Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969 > "O Campino era verdadeiramente um dos heróis do pelotão. Tinha pose de gingão, penteava-se imaculadamente e punha um barrete de campino, oferecido por um dos meus antecessores. Estou a ver o Brigadeiro António Spínola (1) a cravar nele o monóculo antes de lançar a sua observação cáustica quando nos visitou em Janeiro de 1969: 'Tenho a impressão que você está à frente de um circo'. Adulai vai ficar ferido no rio Gambiel, logo na primeira semana de Janeiro de 1969 bem estilhaçado nas pernas quando ripostava ao fogo dos rebeldes. Recompôs-se cedo e veio averbar páginas gloriosas de combatente destemido" (BS).
Texto e foto: © Beja Santos (2007). (Com a devida vénia ao ex-furriel miliciano Luís Casanova, que foi o fotógrafo, e que era furriel miliciano no Pel Caç Nat 52). Direitos reservados.
Texto enviado em 30 de Janeiro último. Continuação das memórias do Mário Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (2). Subtítulos da responsabilidade do editor do blogue.
Caro Luís, se tudo correr bem, esta semana enviarei ainda mais um texto. Com muito frio e tudo, espero passar uma animada semana, a próxima, em Paris, onde entro e saio a correr. A ver se tenho tempo de me passear pelo Bairro Latino, pelos alfarrabistas e visitar exposições. Escrevi ao Torcato Mendonça para ver se ele me pode ajudar acerca da Operação Fado Hilário. Vou digitalizar duas capas e envio-te os elementos correspondentes. Peço-te que não te esqueças que vou passar cerca de dois episódios em Bissau, em Março de 1969, razão pela qual espero que tu ilustres com os postais que em tempos te ofereci. Recebe um grande abraço do Mário.
Operação Anda Cá
por Beja Santos
Em 18 de Fevereiro, envio uma carta pessoal ao Pimbas (3), através de uma coluna que ia para Finete. Nela peço ao comandante de Bambandinca que me receba em privado nesse dia ou no seguinte. Terei escrito algo como isto:
- Meu Comandante, há duas noites que não durmo a pensar nesta operação que dentro de dias vem para o Cuor. O que me foi dito pelo Major Pires da Silva é que há dois destacamentos que deviam partir juntos e teme-se que não haja condições para tal. Gostava que revêssemos outras possibilidades para não deslocarmos mais de 300 militares em bicha, com todas as desvantagens. Por favor, peço-lhe como seu amigo que converse comigo em particular nas próximas horas.
Efectivamente, o convite para ir a Bambadinca chegou duas horas depois. Parti, articulando a saída com um patrulhamento a Mato de Cão, aprazado para as 10h da noite, em que passaria um forte contingente de batelões.
Tu és capaz de ter razão mas faz o que o major quer, diz-me o Pimbas
No início da conversa, expus as minhas apreensões ao Pimbas:
- O objectivo desta operação é atacar Madina/Belel e Banir (4), em dois destacamentos separados. Contava-se em cambar o Geba junto a São Belchior, e daí um destacamento partia em direcção a Madina, a partir de Missirá sairia outro destacamento em direcção a Banir. Agora, descobre-se que não há condições para cambar o Geba em São Belchior e vai tudo junto. Desculpe-me, é um erro, seria preferível o outro destacamento ir até Finete, eu preparo um grupo de picadores e guia, gente que conhece bem a região, e o destacamento vai por aí, passa por Mato de Cão e sobe até Madina. No outro destacamento, eu levo o prisioneiro de Queba Jilã (5), tenho soldados que conhecem perfeitamente esta região, dali seguiremos até Banir. O apoio aéreo não será dificultado, o inimigo será apanhado pela surpresa.
O Pimbas cofiava o bigode, aclarou a voz, olhou-me com estima e não escondeu as suas dificuldades:
- Ouve lá, tu até és capaz de ter razão mas o Pires da Silva tem desenhado esta operação com minúcia e está muito determinado. Faz-me o favor de não o causticares, actua como se ele tivesse razão.
