns autêntico pai, para outros confidente, para todos um amigo. De minha parte, um sentido bem-haja.


1 - A NOSSA GUINÉ

1.1 - Breve historial

Os portugueses atingiram a costa da Guiné em 1466, com a chegada de Nuno Tristão à foz do Rio Geba, dedicando-se desde logo ao comércio, especialmente ao tráfico de escravos. Durante muito tempo a nossa presença só se fez sentir no litoral e um pouco para interior ao longo dos rios navegáveis, através dos comerciantes brancos que tiveram a particularidade de serem os pioneiros na penetração europeia nas terras da Guiné.

Só em 1630, com a criação da Capitania do Cacheu, passou a haver uma autoridade administrativa constituída. Esta autoridade tinha por missão não só dirimir desentendimentos entre dirigentes e comerciantes, como repelir ataques de outras nações.

No século XIX, as nossas tropas viram-se envolvidas em diversas campanhas para submeter quer primeiro os Papéis, quer, já no final do século, Manjacos, Balantas e Mandingas.

Após a II Guerra Mundial o continente africano entra em convulsão. Na legítima ânsia de independência, diversas colónias, tanto francesas como inglesas, entram numa fase de autodeterminação, contagiando também as nossas colónias (Salazar chamava-lhes províncias ultramarinas). A efervescência nacionalista vivida pelos vizinhos da Guiné-Conakry, que viria a alcançar a sua independência em 1958, seguida pelo Senegal no ano seguinte, tem um efeito contagiante. É neste ambiente que nasce, em 1956, o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), tendo como ideólogo o engenheiro agrónomo Amílcar Cabral, movimento que procura desenvolver a consciencialização do povo guinéu, incitando-o a resistir ao regime colonial de molde a obter a autodeterminação. Em 1961, começam a ser desencadeadas acções de terrorismo, tais como: roubos de gado e de colheitas, incêndios, ameaças e alguma violência.

O ano de 1963 marca o início das operações militares. A 21 de Janeiro, os guerrilheiros do PAIGC atacam o posto militar de Tite e fazem as primeiras emboscadas na região de Bedanda. Em Março, os navios Mirandela e Arouca são tomados, passando a dar apoio logístico aos guerrilheiros, a partir da Guiné Conakry.

A luta estende-se ao Leste com o desencadear de ataques na região de Xime, ao mesmo tempo que se começam a utilizar fornilhos e minas anticarro (a/c), o que torna ainda mais difícil a penosa tarefa das nossas tropas.

Esta luta, pela parte de Portugal, era justificada pelo sagrado princípio da defesa do território nacional, que se estendia do Minho a Timor. Pela parte dos movimentos de libertação, a guerra era justa e justificável pelo princípio da autodeterminação, com a força que lhe consignava a Carta das Nações Unidas, através do reconhecimento por parte dos países signatários, do direito dos povos disporem de si próprios.

Nestas perspectivas, a guerra colonial era considerada como subversiva por parte das autoridades portuguesas, de libertação por parte dos movimentos africanos e por último, maldita por parte daqueles (incluo-me) que todos os dias tinham que dar o corpo ao manifesto.

Dois anos antes da chegada da nossa Companhia à Guiné, assume funções de Governador da Província e cumulativamente de Comandante Chefe, o General António de Spínola, homem que pela sua personalidade e capacidade viria a ter um papel fundamental no desenrolar da guerra na Guiné. Apesar de militar, introduz uma componente política na sua actuação, quer junto das populações, quer através de negociações com Amílcar Cabral. Interpretando a célebre máxima de Mao Tsé-Tung que o guerrilheiro se deveria sentir entre a população como o peixe na água, havia, pois, que tirar a água ao peixe, isto é, dever-se-ia evitar que a população apoiasse a guerrilha. A solução encontrada foi procurar reunir as populações em aldeamentos que facilitassem o seu controlo obstaculizando o apoio e a cobertura às acções da guerrilha. Estes aldeamentos localizavam-se quase sempre junto a uma unidade militar, as habitações eram dispostas em quadrícula e dispunham de algum apoio social: escola, posto sanitário e poço.