Eu sentia o corpo moído, as pernas dormentes, a cabeça vazia, o coração atormentado, preferi renunciar a este diálogo, reservando as últimas energias do combate para a conversa que queria ter com o Pires da Silva.
O autismo e arrogância do major de operações
Era cedo, a luz da tarde começava a desmaiar, pedi para ser recebido pelo Major de operações, o que veio a acontecer. Entrei na sala de operações onde só se ciciava - falar alto era impensável - uma parede dominada por um mapa gigantesco pejado de alfinetes de cabeça verde, encarnada ou azul consoante os alvos amigos ou inimigos, e logo pensei: desta sala ao mato quantas diferenças...
O Major era um homem entusiasta, nesta altura o seu discurso era exuberante. O seu ponteiro metálico zumbia no ar, havia sempre desfechos empolgantes para o desenho das suas operações. Intitulava-as ou com uma palavra sóbria ou com duas (A e C, B e D, E e G, etc.) com sabor a criptograma, abarcando patrulhamentos ofensivos, reconhecimentos, rusgas, assaltos e golpes de mão. É nesta sala de operações que se parte para o Cuor, como para a Ponta do Inglês, Xitole ou Fiofioli ou a Mata do Poidon. Nesta tarde está visivelmente coloquial e vencedor. A operação é para começar a 22 de Fevereiro ao amanhecer. Guardo a sua voz:
- Beja, escavaque-me Madina, incendeie todas as barracas à volta, destrua o Banir. Consigo irão 300 homens.
Aproveito o balanço em que vai empolgado para lhe pedir uma recapitulação do itinerário: cambar o Geba é demorado, atravessar a bolanha de Finete a pé é cansativo, 300 homens até Missirá só a pé, mais valia aumentar a operação para 3 dias. Não, não podia ser, é dispendioso, a concentração vai acontecer ao fim da tarde de 20, avança-se até Missirá, parte-se imediatamente. Não haverá mais reuniões, o nosso Major irá falar a dois capitães, cabe ao destacamento de Missirá dar todo o apoio logístico e eu irei na vanguarda, como me compete.
A verdade que o relatório oficial da operação nunca contou
O relatório desta operação (que consta da história do BCAÇ 2852) não contava a completa verdade dos factos. É verdade que as viaturas foram buscar as tropas a Fá Mandinga, tarde e a más horas. É verdade que o Macaréu dificultou a cambança. É verdade que o martírio da viagem começou às 3h e acabou às 6h da madrugada e uma hora mais tarde chegou uma outra companhia.
Como eu suspeitava, a tropa está exausta, entrámos na época seca, vamos conhecer as quatro estações do ano num só dia, 300 homens numa floresta galeria, procurando usar de todas as cautelas, tornou a progressão lenta, incompatível com o objectivo previamente designado de atingirmos Madina ao princípio da tarde. Começaram os casos de insolação, as indisposições de todo o tipo e os nervos à flor da pele.
Quando anoitece estamos próximos de Sinchã Camisa e aí vamos pernoitar. Estou a ser tomado por uma angústia indisfarçável. Os rádios não funcionaram durante o dia todo e o PCV rondou-nos insistentemente lá do alto. Pela uma da manhã, no meio de gemidos e suspiros Bacari Soncó traz uma terrível notícia: o prisioneiro de Quebá Jilã, entregue à custódia de Ieró Seidi, acabara de fugir.
Uma das cenas mais horríveis que presenciei em toda a minha vida
De imediato, fui comunicar o sucedido aos dois capitães propondo que assim que houvesse luz eu avançaria para Madina sem perda de tempo. Ainda insisti na separação dos dois destacamentos, sem qualquer sucesso. Cerca das 5h da manhã avançámos fora de um trilho batido. Logo a seguir, Fodé Dahaba detecta uma mina antipessoal, pedi-lhe para ficar ali com a missão de afastar as tropas deste local. Relata-se que havia um segundo engenho, os meus soldados disseram-me mais tarde que não.