No aspecto militar procurou modificar a situação que se vivia, caracterizada pela simples reacção às acções do PAIGC, onde apenas se pretendia a manutenção das posições no terreno. Como a iniciativa pertencia ao PAIGC, as nossas tropas sofriam ataques constantes que provocavam grande desgaste e desmoralização. Também aqui o jargão utilizado no futebol: quem joga à defesa quase sempre perde, se afigurava pertinente. É este status quo que Spínola pretende modificar com um novo conceito operacional: a ofensiva em detrimento da praxis anterior.

Em 25 de Julho de 1968, emite a Directiva 20/68. Com esta ficaria traçada a sorte de cada um de nós pois entre várias medidas estipula: "... e ocupar Galomaro com efectivo de valor que permita exercer uma acção dinâmica".

E é um facto que até finais de 1972, as forças portuguesas mantiveram a situação sob controlo, apesar de haver algumas zonas interiores dominadas pelo PAIGC, tais como os bastiões do Morés e Cantanhez.

Em 1973, com o aparecimento dos mísseis antiaéreos Strella, a Força Aérea reduziu significativamente o apoio dado às forças terrestres. A partir daqui a situação complica-se. Cria-se nas nossas tropas o desconforto por saberem que não poderiam contar com os Fiats ou com os heli-canhões para sua protecção. Atendendo à exiguidade do território a aviação estacionada em Bissau podia atingir qualquer ponto extremo do território em 10 minutos. Esta cobertura que se traduzia em segurança para as nossas tropas estava a terminar pelos sérios riscos que corriam os pilotos e pelo valor de cada avião abatido.


1.2 – Clima e vegetação

A Guiné possui um clima quente e húmido, próprio das regiões tropicais (encontra-se situada entre o Equador e o Trópico de Câncer), com duas estações: a das chuvas, que começa em meados de Maio estendendo-se até meados de Novembro, e a estação seca no restante período do ano.

A estação das chuvas é caracterizada pela alta humidade atmosférica, precipitações abundantes, variando a temperatura média à sombra entre os 26 e os 28 graus. É nesta altura que surgem os tornados, ventos que chegam a atingir os 100 kms/hora. Na estação seca as temperaturas médias rondam os 24 graus, sendo os meses de Dezembro e Janeiro os mais amenos do ano rondando temperaturas na ordem dos 15 graus.

Embora o clima da Guiné seja considerado insalubre pelas elevadas temperaturas e pela densa humidade, a região onde se situava a nossa Companhia tinha um clima mais ameno propício à adaptação do europeu.

Quanto à vegetação apresenta o território três diferentes zonas. A zona litoral é uma larga planície aluvial onde abundam palmares e mangais(*), com uma agricultura assente no milho, mandioca, arroz (preponderante na alimentação dos guineenses), amendoim (**), bananeira, laranjeira, cajueiro, ananás, mangueira e culturas hortícolas intensivas.

Na zona interior, donde sobressaem os planaltos de Bafatá e Gabu, domina a savana de arbustos e árvores isoladas. O solo é rochoso e exposto à acção dos agentes erosivos, naturalmente desfavorável à agricultura. E, por último, uma zona de transição que liga as duas zonas referidas, coberta de floresta densa, principalmente no sul e onde a presença humana é escassa. Aqui a agricultura perde importância, sendo a principal riqueza desta região as madeiras.

1.3 – População

Existia uma diversidade étnica entre os seus habitantes. Para além dos brancos, mestiços, cabo-verdianos e libaneses, da população autóctone destaco os seguintes grupos étnicos: Balantas, Fulas, Futas-Fulas, Manjacos, Mandingas, Papéis, Beafadas, Brames, Bijagós, Felupes, Baiotes, Nalus e Sossos.

Farei uma breve descrição das tribos que habitavam a nossa zona: os Fulas e os Futas-Fulas. Os Fulas subdividiam-se em Fulas-Forros e Fulas-Pretos.