Toda a tropa de Missirá avançava para o acampamento de Madina, ouvia-se distintamente os pilões a funcionar e cânticos de mulheres quando uma explosão ensurdecedora encheu os ares, e após um angustiante silêncio ouviram-se os urros de dois homens. Retrocedo e vou ver uma das cenas mais horríveis que me foi dado presenciar em toda a minha vida: era uma fossa imensa, polvilhada de pedaços de metal, lá dentro agonizava um soldado e na berma gemia o Fodé sem uma perna e um pedaço de uma mão.
Lisboa > Hospital Militar Principal > 1969 > Fotografia do 2º sargento Fodé Dahaba. Pertencia ao Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Missirá ). Foi gravemente ferido em 22 de Fevereiro de 1969, na Op Anda Cá, aqui relatada.
Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.
Seguiu-se uma conversação duríssima em que eu pedia compreensão para avançar imediatamente sobre o objectivo, ao qual me foi respondido que os feridos graves tinham prioridade, que era melhor retirar para perto e pedir uma evacuação. De uma retirada para transportar feridos fomo-nos progressivamente afastando de Medina e pelas 8h da manhã eu sabia que a operação estava completamente perdida. Os rádios que não funcionaram na véspera passaram agora a funcionar, o desânimo aumenta, aqueles gritos de um soldado que vai morrer e de outro que vai ficar estropiado contagiam o moral das tropas. Já não estamos a evacuar feridos, estamos a recuar em direcção a Missirá enquanto se passa por rádio a batata quente para o PCV.
Mais uma vez as abelhas, o pânico, a debandada (6)...
Alguns soldados exaustos atiram-se para o fresco da floresta galeria e imprevistamente anuncia-se outro inimigo: as abelhas. Estala o pânico, largam-se armas, incendeia-se o capim, o pânico redobra, foge-se em todas as direcções. É nesta atmosfera caótica que desce um helicóptero de onde sai o Pimbas e se evacua um moribundo e um ferido grave. A retirada é formal, parece um exército em fuga, o dia aquece, os corpos gemem em invólucros de suor, e quando se avista Missirá guardo a recordação de uma força destroçada que se atira para o chão a pedir água fresca, a tirar as botas, os enfermeiros não param, manda-se fazer pão, toda a cerveja e refrescos que aparecem são ingeridos.
Na minha cubata reúne-se o Pimbas, os dois capitães e eu. O Pimbas insiste em que a operação recomece.
- As ordens de Bafatá (7) são para ser cumpridas. Mesmo com menos homens, vai-se partir de novo para Madina.
A discussão é interminável, há objecções que o desastre é irremedíável. Os recalcitrantes vão vencer, apoiados pelo coro de sofrimento que ecoa dentro de Missirá. E ao anoitecer o fogo de reconhecimento de Madina anuncia que os rebeldes já dispõem de informação suficiente para eliminar qualquer factor surpresa. As exigências de regressarmos ao combate vão esmorecendo. Na manhã seguinte, despeço-me da força que retira para Bambadinca e vou com os milícias recuperar o armamento que ficou abandonado no ataque das abelhas.
A 24 apresento-me na sede do batalhão para entregar todo o armamento recuperado. É aí que tomo conhecimento de que estou punido com dois dias de prisão por ter apresentado o aquartelamento de Missirá "em fracas condições de defesa e em deplorável estado de limpeza, arrumação e asseio" (2).
Quer os elefantes lutem quer copulem, quem se lixa sempre é o capim (Provérbio africano)
O Pimbas está consternado:
- Tu és o primeiro, a lista não vai ficar por aqui (8). Bom, tu podes recorrer, tens argumentos a teu favor. Desejo-te coragem.
E, com efeito, regresso imediatamente a Missirá e peço ajuda ao Furriel Pires, um hábil amanuense, um bancário que tem uma letra enfeitada e graciosa:
- Pires, vou ditar-lhe a minha resposta para a apresentar amanhã em Bambadinca, enquanto eu seguir para Mato de Cão.
Evitei defender-me com a referência a uma visita inexistente do Comandante Militar que nunca ocorrera. Limitei-me aos factos e ao conhecimento das realidades pelos superiores, com destaque para quem me punia. Dava à partida como incomprovado haver negligência nas fracas condições de defesa, demonstrando até com cartas escritas para o batalhão, a pedir insistentemente material, armamento e munições.
Recorri com veemência mas com poucas ilusões. Mais tarde virá o despacho de Hélio Felgas dando como improcedente o meu recurso. Não vou desistir de lutar, como se verá, vou até ao Comandante Militar. Será penoso, desgastante, mas estou a aprender muito com esta luta, vou conhecer o vigor de solidariedades e perceber mesmo que fui apanhado num vendaval que levará à punição de muita gente.
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 25 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1461: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (30): Spínola, o Homem Grande de Bissau, em Missirá
(2) Vd. post de 16 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1531: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (33): O Sintex: A Marinha Mercante chega até Missirá
(3) Tenente-coronel Pimentel Bastos, comandante do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Será substituído, por motivos disciplinares, a seguir ao ataque do PAIGC, de 28 de Maio de 1969, ao aquartelamento de Bambadinca. Vd. post de:
22 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1304: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (21): A viagem triunfal do Pimbas a terras do Cuor
31 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1008: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (2): o saudoso Pimbas, 1º comandante do BCAÇ 2852
(4) Madina e Belel: ficavam a noroeste de Missirá, já no início do Oio e no limite do Sector L1. Vd. carta de Bambadinca. Banir ou Sinhã Banir, ainda no Cuor: vd mapa de Mambonco. Sobre a caracterização do Sector L1, vd. post de 28 Abril 2005
Guiné 69/71 - VIII: O sector L1 (Xime-Bambadinca-Xitole): Caracterização (1) (Luís Graça)
(5) Vd. post de 8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1504: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (32): Aruma Sambu, o prisioneiro de Quebá Jilã
(6) Vd. post de 2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1486: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (31): Abelhas africanas assassinas
(7) Leia-se: do Tenente-Coronel Hélio Felgas, comandante do Agrupamento nº 2959 (Bafatá) a que pertencia o sector L1 (Bambadinca). Sobre a figura deste oficial superior, que se reformou como brigadeiro, e que ainda é vivo, há vários posts no nosso blogue:
24 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIX: O Hélio Felgas do nosso tempo (A. Marques Lopes)
23 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCVIII: Antologia (27): depoimento do brigadeiro Hélio Felgas (1): os aquartelamentos
25 de Novembro de 20065 > Guiné 63/74 - CCCXII: Antologia (28): depoimento de Hélio Felgas (2): as emboscadas
29 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXIII: Antologia (29): depoimento de Hélio Felgas (3): os ataques aos acampamentos do IN
9 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLIII: Antologia (32): depoimento de Hélio Felgas (4): "Ou se faz a guerra ou se acaba com ela"
13 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1365: Operação Macaréu à Vista (24): Discutindo os destinos do Cuor com o Coronel Hélio Felgas
(8) O Pimbas será também uma das vítimas da ira de Spínola,d eppois do ousado e surpreendente ataque a Bambadinca (em 28d e Maio de 1969). De resto, o mês de Fevereiro foi de má memória para as NT na Zona Leste. Logo no ínicio do mês tinha-se procedido à retirada de Madina do Boé, com as trágicas consequências que são conhecidas:
Vd. post de 2 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre de Cheche, na retirada de Madina do Boé (5 de Fevereiro de 1969)
Em Março, irá realizar-se a Operação Lança Afiada, que correu mal para o Hélio Felgas, que a comandou, e que envolveu cerca de 1100 homens, entre combatentes e carregadores. Os resultados ficaram muito aquém das expectativas do Com-Chefe. As relações entre os dois homens (Spínola e Felgas) agravaram-se depois disso, ao que parece. Mas terá sido em Madina do Boér, ou melhor, em Cheche, que começou a desgraça do Hélio Felgas (de quem iremos publicar em breve um depoimento sobre o trágico desastre do Cheche: já temos a sua competente autorização, dada por via telefónica, através da sua esposa).
Vd. posts:
31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)
15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli
9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas
9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli
14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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