Os Forros foram os primeiros a chegar ao território subjugando os Mandingas a quem passaram a designar de Fulas-Pretos. São hospitaleiros, considerando mesmo a hospitalidade como um dever sagrado. Apesar de alguma influência do Islamismo, são essencialmente fetichistas. Dedicam-se ao cultivo do arroz e à pesca (por vezes, através do envenenamento das águas). São bastante indolentes, pouco trabalhadores e viciados na cola.

Os Futas-Fulas habitavam a região do Boé. Com o abandono desta região por parte do Exército português acompanharam a debandada das nossas tropas . Têm boa compleição física, são argutos e inteligentes. Dedicam-se à agricultura, criação de gado e comércio ambulante. Alimentam-se de arroz, fundo (semelhante a alpista) e frutos. Não comem carne de porco nem bebem vinho, por o Islamismo não o permitir. Consideram-se superiores aos restantes fulas. Praticam a poligamia sendo bons pais e bons maridos, não permitindo que as mulheres pratiquem trabalhos violentos.

Entre as tribos mencionadas existem mais de vinte dialectos diferentes. O crioulo, que é uma mistura de palavras portuguesas e palavras dos dialectos locais, foi introduzido pelos colonos e permite que os nativos se entendam entre si.
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Notas de F.B.:

(*) Formação vegetal características das regiões costeiras intertropicais, constituída por florestas impenetráveis que cobrem as margens dos cursos de água. É a chamada floresta galeria.

(**) Nestas paragens conhecido como mancarra. Lembras-te, Ravasco, daquelas saborosas Luas-Cheias? Sim, se as tias na Linha desfrutavam antes do jantar, do seu Pôr-de-Sol, com os mais variados cocktails, porque não nós, também, na Linha (de combate), não poderíamos saborear um punhado de mancarra sabiamente torrada pela Binta, acompanhada por uma bazuca 'temperaturizad' pelo Matos ou pelo Vila Franca, àquela hora da noite.

(***) Foi precisamente a Companhia que nós fomos render [ CCAÇ 2405], que abandonou Madina do Boé. Aliás devem-se recordar que fomos encontrar militares extremamente desmoralizados. Na retirada, quando atravessavam o Corubal, uma Companhia que se encontrava do lado de cá, a dar-lhes protecção, começou a disparar morteirada, o que gerou o pânico (pensavam que era um ataque do inimigo), tendo perecido 40 militares afogados. O Diário de Notícias editou uma cassete vídeo “Madina do Boé - A retirada (Série Guerra Colonial),
(continua)

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Notas de L.G.:

(1) Sobre a CCAÇ 2405 (que esteve em Manosa, Galomaro e Dulombi], e os baixinhos de Dulombi, vd. os seguintes posts, entre outros:

Estórias de Dulombi, por Rui Felício:

8 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1352: Estórias de Dulombi (7): Perigos vários, a divisa dos Baixinhos de Dulombi (Rui Felício)

27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1217: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (6): Sinchã Lomá, o Spínola e o alferes que não era parvo de todo

18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1085: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (5): O improvisado fato de banho do Alferes Parrot na piscina do QG

5 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1046: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (4): a portuguesíssima arte do desenrascanço

19 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXL: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (3): O dia em que o homem foi à lua

14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVII: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (2): O voo incandescente do Jagudi sobre Madina Xaquili

9 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXIX: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (1): O nosso vagomestre Cabral

Vd. também post de 31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1006: Estórias de Mansoa (1): 'Alfero, água num stá bom' (Rui Felício, CCAÇ 2405)

O meu testemunho, de Paulo Raposo:
10 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1060: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (19): regresso a Lisboa e à vida civil (fim)

19 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1296: O cruzeiro das nossas vidas (2): A Bem da História: a partida do Uíge (Paulo Raposo / Rui Felício, CCAÇ 2405)

7 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1029: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (17): Dulombi

(2) Vd. post de 4 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1494: Tertúlia: Apresenta-se o ex-Alf Mil Fernando Barata, CCAÇ 2700 / BCAÇ 2912

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